terça-feira, julho 31

Estate violenta

Michelangelo Antonioni (1912-2007)
Verão violento este que nos deixa abandonados no deserto da solidão e da ausência. Michelangelo Antonioni filmava desertos, planaltos de alienação e mares de incomunicabilidade. Mostrou o caminho da modernidade através da imagem e da abstracção. Também ele caminhou ontem para o grande vazio.

segunda-feira, julho 30

Requiescat in pacem

(Ingmar Bergman 1918-2007)

As palavras dos outros

Ora nem mais.
Em jeito de glosa - se me é permitido - o Cinema é, no essencial, uma mundividência particular. É um conjunto de imagens (in radice, 24 fotografias por segundo) destinadas a exprimir a visão do seu autor. Daí que o dito "cinema de Autor" seja mesmo o único que interessa. É "o" Cinema, porque não se limita a encaixar, o mais das vezes de forma acrítica, nos convencionais 90 a 120 minutos uma qualquer história banal. Independentemente do estilo do autor X ou Y, o que importa é a sua capacidade de pegar certos temas, glosando-os e desenvolvendo-os. A partir do momento em que temos a sua ambiência, o seu estilo e os seus temas, temos autor e, por maioria de razão, Cinema, de maior ou menor qualidade. Acontece que esta conclusão já depende de factores imanentes ao autor (talentoso ou não) e, também, do gosto e da sensibilidade do espectador: é que, como se sabe, o espectador é dotado de pré-compreensão, daí que dificilmente vá de cabeça vazia para ver um filme. Ou seja, dificilmente é neutro ao que vê.

sexta-feira, julho 27

O prazer primeiro*


Em Iosseliani, o prazer ocupa lugar de destaque: todo e qualquer personagem procura um refúgio onde possa fazer uma pausa na sua vida, esquecer todos os outros que o vão acompanhando diariamente para concentrar-se naquilo que verdadeiramente importa. E o que importa são coisas frugais: a música, a comida, a bebida e o convívio fraterno e honesto entre amigos. Nesse centro da amizade onde o hedonismo marca lugar cimeiro, temos a oportunidade de verificar a estupidez da correria diária. Tal como n'O colosso de Maroussi, de Henry Miller conta tudo menos o dinheiro: apenas se procura a felicidade e ela está no gozo dos pequenos prazeres. Nem mais, nem menos.
*ou como viver cinefilamente orientado durante alguns dias.

domingo, julho 22

Auto-análise

"Um homem sem compaixão é como um animal. Sê misericordioso com todos os outros homens qualquer que seja a condição deles, porque todos os homens são iguais."

Rever Sansho Dayiu de Kenji Mizoguchi equivale, geralmente, a tomar consciência da besta que há em nós.

quinta-feira, julho 19

L'eclisse

...ou de como Antonioni nos oferece, com a mestria costumeira, uma metáfora da monotonia do quotidiano e do deserto das relações que o mesmo impõe.

terça-feira, julho 17

Pavese

Não o que serviu de base a Quei loro encontri, do casal Straub-Huillet, mas outro, sempre belo e luminoso:

"A quei tempi era sempre festa.Bastava uscire di casa e traversare la strada, per diventare come matte, e tutto era cosí bello, specialmente di notte, che tornando stanche morte speravano ancora che qualquosa succedesse, che scoppiasse un incendio, che in casa nascesse un bambino, o magari venisse giorno all'improviso e tutta la gente uscisse di strada e si potesse continuare a camminare fino ai prati e fin dietro le colline."

Cesare Pavese, La bella estate, Turim: Einaudi, 1998, p. 3

domingo, julho 15

De Deus, do Diabo e da Terra do Sol*

À minha caríssima Miss Blues, à guisa de penitência por tê-la deixado à mercê de uma Armada atlântica:
Sabe-se que o Ser Humano tende a guiar-se pela conveniência. O mais das vezes porque está encandeado por uma qualquer visão miraculosa capaz de cegar. É a incapacidade de pararmos e olharmos para o lado. Tal como um jumento numa carroça, apenas vemos o que está à nossa frente. Nem mais, nem menos. A dada altura, no filme do Glauber, sugere-se que se deve matar todos aqueles que fazem o Mal. A beleza da evolução civilizacional está, precisamente, em não o fazer, em limitarmo-nos a largar um sorriso trocista e seguir em frente quando não gostamos do pedaço inútil de criação com que temos a infelicidade de trocar palavras de circunstância. Também no filme do Glauber (Deus e o Diabo na Terra do Sol, obviamente) sugere-se que a carabina certeira de António das Mortes será o meio infalível para alcançar a guerra da libertação: uma vez mortos os ícones de ambos os lados da contenda (Deus e o Diabo, claro), tudo se resumirá à libertação, rectius revolução que lavará o sertão de mágoas e crimes.
Nos tempos modernos, o mais das vezes, a visão que cega um comum pedaço de criação resume-se à espuma ilusória e fugaz de uns quaisquer 15 minutos de fama. A revolução que libertará o sertão talvez seja a capacidade de distinguir essencial de acessório, a capacidade de perceber que, mais do que procurar fama e reconhecimento, o que é essencial é deixarmo-nos guiar pelas pequenas coisas, aquelas que importam verdadeiramente (e que vão desde um envergonhado raio de sol atravessando o cortinado passando pelo sorriso cândido e ingénuo de um petiz). Mais do que uma revolução violenta, apenas importa a revolução silenciosa da mentalidade, o António das Mortes que dá pelo nome de bom senso, aquele capaz de postergar o manto diáfano da aparência, fixando-se no Eu verdadeiro.
*Ou: uma espécie de metáfora moderna em 15 linhas.

sábado, julho 14

Belle toujours, um belo divertimento moral

Não nos iludamos: para saborear ao máximo Belle toujours, de Manoel de Oliveira convém conhecer minimamente quer o objecto homenageado - Belle de Jour, de Luís Buñuel - quer a obra de Buñuel*, dado que, ao fim e ao cabo, Oliveira traça um singular (e salutar) diálogo com a obra buñueliana. Fazendo-o, dá-nos um aparente divertimento musical que encerra uma profunda reflexão existencial, que vai desde a sexualidade à religiosidade. Tudo isto através de uma sábia gestão dos silêncios, dos gestos e da própria palavra.
Este é um retrato das sombras do tempo e das suas marcas ou não estivessemos perante o reencontro de Husson e Séverine e, paralelamente, é também uma comédia de costumes, já que, a toda a hora, vemos lançadas farpas sobre o matrimónio. Mas - homenagem das homenagens - tudo redunda numa elipse monumental: Séverine e Husson reencontram-se sem nunca sabermos o que este disse ao marido de Séverine. Acto contínuo veremos um momento Buñueliano: um galo atravessando uma porta. Oliveira esquiva-se a procurar explicar, rectius tentar. Daí que Belle toujours seja uma homenagem ao outro mestre Ibérico, revisitando as suas personagens, o seu ambiente surreal e um dos seus recursos preferidos: a elipse. Se é certo que Belle toujours é um profundo ensaio sobre a existência, a solidão e o amor, não menos certo é que tal ensaio está ancorado nos sólidos alicerces da elipse.
Tudo parece pairar de forma surreal em Paris, tudo se constrói graças a puros acasos e, não obstante, tudo faz sentido neste belíssimo filme. Algo que só está ao alcance de poucos.
* Frase propositadamente redutora. Também se homenageia, por exemplo, o Cinema Mudo. Veja-se o encontro de Séverine e Husson frente a uma montra.

quinta-feira, julho 12

Ironia (mais uma)

Sabe-se que Portugal tem cineastas singularíssimos (citemos, apenas, António Reis, João César Monteiro e, dos vivos, Pedro Costa e, claro, Manoel de Oliveira). Sabe-se que o público luso, por via de regra, está desligado dos seus cineastas. Sabe-se que o Cinema luso não desperta grande curiosidade nas pessoas e procura no mercado nacional. Sabe-se tudo isto, mas o que é demais, é exagero. É preciso os nossos vizinhos lançarem uma caixa muito simpática do Mestre para, finalmente, este lado da fronteira começar a dar valor aos seus?
Ironia das ironias, até Le soulier de satin e Os canibais- esses portentos de filmes - vêm incluídos no lote. Quando teremos direito a uma, sejamos pouco exigentes, congénere com 4-5 filmes e ao mesmo preço? Com jeitinho, a 30 de Fevereiro.

domingo, julho 8

Contemplação II

Em Lundi Matin, de Otar Iosseliani, o novel amigo italiano de Vincent diz, a dada altura, Vem comigo.Vou mostrar-te a verdadeira essência de Veneza. E, contrariamente ao que poderíamos pensar, leva-o para os telhados da Cidade, dando a contemplar a Vincent toda a magnificência da cidade italiana. Por vezes, também nas relações com o Outro, essa atitude de equidistância é necessária para aferirmos da verdadeira natureza do interlocutor. É aí, na contemplação distanciada do gesto do outro, que, o mais das vezes, acabamos por ver o cinismo, o calculismo e a falsidade do gesto alheio. O quotidiano, máquina sombria que impõe o gesto continuado, o hábito repetido à exaustão e, consequentemente, obsta à reflexão sobre os gestos condicionados que vamos praticando, é, assim, um impedimento maior ao conhecimento do outro.
Precisamente por isso, Vincent abandonou o seu mundo, a sua4L, a sua fábrica e a sua família, com o objectivo de ver e conhecer o Mundo. De permeio, experimentou os pequenos (grandes) prazeres da vida e pôde aferir da essência da Humanidade que o rodeia. Adoptando, sempre, uma atitude contemplativa. Talvez todos sejamos viajantes à procura do momento certo para fugir e ver o mundo que o dobrar da esquina esconde. O que importa é a atitude com que o fazemos. Contemplativa, de preferência. Só assim podemos sorver o que a Vida nos oferece e, simultaneamente, conhecermos os que nos rodeiam, postergando as máscaras que muitas vezes utilizam.

quinta-feira, julho 5

Comunhão com a Natureza

Em Lady Chatterley, da francesa Pascale Ferran, é-nos oferecido um belíssimo quadro impressionista. Tudo se passa - no que ao motor do enredo diz respeito - em plena Natureza. Uma cabana perdida numa floresta é o cenário escolhido para os amantes se conhecerem, encontrarem e perderem, tendo sempre como testemunha fiel e cúmplice a Natureza. O que nos leva para um filme de sensações e impressões. Muitas. Mais do que o erotismo puro e duro, Ferran opta por um filme intimista, onde o estado de espírito pesa mais do que o impacto visual da nudez dos corpos. Fazendo-o, faz-nos reviver alguns quadros impressionistas. De Renoir, pai e filho. Se dúvidas houvesse que a Natureza impera, basta atentar nos inúmeros (e belíssimos) inserts da fauna local. A mesma que decorará o corpo de Lady Chaterley num momento sublime. São filmes destes que fazem falta: densos e simultaneamente simples, provando que, num filme (e eis uma tirada redutora), uma boa história, realização competente e actores à altura bastam para obter um grande resultado.
E algo que também não é despiciendo: é bom ver que o Cinema, a espaços, ainda vai sabendo tratar condignamente a Literatura.

segunda-feira, julho 2

Après la haine

Curiosamente ou não, o Cinema francês recente tem-me brindado com alguns dos mais belos momentos cinematográficos (e ainda ontem vi Lady Chatterley, um filme portentoso). Aqui é uma das mais belas sequências que conheço, retirada de Dans Paris, o filme que, entre outras coisas é o elogio da depressão e do amor. Mais coisa, menos coisa, precisamente o que vem depois do ódio.

domingo, julho 1

Da incompreensão: White Dog

White Dog será, provavelmente, dos filmes mais vilipendiados que há memória e, também por isso, dos menos conhecidos (leia-se, vistos) de Samuel Fuller. Afinal de contas, tendo em consideração a fama de Fuller e o facto de esta ser a a história de um cão treinado para atacar negros - um White Dog que, ironicamente ou não, até é branco como a neve - e tudo apontava para as leituras simplistas que lançaram o epíteto de racista e reacionário.
Ora, só um cego pode dizer uma barbaridade dessas. White Dog é uma portentosa metáfora do racismo. Ao fazer de um animal irracional o protagonista de todos os ódios raciais que imperam nos EUA, Fuller limitou-se a demonstrar, precisamente, o que o racismo é: um medo absolutamente primário e irracional. Se dúvidas houvesse quanto à visão negra de Fuller, ela é dada a final: um treinador de animais negro combatendo o ódio do cão. Sobra uma conclusão: os maus instintos (os vícios, na expressão enfática do filme) vingam sempre, mesmo quando tudo se resume a um duelo mano-a-mano. Em White Dog - como é timbre do Cinema de Fuller - o medo é a semente de violência. É o catalisador de reacções. É ele que explica as várias reacções dos intervenientes. Mas White Dog é mais do que uma história sobre ódios raciais: também é uma curiosa abordagem das relações ente Homem e animais, inserindo-se, assim, na linha de obras como Au Hasard Balthasar de Robert Bresson.
Este é um Fuller vintage: seco, directo e violento. Uma obra a carecer de divulgação para que, finalmente, veja retirados os falsos (e absolutamente infundados) epítetos de que tem sido alvo. Se dúvidas houvesse quanto à mestria de Fuller, elas ficam dissipadas: a utilização de técnicas típicas do filme de terror é levada ao extremo na construção de um filme denso e acutilante.