domingo, junho 4

Quando a homenagem, também ela, é Arte

Max Schreck em Nosferatu, eine Symphonie des Grauens
Quando em 1922 F.W. Murnau assinou Nosferatu, eine Symphonie des Grauens (Nosferatu, uma Sinfonia de Horror), o realizador envolveu-se numa história rocambolesca em virtude de ter procedido à adaptação ilegal de Dracula, de Bram Stoker. Daí a necessidade de ter de recorrer a nomes fictícios (como Nosferatu), se bem que as semelhanças com o livro de Stoker eram facilmente perceptíveis e, consequentemente, levou a que fossem instaurados processos judiciais por violação de direitos de autor*.
Trata-se de aspectos que passam ao lado do espectador. Em qualquer caso, será lícito será lícito afirmar que estamos perante a adaptação ilegal de um livro mais bela de sempre. Rectius, estamos perante uma obra suprema da Sétima Arte. Em Murnau, tudo é perfeito. Aliás, a par de M e de Metropolis, ambos de Fritz Lang, este é um dos exemplos maiores do expressionimo alemão: décors absolutamente desproporcionados, recurso a sombras e luzes para acentuar as emoções, designadamente a insanidade de Nosferatu. Todo o expressionismo está em Nosferatu.
Na verdade, estamos perante uma belíssima adaptação de Dracula, onde avulta o triângulo entre Nosferatu, Mina e Harker, sendo que a relação entre Nosferatu e Mina será o verdadeiro motor de todo o filme. Aquilo que seria um filme de terror acaba, no fundo, por ser um romance deslumbrante. Aliás, só assim se entende que, após o sacríficio de Mina em favor de Nosferatu, este se deixe destruir através da exposição à luz. Tudo funcionou, pois, no limbo entre amor, desejo e sacríficio.
E se julgáramos que seria impossível atingir níveis de qualidade similares a esta obra suprema, Werner Herzog dissipou as dúvidas com o seu Nosferatu: Phantom der Nacht (Nosferatu, Fantasma da Noite).
Klaus Kinski em Nosferatu: Phantom der Nacht
Graças a mais uma memorável colaboração de Herzog com o genial Klaus Kinski, tivemos a oportunidade de ver a recriação, em jeito de homenagem, do filme de Murnau. E onde este acentuou o romance e onirismo, Herzog aprofundou a solidão do Vampiro, num longo e arrastado pathos do vampiro. Até a mais cruel das criaturas sofre, tal como sofrem todos aqueles que lidam com ele. Nosferatu, uma criatura de apetite voraz (e são sublimes os momentos em que Dracula procura satisfazer as suas necessidades) e que traz consigo inúmeras pragas.
Herzog brinda-nos com uma estética cuja poesia e lirismo nos transportam para o universo fantástico de Murnau, mas dá-lhe o seu toque pessoal, com alguns pós de comédia, como é o caso paradigmático do relógio de cuco de Dracula.
Se o Nosferatu de Murnau é a mais bela adaptação nascida de um ilícito, o Nosferatu de Herzog será, provavelmente a mais bela adaptação à guisa de homenagem de um filme. Mais do que homenagem, o Nosferatu de Herzog é um exercício de estilo, uma afirmação de cinefilia do seu autor e, acima de tudo, o reconhecimento da genialidade de F. W. Murnau.
* Murnau perdeu, tendo sido ordenada a destruição de todas as cópias de Nosferatu. Todavia, como à data da sentença já existiam algumas cópias em circulação, Nosferatu foi capaz de chegar incólume até aos nossos dias. Aliás, a talho de foice, refira-se que Herzog apenas se serviu dos nomes originais porque, à data (1979), Dracula já tinha caído em domínio público.

2 Comments:

Blogger Francisco Mendes said...

É incomensuravelmente maravilhoso verificar a menção a uma obra que passa despercebida a muitos: "Nosferatu: Phantom der Nacht" de Werner Herzog. A utilização de ângulos utópicos, de uma paleta de iluminação magistral, a manutenção do horror clássico e o envolvimento beleza mística resultam numa poderosa experiência visual.

Abraço!

P.S.: O cameo de Herzog neste filme é igualmente interessante: quando enfia o pé no caixão e é mordido por um rato.

2:39 da tarde  
Blogger Hugo said...

Caro Francisco, nem mais! Acho que o Herzog nesse cameo deve ter bebido a inspiração de Mestre Hitchcock :)

Abraço!

10:46 da tarde  

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