sexta-feira, março 31

A vastidão do deserto

Peter O'Toole em Lawrence of Arabia

O deserto. O grande desconhecido. A vastidão do espaço e o vazio da alma.
T.E.Lawrence (sublime Peter O'Toole) sentiu-se atraído pelo deserto porque este é limpo. Na verdade, no deserto não damos de caras com jogos de bastidores vis, com as pequenas grandes mentiras. Apenas a vastidão do espaço, pronta a ser explorada através do mergulho no desconhecido. Um horizonte longínquo e vasto, que apenas é perturbado pelas pegadas deixadas na areia e que o vento prontamente se dispõe a apagar.
É com este pano de fundo que veremos Lawrence prosseguir na tentativa de descoberta do seu "eu", vendo-se envolvido na liderança da revolta árabe, rodeado por políticos com segundas intenções (Princípe Feisal, um eficiente Alec Guiness), por amigos verdadeiros (Xerife Ali, brilhante Omar Sharif) e por homens à procura de fama e glória (Auda Abu-Tay, genial Anthony Quinn). Apesar de se transformar no centro da revolta, na consciência da nação árabe, Lawrence permanece envolto na aura do mistério, sem identidade definida. Basta lembrar que à pergunta "who are you?", Lawrence não responderá, prova maior da sua (ligeira) alienação. Deserto é morte, é a metáfora de Lawrence, qual corpo mumificado a fitar o vazio, com olhar distante, e não dizendo quem é.
Eis o ponto de partida para esta viagem belíssima: um homem sem identidade, que contraria todas as regras e vai contra tudo e todos obstinadamente: atravessa o deserto inultrapassável (o Nefud), salva a vida de um companheiro de viagem, para lha tirar em nome da destruiçao de Acquaba. Um homem comum transformado num Deus ou, caso prefiram, um quási-Deus. Imponente, sábio, erudito e, com o passar do tempo, vingativo. Se antes pensáramos ver um jovem idealista no destacamento do Cairo, acabaremos por ver o mal inerente a qualquer Ser Humano sobressair. Terá prazer em matar, tal como tivera prazer em desafiar o destino. Mas, no fim, negará a fama e apenas quererá voltar para a terra natal, a verde Inglaterra, sinónimo de paz e de descanso. E é aí que encontrará o seu fim. Não no deserto, não na guera, mas na estrada. Sobressaindo os seus óculos pendurados num ramo, quais lentes que nos tiram, para podermos recuar no tempo e ver a evolução da revolta árabe pelos olhos de el Aurens, rectius, Lawrence.
E o que resta depois de 222 minutos de filme? Um espectador estarrecido pela grandiosidade e imponência do deserto, aliada à belíssima banda sonora de Maurice Jarre. Mas, acima de tudo, sobressai o toque de génio de David Lean, que soube captar a essência de Seven Pillars of Wisdom, mostrando que por trás de grandes feitos, basta um homem comum, mesmo que seja incapaz de se definir a ele próprio. Um homem inadaptado a toda e qualquer circunstância: desde o fato militar que lhe cai mal, às roupas berberes que provocam o riso de Auda, passando pela negação dos seus feitos e vitórias.
Todavia, mais do que sete pilares de sabedoria, mais do que um homem, sobressai o deserto, a sua magnificência, a sua beleza e o misterioso poder de atracção que nos impele a ir até ele. A mesma sedução que atraiu Lawrence, o mesmo vazio e vastidão, que mais não são do que a metáfora da sua alma, um profundo buraco negro de sentimentos. Nós não vimos o retrato de Lawrence. Pelo contrário, vimos o retrato da revolta árabe, da opressão dos turcos e da beleza do deserto, através do olhar do oficial inglês que se apaixonou pelo Deserto, Lawrence, que também será "el Aurens" (um pequeno indício dos problemas de identidade?). Um deserto que é a metáfora deste Laurence: vazio e limpo.
O deserto não foi mero figurante. Foi o actor principal, o encenador, o palco da verdade. Vimos a verdade, nua e crua, mas envolta pela poesia e pelo olhar sensível do grande David Lean. Uma poesia que tem como exemplo maior a espantosa miragem de onde surge Ali. De qualquer modo, ficará sempre a pergunta: teremos visto a Verdade ou terá sido esta uma longa miragem de 222 minutos, onde o cinema deu provas de enorme vitalidade?
Post Scriptum - A intensidade e beleza do filme são tantas, que nem ligamos ao pormenor de, lá bem no fundo, ser um filme sobre beduínos a lutar no deserto, onde não vemos mulheres, onde não há lugar para o romance, nem a típica história de Amor. Algo apenas ao alcance de um realizador magistral: David Lean.

terça-feira, março 28

Ad provocationem II

Duas verdades dogmáticas incontestáveis (será?):

"O Cinema é a verdade 24 vezes por segundo" Jean-Luc Godard

"Só se aprende cinema vendo cinema" Bernardo Bertolucci

sábado, março 25

Ad provocationem I

Após alguns (breves) instantes de reflexão, cheguei a uma conclusão provisória:

A Itália é um país de cineastas.
A França é um país de cinéfilos.

O que acham?

sexta-feira, março 24

Pier Paolo Pasolini

Pier Paolo Pasolini

Cumpre salientar que começou ontem um dos mais importantes ciclos cinematográficos do ano: a retrospectiva integral da obra do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Como ponto central da sua obra cinematográfica, permito-me salientar um dos pontos centrais da sua obra cinematográfica: o empenhamento político. Pasolini dar-nos-á o exemplo-maior de que é possível fazer um filme politicamente empenhado, sem cair na necessidade de recusar a poesia da imagem e da mensagem. Não é à toa que Pasolini criou o conceito "cinema de poesia"...
Um cinema que caminha na corda bamba do surrealismo e do simbolismo, em que o confronto entre o ideal político, a crença em Deus e no Homem, andaram sempre de mão dada, a par da polémica. A mesma polémica que levaria a que o seu último filme Salo fosse retirado do circuito comercial duas semanas após a trágica morte de Pasolini, cuja vida foi ceifada precocemente.

Escritor, poeta, intelectual, Pasolini ficará célebre pela polémica que gerava, mas, igualmente, pela obra que deixou. No que toca à vertente cinematográfica, a Cinemateca brinda-nos com esta retrospectiva imperdível. Accatone, Il Vangelo secondo Mateo, Teorema, Medea ou Uccellacci e uccellini são algumas das obras a não perder.

Vêmo-nos por lá.
Post scriptum I - É mister referir que devemos a Pasolini o apadrinhamento da estreia cinematográfica de Bernardo Bertolucci (um dos últimos grandes autores vivos), com La comare secca, a que se seguiu a obra-prima Prima della rivoluzione. Saliente-se que Bertolucci foi assistente de realização em Accatone e também ele era poeta.
Post scriptum II - A poesia de Pier Paolo Pasolini encontra-se publicada, entre nós, pela Assírio e Alvim.

domingo, março 19

Otto e mezzo, a bela confusão

Marcello Mastroianni em Otto e mezzo
Otto e mezzo é um filme fundamental.
Após o aclamação obtida com La dolce vita, retrato agridoce da sociedade italiana do pós-guerra, Fellini não conseguia arranjar tema para um novo filme. E assim se dava o pontapé de saída para Otto e mezzo, viagem ao universo criativo de Fellini e, simultaneamente, homenagem intemporal ao cinema e à arte de fazer cinema (neste particular, apenas La nuit américaine de François Truffaut será outra homenagem digna de realce).
Uma viagem aos dramas da criação. Eis o mote para conhecermos Guido Anselmi (genial e sublime Marcello Mastroianni), um realizador de sucesso em plena crise de inspiração, no centro das atenções de todos aqueles que o rodeiam, em virtude de desejarem que este faça mais um filme genial. E aqui começa a ponte entre a ilusão do cinema e a realidade da crise criativa de Fellini. Trata-se de uma ponte que, à partida, é indiciada pelo título: "oito e meio" que aponta, claramente, para o facto de lidarmos com um realizador incapaz de concluir um filme...
Refira-se que, em bom rigor, não topamos com uma verdadeira narrativa. Pelo contrário, o filme desenrola-se de forma fluida (à imagem do roman flauve de que Marcel Proust é o exemplo paradigmático), tendo como centro gravitacional Guido e os seus fantasmas. E aqui começa o toque de génio: não lidamos com as típicas analepses, mas sim com a inserção de realidades paralelas ao lado do protagonista, num enorme plano subjectivo de 133 minutos. Desde recordações de infância, passando pela projecção mental dos pensamentos de Guido, lidamos com cenas verdadeiramente oníricas, no limbo entre sonho e realidade.
Neste particular, avultará a visão de Claudia (inesquecível Claudia Cardinale), musa inspiradora de Guido, sempre envolta numa aura de beleza, glamour e sensualidade. Uma visão derivada do desejo e que, mau grado essa nuvem de irrealidade, terá o discernimento suficiente para, cara a cara, dizer a Guido o que pensa dele: que não é capaz de amar e que é um mentiroso, pois não há filme nenhum...
Tendo como ponto de partida essas realidades alternativas, Fellini põe a nu todo o seu processo criativo diante do espectador. Aliás, não deixa de ser curioso que, a par desse desnudar (cínico? sincero?), nos deparemos com uma visão irónica de uma certa intelectualidade, corporizada no escritor Carini, o mesmo que critica o filme pela falta de profundidade filosófica e, posteriormente, saúda Guido por decidir não fazer o filme. Refira-se também que, em simultâneo, Fellini não deixa de lançar farpas à indústria cinematográfica (veja-se a luta constante entre um produtor ávido pela rodagem de um filme e um Guido hesitante), bem como não deixa de retratar uma certa preponderância do pensamento tipicamente católico (cujo exemplo máximo será as visitas de Guido ao Cardeal)...
Ora, acontece que Guido não é um Super-Homem ou um ser totalmente omnisciente, mas alguém como nós, com os seus problemas conjugais, com a sua amante e com os inúmeros fantasmas que o perseguem. Um Guido que lida mal com a pressão e com o facto de ser o centro das atenções, tendo os holofotes virados para si. O mesmo Guido que, após se suicidar simbolicamente, recupera o dom, qual Fénix renascida, e começa a dirigir um filme, dando ordens a todas os aqueles que se cruzaram com ele em todo o filme e que desfilam numa passerela final. E, mesmo aí, reside a dúvida: projecção mental ou realização efectiva? Uma coisa é certa: sem pressão Guido foi capaz de criar algo...tal como foi Fellini, que concebeu e realizou este filme fundamental, que celebra a vida, a arte e, acima de tudo, o cinema, num verdadeiro bailado de planos de beleza suprema, que por vezes trazem reminiscências de alguns elementos da tragédia grega: veja-se o coro de "inquisidores" com que Guido se depara na Conferência de Imprensa ou a revolta no seu Harém.
Nunca será demais dizê-lo: Otto e mezzo é um filme fundamental a ver, rever e voltar a ver.
À guisa de post scriptum: a genialidade de Fellini também se vê no facto de o trailer de Otto e mezzo não ser o típico somatório de imagens retiradas do filme, mas, pelo contrário, ser uma "curta-metragem" realizada pelo próprio Fellini, onde é antecipada a passarela final e onde é destapada a ponta do véu sobre os fantasmas de Guido.

terça-feira, março 14

Para quê um Oscar?*

Martin Scorsese

Verdadeira lenda viva, a Martin Scorsese, até à data, tem sido apontado como pecado original do seu curriculum de realizador o facto de nunca ter conquistado um Oscar. Em bom rigor, não precisa. O facto de nunca ter conquistado um Oscar é o maior dos elogios que se lhe pode dar, já que acentua a sua independência e irreverência perante o establishment de Hollywood.
A sua filmografia fala por si. Películas como Mean Streets, Taxi Driver, Raging Bull, The last temptation of Christ ou Goodfellas são demonstrações claras da grandeza de um realizador que não se quedou apenas pela tarefa de realizar filmes. Pelo contrário, Scorsese surge hoje como figura de proa, devido ao facto de ter apresentado excelentes documentários, como é o caso de Il mio viaggio a Italia ou A personal journey with Martin Scorsese through American Movies, verdadeiras obras de iniciação à Cinefilia (algo que já Jean-Luc Godard fizera alguns anos antes) ou o fundamental The Blues, a par do documentário sobre um dos maiores vultos da cultura americana: Bob Dylan, em No direction home.
Scorsese nunca virou as costas à polémica, conforme se vê na tenacidade em insistir na adaptação do genial romance de Nikos Kazantzakis, The last temptation of Christ, brindando-nos com um retrato de Cristo, que paira no limbo, entre a imagem do Super-Homem de Nietzsche e um homem normal acossado por medos e indecisões. De igual modo, Scorcese nunca teve receio em subverter um determinado género, como em Mean Streets ou Goodfellas, onde somos confrontados com elementos típicos do musical ou mesmo de comédia (veja-se o papel fundamental de Joe Pesci em Goodfellas).
Todavia, a imagem de marca deste autor prende-se com a movimentação da câmara que, por vezes, parece planar, acompanhando as personagens e induzindo o espectador a tolerar a violência destas, se não mesmo a comover-se. Não pode ser outro o resultado após acompanhar a génese e evolução da obsessão de Travis Bickle em Taxi Driver ou a acompanhar os assomos de raiva de Jack La Motta de Raging Bull. Aliás, a propósito deste último título, nunca será demais salientar as geniais coreografias de combate em que, pela primeira vez, o espectador é transportado para dentro do ringue e, graças ao concurso de uma brilhante edição de som, vive e sente tal como os próprios lutadores.
Violência. Eis uma das críticas apontadas a Scorsese. Uma crítica, de certo modo, cega e inocente: toda a violência que encontramos nas suas personagens é, precisamente, a violência que encontramos no nosso dia-a-dia. A violência derivada da solidão, de um ambiente opressivo e, também, do desligar das regras ou de filtros sociais que redundam, o mais dasvezes, na anomia. E aqui temos o cerne do cinema de Scorsese: mais do que tudo, é a metáfora da vida urbana.
Da mesma forma que, a propósito de Raging Bull, Scorsese afirmava que não há filmes a preto e branco, mas sim diferentes tonalidades de cinzento, somos tentados a dizer que o cinema de Scorsese mais não é do que um conjunto de diferentes tonalidades de sentimentos. Dito de outro modo, Scorcese é um dos intérpretes máximos dos mais primários sentimentos humanos.
Afinal, para quê um Oscar?
*tendo em conta a celeuma derivada do facto de Crash ter ganho um Oscar, resolvi (tentar) demonstrar, através de um caso prático, que a estatueta dourada pode ser perfeitamente dispensável. Exemplos disso mesmo são Alfred Hitchcock, Orson Welles ou Stanley Kubrick, cuja genialidade e proeminência na Sétima Arte é indiscutível.

sexta-feira, março 10

Clockwork Orange

Malcolm McDowell em Clockwork Orange

Anarquia, violência, liberdade de escolha e anomia, eis quatro dos grandes vértices de Clockwork Orange de Stanley Kubrick, inspirado na perturbadora novela de Anthony Burgess*.
Através de Alex de Large (portentoso Malcom McDowell), um jovem psicopata, que adora a ultra violência, torturar inocentes e violar mulheres (mas que, paradoxalmente, admira e aprecia a Nona Sinfonia de Beethoven), embarcamos numa viagem por um Mundo sem regras, dominado por delinquentes, que não se regem por qualquer regra social, desrespeitando-se quer a si quer ao próximo. É perante esta anomia com que somos confrontados, procurar-se-á indagar acerca das eventuais possibilidades de erradicar o mal da sociedade.
Um dos métodos consistirá em transformar um ser Humano numa cobaia, sendo bombardeado com sessões contínuas de imagens de ultra-violência, de modo a que o ímpeto criminoso desapareça. O resultado, neste particular, será de uma eficácia extrema, já que Alex não reagirá em situações em que é alvo de humilhações. Com reflexos verdadeiramente pavlovianos, o ex-criminoso oferecerá sempre a outra face, dado que o tratamento redundou na impossibilidade de escolha. Apenas existem reflexos condicionados que obstam a que se produzam reacções violentas.
Alex que, mau grado ser o protagonista do filme, não será mais do que um mero peão às mãos das classes dirigentes. De facto, trata-se de algo digno de Hobbes e do seu Leviathan: o Homem é Lobo do Homem. Aqui, mais do que a natureza competitiva do Homem acentuada pelo Filósofo inglês, temos alguém a satisfazer os seus interesses pessoais à custa de um semelhante. E aqui entra o outro Mundo de Clockwork Orange: a existência de um Estado que usa os cidadãos a seu bel-prazer. De certo modo, é um resquício do big brother orwelliano (veja-se a referência ao silenciamento dos opositores).
Kubrick não se coibiu de nos dar um retrato cru e grotesco quer do processo de transformação do delinquente quer deste "big brother". Na verdade, ao optar por cortar do filme o último capítulo da novela de Burgess, Kubrick acentuou a natureza mesquinha do Ser Humano. Alex curou-se, voltando ao que era ("i was cured all right..."), indício de que não podia negar a sua Natureza. Já na fonte original (a novela de Burgess), Alex tem sonhos bem mais prosaicos, próprios de alguém que cresceu (como facilmente se verifica no facto de pensar em ter filhos). Trata-se de um facto revelador, para além de qualquer dúvida, de que Kubrick é extremamente pessimista relativamente à Natureza Humana.
Talvez seja uma das raras facetas, se não mesmo a única, onde o olhar de Kubrick transparece. De facto o tom grotesco e jocoso marcam todo o filme, a par da busca de perfeição, recorrendo, para o efeito, a inúmeros exercícios de estilo, o que acaba por redundar numa obra fria e distante. Não pode deixar de ser outro o resultado da utilização de uma banda sonora portentosa, que serve como pano de fundo para vermos, num momento inicial, verdadeiros bailados de violência e, posteriormente, convivermos com a angústia de uma Mente a quem foi retirado o livre arbítrio.
Indo mais longe, dir-se-á que Clockwork Orange é maquinal: do mesmo modo que o título sugere a mecanicidade das suas personagens, sou tentado a afirmar que o próprio Kubrick, de certo modo, se desligou do sentimento e nos forneceu esta crua da obra de Burgess. Uma faceta que, de certo modo, já tinha deixado antever em Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb.
Um filme incontornável.
* A novela de Burgess é herdeira directa de obras como Brave New World de Aldous Huxley ou Nineteen Eighty-Four de George Orwell. Não lidamos já com escritores pós-modernos (como é o caso de Norman Mailer no genial The Naked and the Death), mas sim perante autores que nos fornecem obras que primam pela negação frontal da Utopia.

domingo, março 5

Dégueulasse

Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em À Bout de Souffle

Poucos filmes conseguem ser tão trepidantes como À Bout de Souffle de Jean-Luc Godard.
Filme pejado de referências, que não deixa de construir, descontruir e reconstruir, acaba por ser uma grande homenagem a Hollywood. A Hollywood do film noir, da série B, do filme de culto. Em suma, a Hollywood corporizada por Humphrey Bogart, genialmente evocado por Michel (sensacional Jean-Paul Belmondo), um jovem gangster que quer fugir para Itália na companhia de Patricia (inesquecível Jean Seberg).
Com um início verdadeiramente enérgico, tomamos contacto com aquela que será uma das imagens de marca de Godard: a personagem dirigindo-se à audiência. De uma conversa inicial com o retrovisor, Michel corta com a timidez e dialoga com o ecrã. Herói e vilão, acabará por apaixonar-se por uma jovem americana, Patricia, que deambula por uma Paris vibrante e excitante, enchendo-o de glamour e sedução.
Filme militante e capítulo inicial daquela que será a filosofia de cinema de Godard, não deixamos, desde já, de ver algumas daquelas que serão as constantes do seu cinema: militância política, inúmeras referências directas (e também veladas) a escritores, pintores ou compositores, prova de que o próprio Godard nunca deixou de se considerar um escritor cujas letras são os fotogramas...afinal, Cinema é verdade 24 vezes por segundo...
Fechando o parêntese e regressando ao leit motiv, diga-se que somos brindados com um filme de pendor existencialista que, paradoxalmente, funcionará através de slogans (o exemplo paradigmático desta faceta será Masculin Féminin: 15 faits précis, o filme dos filhos de Marx e da Coca-Cola, também de Godard). Na verdade, será esse tom existencialista que permitirá fazer o corte com o enredo que, a certa altura, passa a ser meramente secundário. E, deste modo, À bout de soufle primará por ser um retrato sobre a liberdade, sobre o amor, sobre a rebeldia e sobre uma certa Paris.
Verdadeiro Grito do Ipiranga, assinalou de forma indelével a presença da Nouvelle Vague e dos seus principais postulados: a negação do herói (herói pícaro?), mulheres traiçoeiras (mulheres fatais?), a celebração dos espaços abertos, da luz natural, dos pequenos grandes pormenores da vida de todos nós... (e não deixa de ser curioso que alguns movimentos hodiernos, maxime o Dogme 95, recuperem alguns desses postulados). Postulados esses que, no caso de Godard, atingirão a perfeição suprema no genial Pierrot le fou.
Carpe diem, eis o mote desta obra. As motivações das personagens não contam, dado que o espectador é levado a absorver ao máximo os planos, os gestos das personagens (o inesquecível Ah..Bogey! de Belmondo é só um exemplo)... É só isso que conta, mas a mensagem está lá, como não podia deixar de ser: "viver perigosamente até ao fim". O fim...mas qual fim?
No que concerne a À Bout de Souffle, excepção feita à morte de Michel Poiccard, não há fim possível, tendo em consideração as regras quebradas (jump-cuts interpolados com longos diálogos, som captado ao vivo, handy camera, por exemplo) e a influência que ainda hoje tem no cinema contemporâneo.

sexta-feira, março 3

Antoine Doinel, o Bom Selvagem

Jean-Pierre Léaud em Les 400 coups
Antoine Doinel, alter-ego de François Truffaut, personagem fundamental da história do Cinema e personagem iconográfica interpretada pelo sensacional Jean-Pierre Léaud.*
François Truffaut dá-nos a possibilidade de vermos a evolução e o crescimento de uma personagem. Desde o adolescente problemático de Les 400 coups até ao trintão recém-divorciado de L'amour en fuite, durante 20 anos vemos uma personagem que hipnotiza, enternece e, acima de tudo, marca, em qualquer uma das suas aparições, a saber: Les Quatre Cents Coups (1959) , Antoine et Colette (segmento de L'amour à vingt ans de1962), Baisers Volés (1968), Domicile Conjugal (1970), e L'Amour en Fuite (1979).
Um personagem que, de alter-ego total de Truffaut, foi, paulatinamente, crescendo, ao ponto de se tornar independente e de conseguir gravar na nossa memória alguns tiques e/ou trejeitos inesquecíveis: desde as corridas por Paris, passando pelo seu jeito trapalhão e pelos seus esgares expressivos, Doinel não deixa ninguém indiferente.
De facto, em Les 400 coups, vemos um Antoine verdadeiramente inadaptado, tal como Truffaut, incapaz de ter sucesso na escola e produto de um lar vazio, que encontrará o seu porto de abrigo nas deambulações por Paris e nas idas ao cinema. Mau grado os seus inúmeros esforços (o rocambolesco altar dedicado a Balzac) para corresponder aos anseios dos outros, acabará por tornar-se num pequeno marginal e será abandonado pelos pais num reformatório, donde fugirá, numa cena inesquecível, em que, após uma corrida pelo campo, Doinel vai ver o Mar, o Mar que nunca vira e que o deixa assombrado, com uma expressão grave e misteriosa. A mesma expressão com que fita os espectadores, deixando em aberto o seu futuro.
E então encontramos um jovem Doinel, apaixonado, idealista, hipnotizado pela música e pelos livros que tudo fará para conquistar Collette. Continuamos a conviver com um solitário, mas que procura quebrar essa solidão através da conquista do outro, através da sedução. É o Doinel galante e romântico que, após este insucesso, ingressará na tropa. E aí topamos com Baisers volés, grito de independência em que, ao melhor estilo de Les 400 coups, Doinel fará trinta por uma linha e será o homem dos mil ofícios: porteiro, detective privado, reparador de TV's...
Em qualquer uma dessas situações teremos o eterno idealista, à procura do Mundo Perfeito e incapaz de lidar seriamente com os seus erros ou com erros dos outros. Erros brindados pelos seus gestos toscos e nervosos, os mesmos gestos que fazem com que nos sintamos atraídos por esta curiosa personagem e que levarão Christine a apaixonar-se e casar com ele. Um idealismo levado ao auge com o episódio do nome do seu filho: chamar-se-á Alphonse, apenas porque é um nome digno de um princípe das letras, uma das paixões de Antoine. Paixões que, o mais das vezes, redundam em obsessões, tal é a ânsia de atingir o objectivo desejado. Obsessões cristalizadas no seu modo de pensar e sempre alteradas, tal é a sua velocidade. Antoine, um pensador nato e uma mente prolífica...um ser pensante em revolução constante.
Doinel, L'homme qui aimait les femmes (permita-se-me o uso do título de um outro filme de Truffaut) acabará por conhecer uma japonesa, Kyoko, colocando em risco o seu casamento, que virá a sucumbir, não sem que Christine deixe de gostar de Doinel, do seu jeito tosco, inocente, cando. E ele, Doinel, permanecerá fiel à sua Natureza, sendo incapaz de abdicar da sua grande paixão: as mulheres. E assim se concluirá o ciclo, ao som de L'amour en fuite (de Alain Souchon), beijando Sabine enquanto passam alguns dos planos de Les 400 coups, das escpadelas de Doinel para o Parque de Diversões, rindo de felicidade, numa ponte entre presente e passado em simbiose perfeita, com um piscar de olho para um futuro que nos cabe imaginar.
Antoine Doinel, um personagem puro, inocente e transparente. O Bom Selvagem rousseauniano e o último dos românticos, sempre agindo por instinto e sem qualquer maldade, pautando todas as suas relações pela lealdade e por uma humanidade a toda a prova.
Um ideal de bondade que perdura e perdurará na memória de todo aquele que veja qualquer um dos filmes do ciclo Doinel, do mesmo modo que a sua constante dificuldade de compromisso quer com a vida quer com o outro, leva à identificação, nem que mais não seja, parcial, com esta lição de vida. Vida, é precisamente esse o cerne de Doinel e do seu cinema, bem como do cinema do seu autor, o sublime François Truffaut que, com doses subtis e precisas de sentimento, é capaz de nos deixar assoberbados e em estado de transe, mesmo após o fim do filme, com uma alegria espiritual que subsiste nos dias subsequentes e nas alturas em que, por qualquer motivo, se recorda um qualquer plano das aventuras de Antoine Doinel.
Concluo com uma pergunta: Antoine, que reste-t-ils de nos amours?
*A ligação entre ambos é tão forte, que Truffaut dedica L'enfant sauvage, a Jean-Pierre Léaud, sobre quem afirmou "ele é um jovem do século XIX. Eu, da minha parte, sou um nostálgico. Não vibro com o que é moderno e é no passado que encontro a minha inspiração"