domingo, junho 11

Somos todos máquinas


"Tóquio é uma cidade com 340.000 trabalhadores"

Contemplando todos aqueles que se deslocam para trabalhar, o espectador vê-se confrontado, desde logo, com esta frase aparentemente inocente. Ozu, durante 144 minutos fará questão em demonstrar que essa é a frase que ditará o curso e oritmo de Primavera precoce ("Sosshun"), um retrato sobre a rotina em que até o mais simples dos prazeres se transforma em algo entediante.

Em Primavera precoce a maquinalidade domina. Os próprios actores assemelham-se a animais amestrados. Gestos repetidos, habituais e que, com o decorrer do filme, se tornam perturbantes. Primavera precoce é o filme dos ambientes intímos: espaços pequenos e acolhedores, aptos para transmitir uma sensação de calor e conforto, Paradoxalmente, será esse espaço diminuto a transmitir a opressão que domina todos os personagens.

Centrando a sua objectiva em Masako (Chikage Awajima), Ozu mostra-nos um homem real, com o seu emprego e as suas rotinas. É precisamente essa a chave deste belo filme: a repetição, a rotina vazia e sem sentido. E para que nos apercebamos dessa claustrofobia provocada pelo escritório precisamos de tempo. E, provavelmente, talvez este seja o que explica o facto de estarmos perante o mais longo dos filmes de Ozu...

Vimos as fugas à rotina, como o caso amoroso extra-conjuglal de Masako, ou o piquenique com os colegas do escritório. Mas vimos sempre um Masako alheado, frio e distante. E a suprema ironia surge no final, quando um velho trabalhador, num bar nos diz: Trabalhei 31 anos para perceber que a vida é um sonho vazio. E do mesmo modo que vimos esta rotina asfixiante, tivemos sempre a morte omnipresente, corporizada no colega doente moribundo. A rotina é uma doença que conduz à morte, e nem o sonho de querer trabalhar na Companhia a pode afastar.

Yasujiro Ozu levou a cabo uma viagem dura a um dos mais profundos valores da cultura nipónica, o trabalho, lembrando-nos que o trabalho não conduz à salvação. Pelo contrário, o trabalho transforma o Homem em máquina, fá-lo perder a sua individualidade: foi assim que vimos a multidão de trabalhadores de camisas brancas fundirem-se numa única mancha, levando à nossa incapacidade para distinguir uma única cara. Citando Pessoa, quase poderiamos dizer que vimos o retrato do cadáver adiado que procria. Indo mais além, podemos dizer que Ozu nos mostrou uma sociedade confortavelmente estupidificada (ou, se preferirmos, como no título de uma canção dos Pink Floyd: Confortably numb).

Vimos uma multidão de bares e de salas de estar, fomos testemunhas de conversas mil, mas em todas elas perpassou a sensação de vazio, não sem que víssemos outro dos temas caros a Ozu: a unidade da família. Com efeito, vimos a conversa dura dos colegas de Masako para com a sua amante, acusada de ser uma destruidora de lares, tal como vimos o conformismo e a aceitação do destino, nas inúmeras conversas entre mulheres afirmando que os maridos terem amantes era algo normal. Mas, mesmo nessas alturas, a rotina predomina e impõe-se.

De qualquer modo, a porta ficou aberta para a fuga: o rosto expectante de Masako e da sua esposa, fitando o combóio que os poderia levar para uma outra vida. Tudo se resume, pois, à aceitação de uma realidade que se auto-impõe ou à escolha corajosa de uma outra realidade.

2 Comments:

Blogger Tiago Barra said...

Caro Hugo Alvez

No que concerne à temática que nos foi apresentada da reprodução da "rotina vazia e sem sentido" na 7ª arte, por certo se recordará melhor que eu do clássico de 1936, aquele brilhante comentário de Chaplin à sobrevivência humana nas condições económicas, industriais e sociais adversas do século XX e, talvez, do próprio século XXI...(que constitui um píscar de olhos a «Metropolis» quando nos apresenta os décors ou as ruas do teatro de Brecht e de Piscator durante as manifestações e as cargas da Policia sobre os transeuntes).


Saudações Cinéfilas,

10:03 da manhã  
Blogger Hugo said...

Acontece que o tom agricode de "tempos modernos" de Chaplin não se compara ao pathos experimentado neste "primavera precoce". Onde Chaplin traça uma sátira feroz ao progresso, Ozu prefere mostrar o degradação do "eu" nas sociedades industrializadas...

São realidades, por assim, dizer complementares.

10:51 da manhã  

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