quarta-feira, junho 28

A América de Tarantino

Quentin Tarantino em Reservoir Dogs

Tal como o grande escritor Norman Mailer, Quentin Tarantino dá-nos a sua imagem dos EUA e esse retrato não é, propriamente, um retratto digno de folhetos turísticos.
Dura, violenta, decadente e racista, a América de Tarantino é um retrato duro e cru da mentalidade do povo da maior potência mundial da actualidade. Tarantino, tal como muitos americanos, é o produto de uma cultura muito própria: filmes de artes marciais, westerns, filmes de terror (com muito blood and gore), tal como é a América do fast food (McDonald's à cabeça), da facilidade do acesso às armas e dos carros grandes...bem como a América da imigração, com inúmeras comunidades hispânicas e asiáticas. Toda essa realidade perpassa pelo seu cinema, mas sob as vestes da violência. Tal como a sociedade americana é violenta, também o é o cinema de Tarantino, produto dessa tensão latente na realidade envolvente.
Em Tarantino vemos uma sociedade eclética e conflituosa, pronta a disparar ou a ter um ataque de violência. E é nas alturas em que vemos esse brotar da violência que sobressai a sua estética particular. Com uma inspiração óbvia do giallo (fazendo lembrar, por vezes, Dario Argento), em que Pulp fiction será a referência mais óbvia, o espectador tem o privilégio de ver a estética da morte, com sangue, balas, espadas e muito sangue, sempre ao som de bandas sonoras adequadas (aliás, e este um ponto curioso, as bandas sonoras de Tarantino ficam a meio caminho entre o revivalista e o avant garde).
Ora, o Cinema de Tarantino, cuja qualidade é inquestionável, sob as vestes desta violência extrema, mais não é do que uma metáfora da América onde nasceu e tão bem conhece. Acontece que, mau grado as suas referências pop, Tarantino não caiu na lógica do filme fácil ou menor. Pelo contrário, a não linearidade das histórias que nos são contadas, em clara contraposição com os diálogos directos e acutilantes, mais do que uma imagem de marca, são um dos seus traços autorais. Outro prende-se com o facto de ser fã confesso de Sergio Leone, Tarantino brinda-nos com planos que nos fazem lembrar o mestre italiano: com frequência vemos grandes close ups seguidos de planos direccionados sobre a vastidão da paisagem.
Em Tarantino, tal como nos grandes cineastas, respira-se Cinema. Com efeito, os filmes do maverick americano estão pejados de citações e referências, quer ao Cinema, quer a ícones da cultura pop. Ademais, sendo Tarantino um grande apreciados de géneros considerados menores, como é o caso dos filmes de artes marciais (avultando, particularmente, o cinema de Hong Kong) ou dos filmes policiais, em muitos dos seus filmes vemos, numa perspectiva algo cómica, a sátira aos mesmos. Concomitantemente, essa sátira redunda, o mais das vezes, na homenagem (sublimação?) de tais géneros. Tal é o que acontece com o filme de artes marciais (Kill Bill, à cabeça) ou com o filme policial (Pulp Fiction, por exemplo). E é desse caldinho de culturas, rectius, influências que sai um Cinema próprio, particular e com traços autorais...
...sendo que nele avulta uma visão da América, a América de Tarantino.

terça-feira, junho 27

Verdades dogmáticas (inabaláveis?)

Lars Von Trier
Ao cuidado do meu amigo Tiago:
I
Lars Von Trier é um génio que desperdiça o seu talento com uns ângulos de câmara absolutamente grotescos, com o pretexto de querer que o espectador sinta todas as emoções dos actores.
II
Lars Von Trier, no seu afã de ser o faz-tudo dos seus filmes tem momentos dignos de filmagens amadoras: a câmara desfoca vezes de mais...
III
Lars Von Trier, sob o pretexto de redescobrir a pureza do Cinema, acabou por querer dar-lhe uma machadada final. Um exemplo: Dogville que, apesar de ser um grande filme, não o é. Efectivamente, vimos uma (grande) peça de teatro em tons brechtianos, sob as vestes de filme.
IV
Von Trier, signatário do manifesto Dogme 95, recusa-se a segui-lo na íntegra. Na verdade, os seus filmes não fazem nem de cenários reais, nem de luz natural (veja-se Dancer in the dark ou, ainda Dogville). Acaso enjeitará Von Trier o movimento que também perfilhou?
V
O Cinema de Von Trier não chega a ser o cinema puro a que se referia Bazin, a propósito do neo-realismo. Motivo: apesar de toparmos com uma câmara livre, há sempre uma artificialidade que perpassa por todo o filme. No neo-realismo, os actores amadores e a naturalidade quer do cenário quer das histórias, confluiam para um Cinema verdadeiro, pleno de emoções reais. Numa palavra: puro.
VI
Claude Lelouch era satirizado por ser o realizador que filmava com a câmara por trás do ombro. Em bom rigor, o epíteto encaixa melhor a Von Trier. Na perfeição, diria eu (se bem que a distância entre Lelouch e Von Trier como realizadores seja abissal. Com vantagem para Von Trier, obviamente).
VII
Apesar destes prós, gosto do Von Trier. Os filmes dele têm um teor filosófico que muito aprecio. Pena é não sentir nos filmes dele a Humanidade que perpassa por todo o Cinema de François Truffaut e, acima de tudo, Jean Renoir. Hélas!
VIII
Salvo circunstâncias manifestamente excepcionais, como cataclismos naturais, motins ou levantamentos populares, verei Manderlay no dia de estreia daqui a alguns meses.

segunda-feira, junho 26

O sonho comanda a vida

Klaus Kinski em Fitzcarraldo

Se houvesse que descrever Fitzcarraldo numa única palavra, ela seria, com grande probabilidade: sonho. O sonho de construir uma ópera em plena Amazónia comandou Brian Sweeney Fitzcarraldo. Sonho já de si megalómano, a ambição foi reforçada com o desejo de estrear essa ópera com a presença de Caruso e Sarah Bernhardt. Fitzcarraldo é precisamente um filme sobre sonho e ambição desmedida. Todavia, desta feita não topamos com a ambição de glória eterna de Aguirre. Pelo contrário, vimos um sonho megalómano dominado pela paixão. O amor à Arte e à Ópera levaram a que um homem simples combatesse contra tudo e todos para levar o seu sonho avante.
Vimos o avanço da obsessão, levando Fitzcarraldo às portas da loucura. Mas, a final, tudo lhe é perdoado. O sorriso triunfal, contemplando as margens do rio e os músicos a chegar, são o seu prémio. Todo o sonhador não deseja retribuições monetárias. Fica-se pelo prazer indescritível de ver ganhar forma aquilo que tivera idealizado. É quanto basta.
A ópera fez-se em Iquitos, um território unicamente habitado por índios. Pelo meio vimos todas as peripécias possíveis: desde as difíceis negociações com os barões da borracha, passando pela rocambolesca expedição pela selva amazónica. Em Fitzcarraldo tudo é poesia: desde os inúmeros planos em que Herzog filma o Amazonas, passando pelas sequências da floresta profunda. Poesia acentuada pelas árias de Ernani de Verdi e de I Puritani de Bellini, capazes de levar o espectador para além da beleza agreste da Selva, sendo embalado no puro onirismo da obsessão de Fitzcarraldo. Vimos um Fitzcarraldo deificado: a sua impecável roupa branca está sempre em contraste gritante com a sujidade da Selva. De certo modo, Herzog mostrou-nos que aqueles que sonham são puros, sendo-lhe perdoados todos os ataques de fúria quando motivados por um fim nobre. Daí que lembrar a Pedra Filosofal de António Gedeão não seja descabido: Eles não sabem nem sonham, que o sonho comanda a vida...
Fitzcarraldo brindou-nos com um excepcional - uma vez mais! - Klaus Kinski, mas, acima de tudo, mostrou-nos que sonhar não é proibido. Pelo contrário, o sonho deve ser incentivado, mesmo que o sonho seja megalómano. Ademais, Fitzcarraldo tem ainda a virtualidade de nos trazer à memória dois pontos importantíssimos: a Arte terá sempre lugar nas nossas vidas, dado que é ela que nos faz abstrair do "aqui e agora" em que estamos, tal como lembra que há sempre lugar para incentivar a imaginação e a criatividade. E, no fim, dá vontade de gritar em plenos pulmões o nosso objectivo. Foi o que Fitzcarraldo fez: Ich werde eine Oper bauen!
E o vosso, qual é?

quinta-feira, junho 22

O que é o Cinema?

Jean-Paul Belmondo e Samuel Fuller em Pierrot le fou

"Um filme é como um campo de batalha. O amor. O ódio. A acção. A violência e a morte. Numa palavra: emoção."

Samuel Fuller

quarta-feira, junho 21

Mise en Abyme


O que leva um realizador a colocar um filme dentro de um filme?
No caso de Truffaut, foi a concretização de um velho projecto: fazer um filme sobre o Cinema. Do pensamento para a concretização foi um passo. E assim surgiu La nuit américaine, o filme sobre os esplendores e misérias do processo de criação do Cinema e homenagem maior de Truffaut à sua profissão, ao Cinema e, mais importante, ao seu próximo - A vida era o écran.
Exemplo paradigmático - quiçá o mais perfeito - da utilização do mise en abyme em Cinema, La nuit américaine tem a virtualidade de nos mostrar um filme em três dimensões distintas: (i) a sua rodagem, (ii) a projecção das cenas rodadas numa sala onde estão os seus intérpretes e (iii) a sua inserção dentro do filme propriamente dito: Je vous présente Pamela o filme dentro de La nuit américaine.
Ora, se, per se, esta colocação no abismo, projecção de uma realidade noutra, através de uma teia imbrincada de pontos de contacto, merece todos os elogios, convém salientar que Truffaut não descurou de salientar o teatro de ilusões que o Cinema não deixa de ser, conforme o título indicia: a noite americana, o processo que permite, através da utilização de um filtro, filmar uma cena nocturna em pleno dia - o Cinema como ilusão.
Cinema é ilusão. Permite abstrair da realidade, acreditar num conto de fadas. Todavia, La nuit américaine mostra de forma crua o quão errados estamos: todos os intervenientes na rodagem de um filme têm problemas pessoais. Amam, choram, sofrem,... mas, estranhamente, durante a rodagem do filme este sobrepõe-se: o cinema impera conforme nos diz em off Truffaut. E será essa comunhão de fim - a feitura do filme - a originar uma profunda solidariedade entre todos os intervenientes - o Cinema como obsessão.
La nuit américaine anda a paredes meias entre a Verdade e a Ilusão, entre o documentário e a ficção, tal como o Cinema que retrata e desmistifica, o mesmo Cinema que admiramos e nos acompanha. E dá vontade de citar Eça: Sob o manto diáfano da fantasia, a nudez forte da Verdade.
No caso de La nuit américaine, ficará sempre uma dúvida: onde começa a Verdade e nasce a ilusão? Será que o que vemos é puro, isto é, sem filtros? Nunca o será, dado que entre a realidade e o que é dado a ver ao espectador intermediará o olhar do realizador. Mas, mais do que procurar problematizar o que vimos, talvez seja mais curial definir La nuit américaine como "a Pequena (grande) Enciclopédia do Cinema".

domingo, junho 18

Reflexão nocturna

O Pensador de Rodin

Sempre houve e sempre haverá blockbusters. Se nos anos 50 os cinemas eram invadidos pelos peplum italianos e nos anos 60 pelos Western Spaghetti, passando pelos inúmeros filmes de aventuras com que Hollywood nos bombardeou durante anos (e que muito nos fizeram sonhar quando petizes), é certo que, em muitos deles, conseguíamos identificar actores. Rostos expressivos, olhares pungentes, histórias com emoção..
Nos tempos que correm, vemos thrillers psicológicos, bem como tecnológicos (na senda do sucesso de Matrix), passando por inúmeras orgias de efeitos especiais de que séries como Star Wars, por exemplo, são o expoente máximo. Panorama confrangedor, porque, cada vez mais, resulta difícil encontrarmos um actor ou uma actriz nessa salgalhada de efeitos computadorizados. Por via de regra, esta desumanização conduziu à própria mecanização das interpretações e, pior, à negação do Cinema, dado que a esmagadora maioria das películas visam captar a atenção dos sentidos, mas não curam de espicaçar a reflexão sobre o Mundo que nos rodeia.
Não deixa de ser triste e, de certo modo, confrangedor e tragicómico, que muitos dos cineastas mais interessantes da actualidade já tenham uma idade respeitável. Alguns exemplos: Ingmar Bergman (veja-se o belíssimo Saraband), Bernardo Bertolucci (The Dreamers), Claude Chabrol (apesar de, de certo modo, ter aderido ao Cinema que a sua geração criticou e atacou), Wim Wenders (mau grado alguma "travessia do deserto"), Milos Forman, Woody Allen ou Pedro Almodóvar, só para citar alguns.
Ou seja, não assistimos a uma verdadeira e própria renovação geracional. Pior, muitos dos cineastas promissores que vão surgindo acabam por aderir ao fausto hollywoodesco (um mero exemplo: Fernando Meirelles). Aliás, talvez aqui não fosse despiciendo relembrar a humildade de Truffaut que, após ter realizado Farenheit 451, optou por permanecer pela sua França natal, recusando voltar a realizar um filme americano, apesar das inúmeras ofertas recebidas. Dito de outro modo, o espírito rebelde e independente dos grandes cineastas parece ter entrado em crise.
Em qualquer caso, não deixa de ser curioso que tenham sido pequenas produções a dominar o ano de 2005, prova indelével que, o mais das vezes, com poucos recursos pode fazer-se bem. Com efeito, um grande filme pode ser feito com poucos meios (À bout de souffle de Godard, La maman et la Putain de Jean Eustache ou L'avventura de Antonioni são exemplos acabados), conforme apontavam os postulados básicos da Nouvelle Vague: luz natural, espaços abertos, cenários reais, histórias sobre as pequenas coisas do quotidiano... algo que, de certo modo inspirou movimentos como o Dogme 95. Contudo, este movimento é espúrio. Basta atentar que um dos seus subscritores, Lars Von Trier, apenas rubricou um único filme com o selo Dogme 95...
Sendo assim, não deixa de ser com agrado que vejamos o desabrochar de cineastas como Sofia Copolla ou Wong Kar Wai ou a confirmação de nomes como os irmãos Dardenne ou François Ozon - isto apenas para citar dois nomes que têm andando na berlinda neste quintal à beira mar plantado. Apesar disso, sempre temos o Quentin Tarantino, provavelmente, o último dos Mavericks americanos, a par de um quase desaparecido Paul Thomas Anderson. Em qualquer caso: pouco, muito pouco.
Mas, provavelmente, estas linhas acabas de verter à guisa de reflexão não são mais do que um mero sinal de que não passo de um Velho do Restelo apegado a uma ideia romântica de Cinema e de fazer Cinema...

quinta-feira, junho 15

Havia um pai

Chishu Ryhu e Haruhiko Tsugawa em Chichi Ariki

Numa visita de estudo, uma criança, desrespeitando as ordens do seu professor, morre afogada num passeio de barco. O professor, apesar de não ter culpa, decide abandonar o seu ofício, considerando que falhou no dever de cuidar dos filhos dos outros. Deste modo, dedicar-se-á, apenas, ao papel de pai, educando o seu filho, Ryohei. Eis o ponto de partida para Chichi Ariki (Havia um pai) de Yasujiro Ozu.
Esta aceitação trágica do dever, tão cara à cultura nipónica, sublimemente exponenciada por Ozu será visível, também, nas relações entre Shuei e Ryohei. Veremos sempre o pai distante e zeloso, ávido por incutir disciplina no filho e desejoso para que este desenvolva um raciocínio lógico e matemático. Shuhei, o antigo professor de Matemática, deseja projectar no filho todo o seu saber de modo a que este suceda onde o seu pai falhara.
Será esta avidez pelo sucesso alheio - mas sentido como própio - que ditará a separação entre ambos. Ryhoei irá estudar para um colégio, enquanto que o pai rumará a Tóquio de modo a recuperar o desafogo económico de molde a poder custear a educação do filho. Havia um pai é um filme sobre o lado trágico da separação, a ausência de contactos e a necessidade do calor dos afectos. Veremos Ryhoei crescer alimentando a esperança de voltar a viver com o pai, enquanto que Shuhei mostrará sempre orgulho no filho (transformado em professor) e negará a união. Sempre com a esperança cega de querer o sucesso do seu rebento.
Haverá momentos de felicidade. Mas será uma felicidade fugaz como a vida que vimos apagar-se diante dos nossos olhos. Assim, a felicidade será sempre preenchida pelo vazio e pela esperança venturosa no novo reencontro.
Vimos pai e filho pescando em sintonia. A sintonia dos movimentos das canas, da atenção para com o leito do rio. A sintonia interrompida com a notícia da ida para o colégio interno. E vinte anos depois, reencontraremos essa mesma sintonia: pai e filho, numa alegria invisível e intraduzível por palavras. Uma sintonia apenas interrompida com a morte do pai, num longo e arrastado plano, em que Ozu não negou mostrar a face da morte.
Veremos Ryohei dizer: esperei vinte anos para viver com o meu pai. Pelo menos posso dizer que vivi com ele na última semana. A separação produziu este aparente paradoxo: o carinho e o afecto entre ambos cresceu avassaladoramente, mau grado nunca o terem expressado. Chichi Ariki é, também, um filme sobre união espiritual, tal como é um filme sobre o passado conforme indicia o título: Havia um pai, ...
O Pai, figura ausente e do passado, mas sempre presente na memória, para nos lembrar que existe, que se preocupa e que não deixa de pensar em nós. Nem que mais não seja em comunhão de espírito, mas com amor e carinho.

quarta-feira, junho 14

Intervalo

Em dias cinzentos como este, em que o plúmbeo das nuvens faz jorrar água, lembro-me sempre destes versos de Manuel da Fonseca quando olho para o rio:

"Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar

Lava-a de crimes espantos
de roubos, fomes, terrores,
lava a cidade de quantos
do ódio fingem amores (...)"

O Cinema segue dentro de algumas horas.

terça-feira, junho 13

Une femme est une femme

Jean-Claude Brialy e Anna Karina em Une femme est une femme


"Angela, tu es infâme."
"Non, je ne suis infâme. Je suis une femme"

Assim acaba Une femme est une femme, recriação Nouvelle Vague do eterno feminino. O primeiro filme de Godard a cores, em scope e, certamente, o filme mais efusivo do autor. À partida, poderíamos dizer que vimos o primeiro filme de Godard e Karina, mas acontece que este é o primeiro filme sobre Anna Karina. Paralelamente, Une femme est une femme é um verdadeiro bálsamo para a Alma. A sua originalidade, jovialidade e ipertinência embalam o espectador, tal como o embala a câmara de Godard, hipnotizada por Karina.
Une femme est une femme é um filme verdadeiramente Nouvelle Vague. Basta atentar que Godard ainda dialoga com Truffaut: Tirez sur le pianiste é formidável diz-nos Angela (Anna Karina), perdão Godard, e, mais importante, Jeanne Moreau, lui-même diz-nos que está a filmar Jules et Jim. Mas, a par deste diálogo pleno de cumplicidades, vemos, também, o humor corrosivo de Godard: Lubitsch (Jean-Paul Belmondo) dirá Hoje passa "O acossado" na TV. Eu quero ver!.
Simultaneamente, teremos a oportunidade de ver, em estado semi-embrionário, toda a linguagem cinematográfica que Godard desenvolverá em obras como Le mépris ou Pierrot le fou: actores dirigindo-se ao espectador, a procura de uma meta-linguagem, a exploração do absurdo e do surreal (os passeios de Émile de bicicleta pelo apartamento, as discussões de Émile e Angela, numa simbiose entre palavra (capas dos livros) e imagem), as inúmeras citações cinéfilas (a personagem de Belmondo, Lubitsch, é o exemplo mais óbvio)...


Vimos um exercício magistral de Godard que, enquanto aperfeiçoava os seus dotes enquanto realizador, não deixou de desconstruir o musical americano. Não é à toa que veremos Émile dizer Ce film n'est pas un musical. C'est une tragédie!. Godard procurou a re-invenção, a anarquia e o desrespeito das regras e dessa desordem nasceu um filme fundamental. Tudo isto a propósito de uma mulher que queria engravidar (Angela) contra a vontade do marido (Émile), aparecendo pelo meio o amigo voluntarioso: Lubitsch. Apesar da formação deste triângulo, Une femme est une femme foi sempre um filme sobre Émile e Angela. Com efeito, não vimos um triângulo amoroso tal como víramos em Jules et Jim de Truffaut. Pelo contrário, vimos uma análise ao melhor estilo de Godard acerca das relações entre homem e mulher, sendo que, neste casom ficámos assoberbados pela presença de Anna Karina, aquela que viria a ser recriada por Bardot em Le mépris.

Acima de tudo Godard provou que qualquer pretexto (ter um filho, neste caso) serve para se fazer um grande filme. Mais importante: Karina não é une femme. Ela é la femme, aquela que Godard projectou para o ideário masculino como a súmula das qualidades femininas. De musa do realizador, Karina passou a ícone da Nouvelle Vague para gáudio de todo o cinéfilo.

domingo, junho 11

Somos todos máquinas


"Tóquio é uma cidade com 340.000 trabalhadores"

Contemplando todos aqueles que se deslocam para trabalhar, o espectador vê-se confrontado, desde logo, com esta frase aparentemente inocente. Ozu, durante 144 minutos fará questão em demonstrar que essa é a frase que ditará o curso e oritmo de Primavera precoce ("Sosshun"), um retrato sobre a rotina em que até o mais simples dos prazeres se transforma em algo entediante.

Em Primavera precoce a maquinalidade domina. Os próprios actores assemelham-se a animais amestrados. Gestos repetidos, habituais e que, com o decorrer do filme, se tornam perturbantes. Primavera precoce é o filme dos ambientes intímos: espaços pequenos e acolhedores, aptos para transmitir uma sensação de calor e conforto, Paradoxalmente, será esse espaço diminuto a transmitir a opressão que domina todos os personagens.

Centrando a sua objectiva em Masako (Chikage Awajima), Ozu mostra-nos um homem real, com o seu emprego e as suas rotinas. É precisamente essa a chave deste belo filme: a repetição, a rotina vazia e sem sentido. E para que nos apercebamos dessa claustrofobia provocada pelo escritório precisamos de tempo. E, provavelmente, talvez este seja o que explica o facto de estarmos perante o mais longo dos filmes de Ozu...

Vimos as fugas à rotina, como o caso amoroso extra-conjuglal de Masako, ou o piquenique com os colegas do escritório. Mas vimos sempre um Masako alheado, frio e distante. E a suprema ironia surge no final, quando um velho trabalhador, num bar nos diz: Trabalhei 31 anos para perceber que a vida é um sonho vazio. E do mesmo modo que vimos esta rotina asfixiante, tivemos sempre a morte omnipresente, corporizada no colega doente moribundo. A rotina é uma doença que conduz à morte, e nem o sonho de querer trabalhar na Companhia a pode afastar.

Yasujiro Ozu levou a cabo uma viagem dura a um dos mais profundos valores da cultura nipónica, o trabalho, lembrando-nos que o trabalho não conduz à salvação. Pelo contrário, o trabalho transforma o Homem em máquina, fá-lo perder a sua individualidade: foi assim que vimos a multidão de trabalhadores de camisas brancas fundirem-se numa única mancha, levando à nossa incapacidade para distinguir uma única cara. Citando Pessoa, quase poderiamos dizer que vimos o retrato do cadáver adiado que procria. Indo mais além, podemos dizer que Ozu nos mostrou uma sociedade confortavelmente estupidificada (ou, se preferirmos, como no título de uma canção dos Pink Floyd: Confortably numb).

Vimos uma multidão de bares e de salas de estar, fomos testemunhas de conversas mil, mas em todas elas perpassou a sensação de vazio, não sem que víssemos outro dos temas caros a Ozu: a unidade da família. Com efeito, vimos a conversa dura dos colegas de Masako para com a sua amante, acusada de ser uma destruidora de lares, tal como vimos o conformismo e a aceitação do destino, nas inúmeras conversas entre mulheres afirmando que os maridos terem amantes era algo normal. Mas, mesmo nessas alturas, a rotina predomina e impõe-se.

De qualquer modo, a porta ficou aberta para a fuga: o rosto expectante de Masako e da sua esposa, fitando o combóio que os poderia levar para uma outra vida. Tudo se resume, pois, à aceitação de uma realidade que se auto-impõe ou à escolha corajosa de uma outra realidade.

quinta-feira, junho 8

A magia da projecção

Salvatore Cascio em Nuovo Cinema Paradiso

O jovem Toto, tal como todos os seus conterrâneos, procurava esquecer a pobreza da Sícilia rural e atrasada, fugindo para a única distração ao seu alcance: o Cinema Paraíso, santuário da imaginação e Meca dos sonhos. É no Cinema que esquecemos o que nos rodeia. (uma gargalhada, uma lágrima teimosa,...), mas cada um terá uma sensação única, irrepetível, intimamente sua. Cada um vive o seu filme. Rectius, cada um reconstrói o filme que viu.

Ver um filme não implica uma atitude passiva. Pelo contrário, há que interrogar-nos sobre o que vemos. Cinema é ilusão, como o mostra, por exemplo, o processo que transforma o dia em noite – a noite americana. E surge célere a questão: “o que vimos era, efectivamente, o que julgámos ver?” Instintivamente, somos acossados pela necessidade de desconstruir o que vimos, para a partir dos escombros resultantes erigirmos os pilares do que vimos e pensámos ver, lançando as fundações da nossa cultura cinéfila. A cinefilia é um exercício misto de memória e problematização.

Toto ficava com um brilhozinho nos olhos e ganhava uma alegria indisfarçável quando a sala escurecia. O rosto iluminava-se e sentia uma atracção fatal para poder entrar no coração dos sonhos: a cabine do projeccionista. É aí que conhecerá a solidão do cinéfilo, graças a Alfredo, aquele que trabalha sempre, faça chuva ou Sol e dá por si a falar com Clark Gable ou Rita Hayworth. O cinéfilo é um ser solitário.

Toto, por seu turno, gozará de sensações agridoces, sempre entre o prazer da projecção dos espectros e a angústia da solidão da cabine. E, de certo modo, temos traçado o perfil da Arte que nos hipnotizas: temos o prazer de ver um filme e, por vezes, damos por nós a lamentar a solidão a que nos votamos. Eis-nos perante a doença diagnosticada por Truffaut. Tudo residirá, pois, no sopesar de qual dos sentimentos prevalecerá. O cinéfilo dá preferência ao Cinema. Vive para ele.

Na verdade, o Cinema toma conta de nós, guia-nos, dá-nos lições de vida. Mais do que uma realidade paralela, projecta-se para a vida do dia-a-dia. Um filme nunca acaba quando a luz acende. Continua e, o mais das vezes, um qualquer acontecimento do quotidiano leva a que um qualquer plano nos incendeie o olhar. Nesse preciso momento atingimos, por assim dizer, o Nirvana: vivemos cinematograficamente.

É essa a essência do Cinema, o fascínio que, insidiosamente, vira obsessão: vemos um filme vezes sem conta e não nos cansamos, projectamo-nos nas histórias que vemos, tal como as imagens se projectam na tela. Ser cinéfilo é ser Cinema. É projectarmo-nos no que vemos. É abstrairmos a realidade física que nos rodeia. É fugir ao sensorial e entrar no universo dos espectros, os bonecos de luz que nos fazem sonhar. Não há realidades paralelas. Há apenas um ente híbrido, fruto da fusão da realidade que nos é dada a perceber com aqueloutra que nos abre as portas do imaginário.

Em conclusão: Cinema e Vida são um só. Um ente uno e indivisível, disponível para amar e ser amado.

domingo, junho 4

Quando a homenagem, também ela, é Arte

Max Schreck em Nosferatu, eine Symphonie des Grauens
Quando em 1922 F.W. Murnau assinou Nosferatu, eine Symphonie des Grauens (Nosferatu, uma Sinfonia de Horror), o realizador envolveu-se numa história rocambolesca em virtude de ter procedido à adaptação ilegal de Dracula, de Bram Stoker. Daí a necessidade de ter de recorrer a nomes fictícios (como Nosferatu), se bem que as semelhanças com o livro de Stoker eram facilmente perceptíveis e, consequentemente, levou a que fossem instaurados processos judiciais por violação de direitos de autor*.
Trata-se de aspectos que passam ao lado do espectador. Em qualquer caso, será lícito será lícito afirmar que estamos perante a adaptação ilegal de um livro mais bela de sempre. Rectius, estamos perante uma obra suprema da Sétima Arte. Em Murnau, tudo é perfeito. Aliás, a par de M e de Metropolis, ambos de Fritz Lang, este é um dos exemplos maiores do expressionimo alemão: décors absolutamente desproporcionados, recurso a sombras e luzes para acentuar as emoções, designadamente a insanidade de Nosferatu. Todo o expressionismo está em Nosferatu.
Na verdade, estamos perante uma belíssima adaptação de Dracula, onde avulta o triângulo entre Nosferatu, Mina e Harker, sendo que a relação entre Nosferatu e Mina será o verdadeiro motor de todo o filme. Aquilo que seria um filme de terror acaba, no fundo, por ser um romance deslumbrante. Aliás, só assim se entende que, após o sacríficio de Mina em favor de Nosferatu, este se deixe destruir através da exposição à luz. Tudo funcionou, pois, no limbo entre amor, desejo e sacríficio.
E se julgáramos que seria impossível atingir níveis de qualidade similares a esta obra suprema, Werner Herzog dissipou as dúvidas com o seu Nosferatu: Phantom der Nacht (Nosferatu, Fantasma da Noite).
Klaus Kinski em Nosferatu: Phantom der Nacht
Graças a mais uma memorável colaboração de Herzog com o genial Klaus Kinski, tivemos a oportunidade de ver a recriação, em jeito de homenagem, do filme de Murnau. E onde este acentuou o romance e onirismo, Herzog aprofundou a solidão do Vampiro, num longo e arrastado pathos do vampiro. Até a mais cruel das criaturas sofre, tal como sofrem todos aqueles que lidam com ele. Nosferatu, uma criatura de apetite voraz (e são sublimes os momentos em que Dracula procura satisfazer as suas necessidades) e que traz consigo inúmeras pragas.
Herzog brinda-nos com uma estética cuja poesia e lirismo nos transportam para o universo fantástico de Murnau, mas dá-lhe o seu toque pessoal, com alguns pós de comédia, como é o caso paradigmático do relógio de cuco de Dracula.
Se o Nosferatu de Murnau é a mais bela adaptação nascida de um ilícito, o Nosferatu de Herzog será, provavelmente a mais bela adaptação à guisa de homenagem de um filme. Mais do que homenagem, o Nosferatu de Herzog é um exercício de estilo, uma afirmação de cinefilia do seu autor e, acima de tudo, o reconhecimento da genialidade de F. W. Murnau.
* Murnau perdeu, tendo sido ordenada a destruição de todas as cópias de Nosferatu. Todavia, como à data da sentença já existiam algumas cópias em circulação, Nosferatu foi capaz de chegar incólume até aos nossos dias. Aliás, a talho de foice, refira-se que Herzog apenas se serviu dos nomes originais porque, à data (1979), Dracula já tinha caído em domínio público.

sábado, junho 3

O cair da noite

Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni em La notte
La notte é dos mais perturbantes filmes de Michelangelo Antonioni. Provavelmente, será o mais soturno e mórbido.
Trata-se de um filme em que, subliminarmente, Antonioni nos revela os seus propósitos logo no genérico inicial. Com o longo travelling descendente sobre o edifício Pirelli em que a câmara aponta para os vidros espelhados, o espectador fica logo de sobreaviso: nada do que parece é, e, mais importante, muito do que julgamos ver mais não é do que o reflexo do que queremos ver (daí a focagem de vidros espelhados, reflexos de uma outra realidade).
Mais do que apontar para um certo "impressionismo", Antonioni vai descer ao fundo do animus das suas personagens. Na verdade, La notte mais não é do que o retrato duro e cru de um certo ethos social. O travelling inicial assim o indicia: tal como descemos o edifício Pirelli, também a câmara de Antonioni incidirá, rectius cairá sobre Giovanni (genial Marcello Mastroianni), Lidia (sublime Jeanne Moreau) e Valentina (sensacional Monica Vitti). E o retrato não podia ser mais preocupante: não há sentimentos, emoções ou valores. Em suma, vimos, durante duas horas, o desfilar da mais perfeita alienação.
Usando da sua linguagem arquetípica, Antonioni procura a abstracção do sentimento. Tal é conseguido através da projecção dos sentimentos das personagens para o exterior. E o exterior, aquilo que as molda, resume-se ao somatório de prédios volumosos. Modernos no estilo e na arquitectura, mas impessoais e frios. De facto, é esse grau de coolness (passe o anglicismo) e vazio sentimental que vemos perpassar em todas as personagens: Giovanni, o escritor famoso e apático; Lidia, a sua mulher, sempre deambulando por Milão; Valentina, a filha do industrial rico e incapaz de amar...
Este é um pormenor que é evidenciado pela longa sequência da festa: vimos o desfilar da futilidade e da estupidez. Afinal, qual o significado da exibição de um cavalo numa festa? Ou qual a necessidade de, previamente, alguém às portas da morte querer beber champagne? Perguntas para as quais a resposta sairá titubeante, mas, provavelmente, talvez sejam o reflexo de querer fugir de uma realidade que oprime (veja-se o paradigmático passeio de Lidia por Milão). Em qualquer caso, é possível afirmar que é a mais bela das ironias. Tal como é irónico que toda esta soturnidade, morbidez e alienação sejam acompanhados pelo calor do jazz no último terço do filme, em perfeito contraste com o que vemos.
Antonioni, uma vez mais, levou-nos a fazer a travessia do deserto da ausência, da aridez da alma e da desnecessidade da palavra. Vimos a consumação do desabar de um casamento (entre Lidia e Giovanni) poucas horas após uma visita a um amigo moribundo. E, de certo modo, foi a morte que vimos e que essa visita antecipou: a morte do Homem enquanto tal e o triunfo da aparência e do reflexo. Em bom rigor, nada que não fosse adivinhável: da mesma forma que a câmara é sempre um filtro do que vemos, em Antonioni, para além desse filtro, são os próprios objectos a mesclar-se com a nossa visão: basta dizer que não foram poucos os planos em que o exterior foi filmado através de uma janela ou de qualquer outro ambiente interior...
Aliás, não deixa de ser sintomático que o filme acabe com a focagem do vazio da floresta. Do mesmo modo que Giovanni e Lidia não existem enquanto casal, também nada mais, porventura, existirá. E a conclusão é a mesma daqueloutra de uma canção de Jacques Brel: L'amour est mort.