segunda-feira, julho 27

Mudámo-nos


(uma paragem em obras, com muita coisa a melhorar, mas, até mais ver, a serventia da casa)

terça-feira, março 17

Genial

Tinha de ser um "velho", a fazer de "velho" num filme de "velho" para nos lembrarmos da magnificência do cinema. Grande Clint, melhor filme.

terça-feira, março 10

Um belo motivo para maldizer a circunstância de ter de dar aulas às 20.30: falhar, inapelavalemente, este double bill. Godammn it!

domingo, fevereiro 22

Brumas

Algures assim: entre o denunciante envolto na bruma de Le Doulos, estugando o passo num corredor sombrio e os rostos dissecados até às entranhas por Cassavettes, em Faces. Eis o diário cinéfilo de ocasião.
Este blog anda num corropio, envolto em brumas, fazendo voos picados sobre o Mundo e as caras que ele tem, aguardando por um candeeiro capaz de iluminar a razão. O Cinema é Vida e, desta feita, há bem mais lá fora do que nestas linhas de ocasião. Mais do que a modorra sensaborona do Benjamin Button ou outros que tais. Mais do que a complacência da mundividência de Ozu ou a irrevência de João de Deus. Estamos, para já, lá fora e sem grande vontade de ir escrevinhando. Prefere-se uma boa conversa a dois do que soltar dúvidas de ocasião neste recanto...

domingo, fevereiro 1

Der Stand der Dinge

quinta-feira, janeiro 1

À guisa de balanço

Em sala, nada bateu a ante-estreia de Ne Touchez pas la hache, Mestre Rivette. No circuito comercial, La frontière de l'aube, de Garrel , Coeurs, de Resnais e The Darjeeling Limited, que teve o grão-condão de me fazer acordar para a vida e lançar-me à estrada: dois empregos novos. Um a nadar entre leis e decretos-lei como forma de ganhar a vida e outro a fazer (tentar) ensinar o Direito. Nunca se trabalhou tanto e, estranhamente, nunca se andou tão feliz por estas bandas.
Momento marcante: o concerto dos The National na Aula Maga, essa quase-catarse colectiva, a par da leitura da tradução em vernáculo de O homem sem qualidade, de Musil e das Histórias de Amor, de Robert Walser.
Revelação: os meus alunos.
Os fantasmas e assombrações continuam, da mesma forma que re-visitações a Ozu, César Monteiro, Bresson, Fassbinder e Straub-Huillet*. Pelo meio, continuarei a ter a Ana de Amsterdam, Miss Woody & Miss Allen, o Bibliotecário de Babel e a equipa do Corta-Fitas. Lendo-os, aprendo muito e lembro-me que há vida para além das letras impressas num qualquer écran. Nessa altrura, os inefáveis TMC, PRS, PRF e CSR, uma espécie de família adoptiva que me acolheu, estará por perto para me aturar. Tal como a minha bande à part.
* por ora, guardamos Glauber Rocha para os dias em que o frémito indómito de mudar o Mundo esmorecer. De qualquer modo, a caixa importada que mão amiga além-Atlântico trouxe já espera por mim.

sábado, dezembro 20

Lisboa. Aula Magna. Hora de almoço. Enquanto almoçava, ruminava nas hotas que tinha dado e que ia dar aos meus alunos. As minhas cogitações foram interrompidas pelo troar de um trompete e de um grupo de palhaços que animavam as hostes infantis que se iam acontanando à porta. Subitamente, lembrei-me que Fellini é que tinha razão: tudo isto é um grande circo.

domingo, dezembro 14

A queda


Tudo devia ser como o travelling inicial de La notte: uma queda abrupta, um voo picado que nos faz desembocar no sentimento mais íntimo, mais recalcado. Enquanto, simultaneamente, vemos o mundo reflectido no brilho dos nossos olhos, dissociando-nos da mansa acalmia com que gentil e estupidamente aceitamos as regras impingidas por terceiros. Caímos, estatelamo-nos e damos por nós a vaguear num deserto de sombras e corpos disformes e inertes, procurando algo que não sabemos muito bem o que é. A felicidade, talvez. Escondida na próxima esquina, no recanto de um edifício imponente ou de um casebre decrépito. Algures. Alhures. E continuamos a marcha, ainda combalidos pela queda que a consciência ditou.
A Wasted Blues, indirectamente, lembrou-me isso mesmo. Grato. Já iam uns tempos (quase dois anos) sem ver o filme. A edição é óptima.

segunda-feira, dezembro 8

Notas do quotidiano cinéfilo-domingueiro

Qual a probabilidade de, na senda de uma Sachertorte, esbarrar com Manoel de Oliveira, devidamente sentado numa cadeira no meio da Rua Anchieta, a preparar-se para filmar?

segunda-feira, dezembro 1

O Mundo tal qual como devia ser, devidamente filtrado, sereno, pacífico. Contemplativo. Ozu, pois claro.

domingo, novembro 30

O Excremento


"Then comes the long intestinal progress. The body, the heart of the matter, is full of excrement. Yet that's not where horror resides; that aversion - the repulsion for sgit - was instilled in us from earliest childhood, so the long progress is familiar and repetititve, like our daily progress. I believed, already tired of what seemed simplistic, somewhat childish provocation. So I thought, keeping a safe distance. But, of course, that's exactly what's at stake: the roots of good and evil in the virginsoil we all begin with, that soil made fertile, yes, fertile, by excrement"


Catherine Breillat, cineasta
Perverso? Sim. Horrível? Com certeza. Perturbador? Não haja dúvidas.
Salò é tudo isso, mas, também, uma obra-prima, capaz de metaforizar na perfeição a pós-modernidade, aquela sociedade onde tudo tem um valor venal. Não só o conhecimento como bradava Lyotard, mas, literalmente, tudo. O corpo, inclusivé. Daí que Salò, essa metáfora sádica, tenha de ser vista antes de cair o chorrilho de críticas. Afinal, Pasolini, o cineasta não-cineasta consegue aqui alcançar a perfeição da sua estética: total depuração, enquadramentos que fazem lembrar pinturas renascentistas. Tudo é uma quadro grotesco onde a câmara - e, consequentemente, o espectador - é colocada a uma distância segura, neutra. O objectivo confesso, esse, é perturbar. Fazendo-o, consegue o objectivo. Descreve o Mundo tal como ele é e lembra que o poder, desregrado, gera anarquia.

domingo, novembro 23

Fantasmas

O preto e branco, sim. Mas, acima de tudo, a capacidade de recorrendo às técnicas mais simples: a mudança de sequências a ecoar no mudo, produzir uma obra belíssima. Recorrendo às preciosidades do mud, sempre se dira que, da mesma forma em que vemos a imagem fechar-se sobre si, caindo o preto no écran, também este é um filme onde Garrel volta a centrar-se sobre si e os seus fantasmas, re-analisando paixões passadas.
Mais importante, é um filme belíssimo, lembrando o amour fou de Breton e, de certa forma, o cinema poético que o próprio Garrel fazia na década de 70. Afinal, existem ali passagens que ecoam Athanor. Filme de silêncios, de vozes interiores que nos transportam do consciente para o inconsciente, do real para o surreal. Um limbo, uma fronteira, precisamente a fronteira anunciada pelo título e que dá o mote para o quem vem: La frontière de l'aube, a incpacidade de distinguir real de sonho. A capacidade de levar a poesia a modo de vida, mesmo que seja um amor doentio e trágico.

sábado, novembro 22

sábado, novembro 15

Outono. Inverno. Primavera. Verão.
Este blog cairá de novo na modorra/parcimónia escrita, dado que vai (re)deleitar-se com a visão rohmeriana das quatro estações.

domingo, novembro 2

Dia de Todos-os-Santos


Lembrar o grito enraivecido de James Mason God's wrong, Deus falhou, perdeu-se, abandonou-nos. Encontrámos o conforto na provocação buñueliana: Sou ateu, graças a Deus. Não contentes, revisitámos Viridiana e os sentimentos reprimidos, o rebanho a entrar para uma igreja em El angél exterminador para um qualquer fantasma nos deixar presos de nós próprios, confrontando-nos com a produndeza abismal da nossa alma. No fim, sobreveio a crença cega na palavra, o apaziguamento que só a tranquilidade e a idade nos dão. Ordet. E tudo pareceu fazer sentido, enquanto contemplávamos o horizonte, sentados no cais da esperança, abrigados pelo cheiro intenso das laranjas que um vendedor clamava não conseguir vender.

quinta-feira, outubro 30

domingo, outubro 19

Paciência



Autismos à parte, cada vez mais prezamos a forma delicada e atenta de ver o Mundo de Ozu ou de Naruse. Se o último gosta de acariciar as mulheres com a câmara, Ozu diverte-se a centrar-se no quotidiano - portuguesmente falando, a agarrar num funcionário público e na sua bica matinal - para, com humor e economia de meios, traçar um enredo complexo, dominados pelo sentimento e, sobretudo, pelo que não vemos, mas pressentimos. É, provavelmente, a mais pura forma de fazer Cinema e, simultaneamente, a melhor forma de habitar neste mundo-cão: sentado, a um canto, vendo todos os outros a prosseguir com os seus pequenos grandes dramas pessoais. Sem espalhafato. Apenas com paciência e qualidades de observação.

sábado, outubro 18

Autismo

Reagir perante a adversidade do Mundo de forma autista, julgando que podemos conquistá-lo e modelá-lo à nossa vontade. Algo que todos, mais cedo ou mais tarde, sonhamos. Se em Die Blechtrommel Oskar Matzerath é bafejado com esse dote supremo, o seu egoísmo maquiavélico cede, em teoria, perante um gesto mais simples: tapar os ouvidos e ignorar o mundo em volta. É, precisamente, o que acontece no segmento de Claude Chabrol de Paris vu par... e, no mundo real, também é assim que todos nos comportamos. Ao realismo mágico, o pragmatismo.
Ou, se se preferir, à recriação de efeitos de Mélliès e à emulação do cinema mudo de Schlondorff, devidamente temperados pela fantasia mágica do romance de Grass, neste recanto prefere-se a simplicidade aparente de tentar captar a realidade*. Por outras palavras, revemos Die Blechtrommel e não conseguimos dizer nada excepto "excelente adaptação". Provavelmente a precisar de mudar os óculos que se colaram ao meu nariz, não vejo mais nada para além disso. Um docudrama, que entretém com qualidade e, por sinal, dá ares de Cinema, isto é, de um objecto que conhece a História que correu antes da sua feitura. Mais nada.Estranhamente, gosta-se do dito. Mas não o suficientedo que para o rever de quinze em quinze anos.
Adenda: Não que por aqui não se goste de opulência. Todavia, nessas alturas ficamo-nos pelo negativismo decadente de Visconti ou pelo impressionismo de Ophüls e a sua câmara a dançar valsas. Felllini, o grande mentiroso, é um universo completamente à parte disto tudo.

sexta-feira, outubro 17

Cefalù


Cefalù, aristocrata decadente, de olhar afectado e sobrolho franzido. Decadente no bem estar económico, do mesmo modo que o ambiente envolvente é pautado pela decadência de costumes e por uma família patriarcal erigida em modelo superior de cultura. Divorzio all'italiana, a comédia negra que esconde uma crítica social perspicaz ao anacronismo da família erigida em torno do bonus paterfamilias e da exacerbação desproporcionada da honra. Ontem como hoje, uma obra-prima da comédia, plena de actualidade. E um Mastroainni soberbo.

quarta-feira, outubro 15

Revisões

As revisões têm disto: relembrar cenas que marcaram, ideais que jaziam algures numa caixa perdida na cave. Le salaire de la peur, para além do seu anti-americanismo latente, faz tomar consciência de uma coisa tão óbvia e corriqueira que por vezes nos esquecemos dela: o lucro, por via de regra, alcança-se à custo de algo ou de alguém. O lucro torna-nos vazios, cegos e prontos a cometer loucuras. O lucro consome a bondade do Selvagem que somos. É um Leviatã. O Mundo não é um local para pessoas afáveis ou propensas à simpatia. O Mundo, esse que guia todos os outros que se vendem é um sítio feio. De tanto vermos a violência, parecemos esquecer o óbvio.
Clouzot, com a mestria no domínio do suspensa e da magistralidade a criar ambiente e a esculpir figuras e rostos por entre luzes e sombras, limita-se dramatizar e exponenciar o óbvio. O Mundo é sujo e feio. A ironia reside no facto de ser o Cinema a lembrar-nos isso.

domingo, outubro 12

O Cinema é isto

Vemos os espectadores a entrar, tomando o seu lugar; vemos uma peça representada como se estivessemos num teatro; de repente, vemos um filme projectado lá ao fundo e, de repente, já estamos no meio das imagens propriamente ditas. É esta fusão, esta capacidade de nos fazer navegar entre mundos diferentes, não distinguindo, ao certo, o que vemos, que resume o Cinema.
É Oliveira, é Le soulier de satin, uma projecção no infinito, perdida entre a História, a ficção e a reflexão sobre a Arte.

domingo, outubro 5

Le bonheur n'est pas gai


Esplendoroso Ophüls, que me relembrou o prazer puro e simples do Cinema, enquanto ia ruminando em tudo o que me rodeia. O movimento de câmara que se assemelha a uma valsa, dançada graciosamente enquanto descemos ao âmago da questão: o prazer que todos procuramos e que dificilmente alcançamos. Em Ophüls tudo se funde, rendido à câmara. Já o espectador, esse, arrisca-se a sair perdido no manto de névoas que serve de moldura às personagens.
No fundo somos todos como o dançarino da sequência inicial: na busca egoísta do prazer, pomos uma máscara para não sermos reconhecidos ou para maquilhar a idade que se faz sentir.Fazendo-o, perdemos o controlo. Caímos no abismo e tornamo-nos marionetas nas mãos do nosso egoísmo.

domingo, setembro 28

Tortura


Voltei a reencontrar-me com o conforto da inquietação que as imagens projectadas no fundo da sala escura trazem à alma. Revi o inclassificável El Ángel Exterminador, de Buñuel. Quando as luzes se acenderam, nunca me senti tão aliviado por sair da sala. Mais do que agarrado à prisão moral/física que vi desfilar à frente dos meus olhos, Mestre Buñuel teve o condão de me incomodar, de criar náuseas, de não me deixar indiferente. O Cinema, mesmo quando nos deixa de rastos e com náuseas, é precisamente isto: bater no fundo da nossa alma, transida por um fio de suor banhando o corpo que, para aliviar, ri das tiradas anti-burguesas (rectius, contra uma certa sociedade instituída) que pululam ao longo do filme.

sexta-feira, setembro 26

Escapismo


Gostava de ser como Teixeira de Pascoaes: esquecer o mundo das leis, dos códigos e do papel de embrulho que alguns tribunais fazem deles, refugiando-me no ritmo cadenciado e ditado pela Lei Natureza, como forma de telurismo existencial. Como faltam o engenho e a arte, fico-me pelo Cinema, preferencialmente o Cinema "com nervo". Aquele tão intenso onde até ouvimos as palavras a arfar no peito dos actores, devida e ponderadamente embalados pelo vento que serve de moldura à cena. Um Straub-Huillet é sempre o porto seguro dos dias difíceis. E poucos subtítulos são tão luminosos como o de Nicht Versöhnt: apenas a violência ajuda onde a violência impera. ["nur Gewalt hilft wo Gewalt herrscht"].
Adenda: dei por mim a ler o Elogio do Passeio Público, de Filipa Martins. Gostei, mas nada que me tire o Cinema "à flor da pele" de Straub. Não é uma questão de elogiar ou contemplar quem passa ou quem vemos. Pelo contrário, tudo se resume a, à imagem das palavras que queimam o peito das personagens de Straub-Huillet, a procurar combater o que nos rodeia. Mais do que contemplar, resististir. [e, note-se, isto é, apenas, brincar com o título do livro de Filipa Martins. Nada de confusões, que não sou crítico literário. Mas que gostei do livro, lá isso gostei]

quinta-feira, setembro 25

César Monteiro e Ozu

Disse a dada altura que Ozu e César Monteiro eram cineastas de cabeceira, entidades que serviam entre si como freio e contrapeso, à imagem daquilo que pelas terras to Tio Sam se sói designar como checks and balances*. Se é certo que ambos tratam de universos absolutamente díspares, há, no mínimo, algo que os aproxima: a contemplação minuciosa do real.
Não obstante, enquanto Ozu "fica" por dramas familiares, jogando num mise-en-scène frugal e espartano, César Monteiro parte do real para levar o espectador a um limbo algures entre o real e o surreal. Um realismo mágico, quiçá. Ozu parte do real e, aparentemente, fica prisioneiro desse mundo que observa, descreve e onde as suas personagens passeiam, tendo como único escape o humor. César Monteiro parte do real, ultrapassa-o e regressa, fazendo passear os seus alter egos - João de Deus, o "tio" Jean de Dieu e o "primo afastado" João Vuvu - como objecto não identificado que olha o real, vive nele e opta por criar um universo próprio, sem nunca largar a âncora que o prende ao real: contempla, movimenta-se e faz gestos caricatos, que parecem zombar todos os outros transeuntes.
Confusos? Imaginem um plano à Ozu, com a câmara à altura do solo, contemplando João de Deus, esse mafarrico perdido entre a ironia vitriólica e a realidade que consome o seu corpo, e o resultado fica à vista. O ponto de partida é o mesmo. Todavia, César Monteiro transveste o real com um manto diáfano de ilusão mágica e levemente surreal.
*Um bom constitucionalista explicará que é o sistema que explica a circunstância de os vários órgãos de soberania dos Estados Unidos da América viverem num equilíbrio frágil, ora dando poderes, ora retirando, num meticuloso jogo de equilíbrios instáveis ao nível constitucional. Eu, pobre civilista em construção (provavelmente nunca finda), sou incapaz de explicar tal coisa.

domingo, setembro 14

O facto de, ao entrar em casa, esbarrar sempre em M. Hulot de mão dada ao sobrinho faz-me lembrar pesarosamente de uma coisa simples: com a idade, perde-se a inocência de viver e cai-se num vórtice de agonias existenciais tolas. Tudo é tão simples como um simples dar a mão ao próximo: partilhar, criar laços, acreditar num qualquer pedaço de criação. Tão simples e tão difícil.

sábado, agosto 30

Sachertorte

Dei por mim a mastigar uma Sachertorte em plena Baixa. Enquanto o fazia, veio-me à ideia Michele Apicella divagando sobre os seus dilemas existenciais, olhando para o chão e, de súbito, a bradar lá para cima-não-se-sabe-muito-bem-para-quem.
Moretti, esse realizador talentoso com o seu quê de egocêntrico*, devia ser promovido a génio-pasteleiro-cinematográfico: a Sachertorte até que é uma boa metáfora para uma definição de filme:
- uma carapaça apetecível e tentadora;
- um fio de doce de alperce a separar as camadas de chocolate, sem descurar a união do conjunto, precisamente o que se pede a uma narrativa digna desse nome;
- a capacidade de, em pleno acto de degustação, esquecermos o Mundo. Aquilo que acontece quando o filme nos prende.
Que se danem as especulações fúteis sobre o CGI, o penteado da actriz, o guarda-roupa, et ceter. Um filme é como uma Sachertorte: à primeira dentada distinguimos de imediato o trigo do joio. Pior, como ficamos viciados, acabamos por voltar para mais uma fatia. Curiosamente, tal como a Sachertorte, por via de regra, o grande filme é despido de grandes enfeites e esconde uma complexa simplicidade por trás da sua máscara.
C'os diabos. Depois disto fiquei com fome...
*Egos à parte, gostamos bastante dele (Moretti, entenda-se) neste recanto.

sábado, agosto 9

Delírios violentos

De punhos no bolso, de punhos cerrados e com o olhar perdido no vazio. O gesto mais comum das personagens de I pugni in tasca.
Uma família cuja mãe cega é incapaz de administrar e controlar. Resumir-se-ia assim I Pugni in tasca, de Marco Bellochio. Será esta, também, a metáfora para caracterizar a Itália dos anos 60 nesta viagem violenta às profundezas da loucura, onde vemos crescer lentamente uma doença mórbida que se transforma na mais perfeita normalidade: a incapacidade de relacionamento, a comunicação feita pela agressão, a claustrofobia familiar. Um cadinho de sentimentos contraditórios que causam incómodo. Não só porque são um libelo acusatório contra uma classe, mas também porque mostram inelutavelmente o efeito da autodestruição e da incapacidade de reagir à inércia.
Personagens de rosto duro e apagado, tal como o universo onde habitam. Um mundo de sombras onde nos perdemos e, simultaneamente, damos por nós a encontrar o Cinema na sua pureza: na paixão com que é filmado e na total ausência de artifícios para reflectir sobre o Mundo envolvente.

segunda-feira, agosto 4

Cada vez mais cheira a cemitério a minha estante.

domingo, julho 27

Anacronismos

Por motivos vários, dei por mim a contemplar as minhas estantes: curiosamente, a maioria dos escritores e realizadores que as enchem e povoam este Universo já não andam por cá. Emana das minhas estantes um odor de saudade, um vazio profundo e um ligeiro cheiro a cemitério. São poucos os contemporâneos que merecem entrar nelas: Wes Anderson, Herzog, Wenders e Straub no que ao Cinema diz respeito (Jean-Luc e demais "turcos" vivos já estão no patamar de lendas vivas...), Alberto Pimenta, Maria Velho da Costa ou Lobo Antunes nas Letras. Definitivamente, não pertenço ao tempo que me rodeia: à velocidade vertiginosa informação dita "na hora", prefiro a reflexão pausada, pensada e ponderada. À facilidade da tecnologia, prefiro o prazer da reflexão.
É como os senhores que, por exemplo, primeiro teorizaram o Direito ou a Economia: como estavam muito próximos da realidade, descreviam-na na perfeição, sem adornos, sem verbos de encher. Com o Cinema e com a Literatura não é diferente: nada como os criadores de rupturas, os precursores, aqueles que, perante uma certa realidade, foram capazes de dominá-la e dar-lhe novas formas. Apenas graças ao génio. Sem efeitos especiais, sem ajudas da técnica ou de computadores. Ali, nos tempos pioneiros de Grifith ou nos estúdios disformes de Murnau, Lang ou Pabst, jogando com a câmara.
Definitivamente, não fui devidamente apresentado a este Mundo. Como diria o Matt, we're half awake in a fake empire.