domingo, setembro 28

Tortura


Voltei a reencontrar-me com o conforto da inquietação que as imagens projectadas no fundo da sala escura trazem à alma. Revi o inclassificável El Ángel Exterminador, de Buñuel. Quando as luzes se acenderam, nunca me senti tão aliviado por sair da sala. Mais do que agarrado à prisão moral/física que vi desfilar à frente dos meus olhos, Mestre Buñuel teve o condão de me incomodar, de criar náuseas, de não me deixar indiferente. O Cinema, mesmo quando nos deixa de rastos e com náuseas, é precisamente isto: bater no fundo da nossa alma, transida por um fio de suor banhando o corpo que, para aliviar, ri das tiradas anti-burguesas (rectius, contra uma certa sociedade instituída) que pululam ao longo do filme.

sexta-feira, setembro 26

Escapismo


Gostava de ser como Teixeira de Pascoaes: esquecer o mundo das leis, dos códigos e do papel de embrulho que alguns tribunais fazem deles, refugiando-me no ritmo cadenciado e ditado pela Lei Natureza, como forma de telurismo existencial. Como faltam o engenho e a arte, fico-me pelo Cinema, preferencialmente o Cinema "com nervo". Aquele tão intenso onde até ouvimos as palavras a arfar no peito dos actores, devida e ponderadamente embalados pelo vento que serve de moldura à cena. Um Straub-Huillet é sempre o porto seguro dos dias difíceis. E poucos subtítulos são tão luminosos como o de Nicht Versöhnt: apenas a violência ajuda onde a violência impera. ["nur Gewalt hilft wo Gewalt herrscht"].
Adenda: dei por mim a ler o Elogio do Passeio Público, de Filipa Martins. Gostei, mas nada que me tire o Cinema "à flor da pele" de Straub. Não é uma questão de elogiar ou contemplar quem passa ou quem vemos. Pelo contrário, tudo se resume a, à imagem das palavras que queimam o peito das personagens de Straub-Huillet, a procurar combater o que nos rodeia. Mais do que contemplar, resististir. [e, note-se, isto é, apenas, brincar com o título do livro de Filipa Martins. Nada de confusões, que não sou crítico literário. Mas que gostei do livro, lá isso gostei]

quinta-feira, setembro 25

César Monteiro e Ozu

Disse a dada altura que Ozu e César Monteiro eram cineastas de cabeceira, entidades que serviam entre si como freio e contrapeso, à imagem daquilo que pelas terras to Tio Sam se sói designar como checks and balances*. Se é certo que ambos tratam de universos absolutamente díspares, há, no mínimo, algo que os aproxima: a contemplação minuciosa do real.
Não obstante, enquanto Ozu "fica" por dramas familiares, jogando num mise-en-scène frugal e espartano, César Monteiro parte do real para levar o espectador a um limbo algures entre o real e o surreal. Um realismo mágico, quiçá. Ozu parte do real e, aparentemente, fica prisioneiro desse mundo que observa, descreve e onde as suas personagens passeiam, tendo como único escape o humor. César Monteiro parte do real, ultrapassa-o e regressa, fazendo passear os seus alter egos - João de Deus, o "tio" Jean de Dieu e o "primo afastado" João Vuvu - como objecto não identificado que olha o real, vive nele e opta por criar um universo próprio, sem nunca largar a âncora que o prende ao real: contempla, movimenta-se e faz gestos caricatos, que parecem zombar todos os outros transeuntes.
Confusos? Imaginem um plano à Ozu, com a câmara à altura do solo, contemplando João de Deus, esse mafarrico perdido entre a ironia vitriólica e a realidade que consome o seu corpo, e o resultado fica à vista. O ponto de partida é o mesmo. Todavia, César Monteiro transveste o real com um manto diáfano de ilusão mágica e levemente surreal.
*Um bom constitucionalista explicará que é o sistema que explica a circunstância de os vários órgãos de soberania dos Estados Unidos da América viverem num equilíbrio frágil, ora dando poderes, ora retirando, num meticuloso jogo de equilíbrios instáveis ao nível constitucional. Eu, pobre civilista em construção (provavelmente nunca finda), sou incapaz de explicar tal coisa.

domingo, setembro 14

O facto de, ao entrar em casa, esbarrar sempre em M. Hulot de mão dada ao sobrinho faz-me lembrar pesarosamente de uma coisa simples: com a idade, perde-se a inocência de viver e cai-se num vórtice de agonias existenciais tolas. Tudo é tão simples como um simples dar a mão ao próximo: partilhar, criar laços, acreditar num qualquer pedaço de criação. Tão simples e tão difícil.