segunda-feira, abril 28

domingo, abril 27

A reinvenção do Cinema

"La Nube: C'è una legge, Issione, cui bisogna ubbidire.
Issione: Quassù la legge non arriva, Nefele. Qui la legge è il nevaio, la bufera, la tenebra. E quando viene il giorno chiaro e tu ti accosti leggera alla rupe, è troppo bello per pensarci ancora."

Jean-Marie Straub e Daniéle Huilet, por assim dizer, filmaram parte dos belíssimos Dialoghi con Leucó (editados em Portugal pela Assírio & Alvim, na tradução de José Colaço Barreiros) em dois momentos distintos: em 1978 naquilo que é a primeira parte de Dalla Nube alla Resistenza e em 2005 com Quei loro incontri. De uma obra para a outra fica uma evolução que não é despicienda: abandonam-se os trajos antigos e passa-se para a roupa de trabalho. Dir-se-ia que Straub/Huillet procuraram adoptar o espírito dos Dialoghi, mostrando, assim, que o texto é uma verdadeira e própria realidade autónoma [leia-se independente da indumentária das suas personagens e dos artíficios externos que as vão decorando].
Diálogos que são altíssimas reflexões metafísicas a partir da mais simples situação quotidiana. Os deuses e as figuras mitológicas repescadas por Pavese falam, discutem, interrogam-se, mas, a final, quedam-se fitando o horizonte longínquo, como que interrogando-se sobre o que o Devir (e os Deuses, claro está) lhes trará. Na tensão entre o temor reverencial para com o desconhecido, para com as divindades e a sensualidade das cores, dos sentidos e dos prazeres, o Cinema reinventa-se, nasce e faz-nos descobrir a nós próprios.
Aqui, o texto impõe-sem marcando a cadência e o ritmo do filme, sendo que tal é feito de forma paradoxal: sob a capa do gesto aparentemente imóvel dos actores, sentimos toda a realidade envolvente (pássaros, vento,...), bem como a respiração de quem vai declamando Pavese. Sensualidade, em estado puro.

Curiosamente, Quei loro incontri é um título que pode funcionar como síntese deste Cinema de altíssima atitude ética: ao longo da sua obra, Straub/Huillet foram-se encontrando (e confrontando) com vários artistas, cabendo aos seus filmes mostrar o resultado desses encontros.

Ser-se reaccionário (e demagógico qb)

Falar bem do acordo ortográfico louvando o respeito pela oralização da escrita é, bem vistas as coisas, algo tão acertado como defender a pés juntos a magnificência de Ridley Scott enquanto realizador logo após ter visto (ou revisto) Blade Runner. Um disparate monumental, obviamente.

sábado, abril 26

Triple bill (caseiro)

Nicht versöhnt oder Es hilft nur Gewalt wo Gewalt herrscht (Straub/Huillet)
Dalla nube alla resistenza (Straub/Huillet)
Quei loro incontri (Straub/Huillet)

Ou de como bater na muralha de titânio, ficar a contemplá-la e, não contente com isso, atirar-me contra ela para a contemplar de novo.

quinta-feira, abril 24

Estado de espírito*

"(...)
What are the roots that clutch, what branches grow
Out of this stony rubbish? Son of man,
You cannot say, or guess, for you know only
A heap of broken images, where the sun beats,
And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief,
And the dry stone no sound of water. Only
There is shadow under this red rock,
(Come in under the shadow of this red rock),
And I will show you something different from either
Your shadow at morning striding behind you
Or your shadow at evening rising to meet you;
I will show you fear in a handful of dust.
(...)"

T.S.Eliot, The Waste Land (1. The burial of the Dead)

* O Cinema volta daqui a algumas horas. Espera-se.

quarta-feira, abril 23

Personagens da 'Teca vs. Cinematecos

Pois, de facto existem uns belos cromos, especialistas em mandar calar*, no 39 da Barata Salgueiro. Como até tenho bom feitio, prefiro recordar aspectos pitorescos: uma senhor muito baixa que ri despudoramente em todo o santo filme que vê (era capaz de jurar que até em O Silêncio, de Bergman isso aconteceu), um grupo de idade relativamente avançada que se senta nos bancos a contemplar os cartazes e a discutir qual a actriz mais marcante: Bette Davis? Joan Crawford? Bacall? ou a fazer uns curiosos campeonatos que podiam chamar Eu já vi este e tu não? E que dizer de algumas senhoras de idade que, em plena fila para comprar bilhete, vão desfiando a história do "onde", "quando" e "com quem" viu o filme para o qual vai comprar o ingresso?
Mais do que os energúmenos que vão pululando pela Cinemateca, o que conta são aqueles que vão até lá por puro amor às imagens projectadas, seja como forma de escapismo a este mundo-cão, seja como divertimento ou distracção. São estes (e outros, claro) a que gosto de chamar, com o seu quê de irónico e de afectuoso, Cinematecos. São eles que transformam o velho Palácio numa espécie de pequena família onde os espectadores habituais acabam por se ir conhecendo, mesmo que muitas vezes não se falem. Assim mesmo. Com olhares e sorrisos cúmplices o mais das vezes. Prefiro esses hardcore anónimos a imbecis adeptos do silêncio. Afinal, são eles que acabam por dar algum encanto ao museu das imagens. Aliás, é por isso que, mesmo contra o que tal criatura poderá fazer ou dizer, que há que salutar atitudes como rir desbragadamente vendo La grande bouffe, por exemplo. Co'a breca, ver um filme não é o mesmo que cumprir um cerimonial religioso, embora tenha o seu quê de ritual, mas isso são outras histórias.
* isto lembra-me uma história curiosa, que, em bom rigor, permite definir o grosso dos espectadores dos cinemas ditos comerciais. Vai para dois anos, na integral dedicada ao François Truffaut, via eu La nuit américaine e um senhor, perdão, alguém decididamente mal educado, decide atender o telemóvel e pôr-se à conversa. Após uns belos (e merecidos) "cala-te com isso ou sai!", a criatura foi, efectivamente, convidada a sair por um espectador mais vigoroso. O leitor ocasional pode descansar, que eu fiquei absorto (dentro dos possíveis) e concentrei-me no filme. Só gosto de falar antes e depois do filme e não tenho feitio para mandar calar ninguém fora do meu contexto profissional.

domingo, abril 20

E esta, hein?

Definitivamente, gostar muito de Cinema leva a que às vezes se ouçam coisas extraordinariamente pitorescas. Um exemplo tirado da passada Sexta-Feira:
"Está para vir o dia em que tu ou um outro tarado cinéfilo qualquer não falem muito bem de um filme* que não tenha mais de dois mil espectadores"
* tudo isto a propósito de Coeurs, num almoço que, contrariamente ao que possa parecer, foi muito bem disposto.

sexta-feira, abril 18

Corações Solitários

É um labirinto de encontros e desencontros: a religiosa (falsamente) tímida, o mediador imobiliário desajeitado, o ex-militar obtuso e a sua noiva desencantada, o barman solitário, a jovem perdida em encontros falhados...todos e cada um representando, ao seu jeito, a solidão moderna, que Alain Resnais desenhou num filme onde pairamos num qualquer espaço que nunca descortinamos qual é. Afinal, não é isso o que conta. Tudo se resume ao drama interior e à extraordinária capacidade do Mestre francês em nos fazer esquecer os exteriores. Graças à sua mise-en-scène focamo-nos no reduto íntimo do Eu.
Como se isto não chegasse, fazer um filme agridoce sem nunca cair no exagero e, de forma tão simples, falar da mais básica necessidade humana: a projecção no Outro, encontrando a felicidade e criando uma união a dois, são, "apenas", sinais de que este é um filme extraordinário. Um labirinto de personagens, de emoções e sentimentos, devidamente emoldurados por uma neve persistente que nos parece fazer viver um sonho, contribuindo, assim, para o tom levemente irreal - e falsamente abstracto - desta grande obra.

quinta-feira, abril 17

Inutilidades, em raccords consecutivos

297 páginas depois, páginas de parto difícil e resultado de horas consecutivas sem dormir motivadas por leituras várias em vernáculo e em dialectos estrangeiros, mormente italiano e alemão, uma etapa da tese fechou-se. Venha agora a discussão daqui a uns meses...
Como convém celebrar, o escriba de serviço deslocou-se ao mais insuspeito dos sítios. Precisamente aquele onde nunca, jamais poderia ser encontrado. Reviu I Vitelloni, vernacularmente falando Os Inúteis, não deixando de fazer comparações entre o título luso da obra felliniana e alguns dos resultados da investigação que tinha encerrado horas antes.
Não há coincidências, dir-me-á um dos 3 leitores assíduos deste recanto. Talvez, respondo eu fugidiamente. Continuação de celebração. Afinal, após tanta página de dogmática jurídica, o Espírito pedia distracção e novos ares. Coincidência das coincidências, acabara de ser lançado Der Mann ohne Eigenschaften, de Robert Musil* na lusa tradução de João Barrento (facto esse que, só por si, motiva um distinto e sincero obrigado). Nova comparação, desta feita entra a ausência de qualidades de Ulrich e o resultado final de um escrito que, se calhar, não teve o período de maturação necessário. Ou isso, ou penso em demasia em coisas comezinhas.
* O primeiro volume está oficialmente devorado e o segundo, enfim, para lá caminha. Uma preciosidade. É nestas alturas que lamento o facto de o meu alemão ainda não dar para ler monumentos destes na versão original. Walser e Bernhard já constavam do meu "altar". Musil, desde Segunda, também. Em definitivo.

sábado, abril 12

Coerência, acima de tudo

É uma maçada, pois é*. Da minha parte, já fico contente se a rapaziada da crítica souber/conseguir adoptar um critério minimamente coerente nas classificações que dá aos filmes que vai vendo. Sou uma criatura pouco exigente, está visto. Melhor ainda, só mesmo se toparmos com uma conduta uniforme por parte do crítico. Neste campo, só há uma coisa que sempre me fez confusão: o recurso a florilégios e adjectivos em catadupa para, a final, sair a famigerada bola preta ou a estrela solteira.
Já se sabe que consciente ou inconscientemente, o gosto subjectivo vai pesar na classificação. Daí a exigência, idealmente, de coerência e de uma prosa bem articulada, isenta de contradições entre o texto e a correspondente sínte, vertida nas estrelas ou na falta delas.
* Não me refiro ao filme em questão, cujos méritos ou deméritos não posso avaliar porque, pura e simplesmente não o vi. À hora de entrar no Cinema, entre o filme de Reiner e o de Resnais, a escolha foi óbvia e não me arrependi minimamente. Bem pelo contrário.

sexta-feira, abril 11

É policial? Não. É celestial

"(...)Não vos deixo preplexos,
Meus amigos! E não temais! Os filhos da terra
receiam quase sempre o que é novo e estranho,
Ficar em casa, fechado em si, apenas é próprio
Da vida das plantas e do animal satisfeito.
Limitados ao que possuem preocupam-se
Com a sua subsistência, e mais longe não chega
O sentido da sua vida. Porém, finalmente
Têm de sair, esses timoratos, e com a morte regressa
Cada um ao elemento, para que nele
Reencontrem, como num banho, a frescura
De uma nova juventude. Aos homens foi dada
A grande alegria de se rejuvenescerem a si próprios(...)"

Der Tod des Empedokles, de Hölderlin na tradução de Maria Teresa Dias Furtado (Relógio d'Água, 2001. Excerto retidado de p. 155)

segunda-feira, abril 7

Não estou aí, de facto

É bom saber que Todd Haynes gosta de Fellini. Ao ponto de recriar cenas mil de Otto e Mezzo e de La dolce vita em I'm not there. Tirando o bom gosto cinéfilo, do filme não sobra nada de memorável: afinal, a música de Bob Dylan não entra nestas contas. Está muito acima. De "filme" fica só uma manta de retalhos com potencial para ser algo que não é. E é pena.