sexta-feira, setembro 29

A Cena

You're tearing me apart!
Dificilmente se pode escolher melhor cena para definir o cinema de conflito(s) de Nicholas Ray. Jim Stark, pressionado, abandonado por todos, refugiando-se num Mundo só seu, perante uma pequena audiência que o fita e lhe desfere censuras, apenas consegue lançar um incontido You're tearing me apart! Grito de desespero, de revolta,...enfim, um grito lancinante que deixa marcas. Seja pela forma crua como Ray dirige esta particular sequência, seja pelas frases atiradas de forma precipitada por todos os interlocutores de Jim, seja, enfim, pela expressão facial de Jim. Tudo concorre para se alcançar a perfeição suprema, expressando o conflito e o estilhaçar da aparência de uma boa relação familiar.
Alterando o proémio de They live by night, pode-se dizer que nenhum de nós foi devidamente apresentado ao Mundo em que vive.

quinta-feira, setembro 28

A magia do P/B

Robert De Niro em Raging Bull
Não há filmes a preto e branco. Apenas diferentes tons de cinzento
(Martin Scorsese , a propósito de Raging Bull)

quarta-feira, setembro 27

O Senhor Hulot

Jacques Tati, o inimitável M. Hulot
Contrariamente ao pequeno Charlot, o Senhor Hulot é uma paersonagem que olha o Mundo de uma posição alta. Vê de cima para baixo, daí o seu gesto característico: dorso arqueado, mãos nas ilhargas, com um cachimbo na boca e chapéu de chuva debaixo do braço. Mais importante, será essa estatura elevada que permitirá ter uma visão distanciada do Mundo que o rodeia. Dá-lhe a margem necessária para contemplar e analisar.
Contrariamente a Charlot, sempre pronto para ajudar tudo e todos, o Senhor Hulot limita-se a ser uma testemunha passiva dos tempos que correm e, com seu gesto ingénuo, põe a nu a influência da tecnologia no Homem, designadamente as figuras rídiculas que nos obriga fazer. Hulot, rectius, Jacques Tati é, pois, o descendente directo do burlesco de Buster Keaton e, tal como o lendário actor norte-americano, será uma personagem cujo rosto não demonstrará qualquer emoção, mesmo que esteja perante o mais cómico dos gags. Permanecerá sempre impassível.
Se, inicialmente, com Les vacances de Monsieur Hulot a personagem principal era o centro do filme, com Mon oncle e, sobretudo, com Playtime, o Senhor Hulot acabará por diluir-se no cenário, multiplicando-se pelos vários figurantes que acabarão por absorver os seus gestos e repeti-los. Isto porque, em bom rigor, todos nós temos um Senhor Hulot cá dentro.
E assim num Mundo onde não havia lugar para curvas ou deslocações não rectílineas, o Senhor Hulot trouxe-nos o prazer do desvio, do atalho. Semeou a confusão. Mas também lançou o grito de alerta para os perigos de o Homem poder vir a ser escravo das máquinas. Mas a sua magia deve-se ao facto de o ter feito sem grande recurso ao diálogo. Apenas através de humor físico e de uma prodigiosa banda sonora ou de um impressivo jogo de sons. É essa a magia de Tati: ser o dono de uma obra de outro mundo. Foi assim que Truffaut definiu a obra-prima que é Playtime. Mas, em bom rigor, toda a obra de Tati o é. Tati é, pois, o Maestro de verdadeiras sinfonias visuais, que mais não são do que incisivos estudos sociológicos sobre a vida nas sociedades modernas.

terça-feira, setembro 26

O último homem

Emil Jannings em Der letzte Mann
F.W. Murnau terá assinado um dos filmes mais venturosos de sempre com Sunrise, a song for two humans. Todavia, alguns anos antes, com o esplendoroso Der lezte Mann (literalmente, O último homem) de 1924 terá rubricado uma das obras mais pessimistas de que há memória.
Na verdade, ao retratar o porteiro confiante (brilhante Emil Jannings) de um Hotel luxuoso que acabará os seus dias a estender toalhas aos clientes que utilizam a casa-de-banho de um Hotel, Murnau acaba por mostrar, de forma crua, que toda e qualquer pessoa, a partir do momento em que a sua utilidade cessa, deve ser encostada a um canto, posta na prateleira. Enfim, deve ser afastada.
Obviamente, há muito mais para além desta mensagem básica, como é o caso da importância atribuída ao uniforme. O porteiro que, confiantemente passeava num bairro decrépito o seu uniforme luminoso e resplandecente, com a despromoção tudo fará para manter a farsa. O uniforme, símbolo de falsas aparências e convenções sociais fúteis acabará, assim, por ser o elo que manterá o decorrer da acção. Num Mundo agitado e célere como o do Hotel não há lugar para velhos ou menos ágeis. Dir-se-ia que Murnau retrata uma das aplicações da lei do mais forte nas sociedades modernas (o que, de certa forma, seria uma antevisão da triste realidade que a Alemanha viveria na década de 30 até 1945). Talvez, mas vai para além disso. Murnau, traça um retrato sarcástico do Homem cruel e insensível, mas, também, dos tontos que se fiam num qualquer símbolo de poder ou distinção, por mais insignificante que seja.
E, por isso, este último homem, morrendo sozinho numa casa-de-banho escura e abjecta representa, também, a morte do Mundo tal como existia à época. Basta ver que este porteiro pode ser considerado como uma das primeiras vítimas dos loucos anos 20. Onde havia felicidade, vida boémia e loucuras, passou a haver solidão, melancolia e morte.
Para além disto, até o facto de estarmos perante um filme mudo que não faz uso de intertítulos ou em que o jogo da câmara (lembre-se que o Kammerspiel reinava na Alemanha á época) faz maravilhas, poderiam passar-nos, ligeiramente, ao lado. Mas não devem. Sem se deixar acantonar em escolas ou correntes, Murnau assinou uma obra única e singular, onde o Kammerspiel, o expressionismo e a inovação tiveram a sua quota-parte.
Efectivamente, Der letzte Mann é (mais) uma demonstração da magnificência de Murnau enquanto cineasta. Obra menos conhecida, Der lezte Mann, contém, talvez, o primeiro plano da História do Cinema filmado de forma não estática (rezam as crónicas que a camâra foi colocada numa bicicleta que se passeou pelo Hotel). Trata-se da cena inicial, em que a câmara desce o elevador do Hotel e se faz passear pelos seus corredores. E assim tinhamos um indício que nos permite sondar os propósitos de Der letzte Mann: trata-se de um filme que aborda uma realidade que cai, que está moribunda e cujas feridas demorariam muitos anos a sarar.
O único intertítulo do filme - que cito de memória - dizia tudo: Hoje general, Primeiro-Ministro..E amanhã? Sabes o que farás amanhã? Der letzte Mann, mais do que um filme que nos dê certezas, é um filme que semeia a incerteza e a dúvida. Em nós, nos outros e no Mundo. Certezas, apenas uma: a Morte.

segunda-feira, setembro 25

E agora, Paulo?

Paulo Branco

Os méritos de Paulo Branco enquanto produtor são inegáveis. Basta ver o seu curriculum para verificarmos que estamos perante uma figura de primeira linha no meio cinematográfico. Ao ponto de ter integrado o Júri do Festival de Veneza de 2006.
No que toca ao seu papel enquanto distribuidor, uma das facetas que mais lhe gabei prendeu-se com o facto de sempre ter pautado a sua actuação pela divulgação não só do Cinema Europeu, mas, também, por ter sido um defensor do Cinema Português, produzindo obras de Manoel de Oliveira - autor com quem a relação existente cessou recentemente -, João César Monteiro, João Botelho, Pedro Costa ou Teresa Villaverde.
Outra das iniciativas que mereceu aplauso generalizado foi o lançamento do King Kard, o cartão mágico que em muito facilitava o acesso dos amantes do Cinema ao seu objecto de culto, já que o preço da mensalidade (15€) era relativamente reduzido, sobretudo tendo em consideração que permitia ver até 2 filmes por dia, sem qualquer custo adicional.
Ora, por decisão unilateral da Medeia Filmes, S.A. (faço uso das palavras constantes do comunicado enviado pela Millenium, S.A. aos detentores do King Kard), o King Kard não mais será aceite nas salas exploradas pela dita sociedade comercial. Em sua substituição, poucos dias depois, surge o Medeia Card, cartão em tudo idêntico ao King Kard, mas com a vantagem de ter uma mensalidade menos dispendiosa.
Perante isto, bailam na minha cabeça apenas duas palavras: concorrência desleal. Confesso que tinha Paulo Branco e o seu pequeno império dedicado ao Cinema em boa conta. Embora nada fosse perfeito. Basta lembrar o facto de muitos filmes distribuídos por Paulo Branco terem apenas uma cópia, o que levava a que estreassem muito mais tarde fora de Lisboa, como muito bem se chamou a atenção, por variadas vezes, no Duelo ao Sol.
Caso para dizer: E agora, Paulo? Só espero é que não haja muitas reacções similares à do Alberto Sordi...

domingo, setembro 24

Dançando com o perigo

Robert Taylor e Cyd Charisse em Party Girl
De um ponto de vista meramente cronológico, Party Girl, obra datada de 1958, é o último dos grandes filmes de Nicholas Ray, sendo também a súmula dos temas da sua obra.
Como é usual em Ray, a personagem principal, Tommy Farrell (Robert Taylor) é um homem ferido. Desta feita, a ferida latente neste anti-herói é dupla. Com efeito, estamos perante alguém debilitado fisicamente, em virtude de um acidente sofrido na juventude que o obrigará a coxear constantemente, mas, também, perante alguém debilitado profissionalmente, já que quanto maior é a sua perícia enquanto advogado, menor será o seu amor próprio e a sua auto-estima, dado que todos os seus dotes profissionais são consagrados a uma causa que lhe dá asco.
Todavia, a partir do momento em que se vê na necessidade de agir, tal como o capitão Leigh de Bitter Victory, Farrell será um mestre no campo de batalha, orientando-se como ninguém. Todavia, contrariamente ao Leigh de Bitter Victory, Farrell age motivado pelo amor de Vicki (Cyd Charisse), a dançarina capaz de incendiar o seu coração e de lhe mostrar que era capaz de ser tão bom ou melhor do que qualquer outro homem.
Na verdade, Party Girl é, talvez, a mais bela das histórias de amor. Tommy e Vicky, ambos provenientes de passados sombrios e pouco recomendáveis, foram humilhados e o seu encontro marca o começo de uma nova vida. Eis aqui uma diferença relativamente a obras como Bitter Victory ou Johnny Guitar: os protagonistas encontram-se quando já não há esperança e é esse o ponto de partida para todo o enredo.
Party Girl é, com efeito, um sumário do Cinema de Ray, mas funciona como virar de página. Onde antes primavam cenários naturalistas, desta feita prima o sumptuoso e o opulento, sobressaindo toda mestria de Ray no uso da cor, seja apresentando Vicki num impressivo vestido vermelho, seja brindando-nos com magníficas sequências musicais no clube. Em qualquer caso, não haverá qualquer opulência nos vários vilões que vão surgindo. Estes são bem reais e agem sob a bandeira da maldade e da vingança. Também aqui, tal como em Johnny Guitar, acabamos por ter a subversão de um género. O que poderia ser um típico filme noir - veja-se a arquetípica sombra de um polícia interrogando Vicki - acaba por ser uma mescla de géneros às mãos do genial Nicholas Ray: filme Noir, filme de gangsters, história de amor em tom hollywoodiano - veja-se o périplo do casal pela Europa - passando pelo musical.
Tal como Vicky nos brinda com fulgurantes coreografias no filme, todo o enredo acaba por ser uma dança constante com a morte, seja porque o bando de Rico (Lee. J Cob) não dá tréguas ao casal apaixonado, seja porque a longa mão da Justiça acena com a reclusão de Tommy. Nesse turbilhão de acontecimentos, estará sempre a mão de Ray que, enquanto mostra a sua versatilidade enquanto cineasta nas belíssimas coreografias das danças de Vicki, faz uso da elipse para nos ir dando as informações necessárias acerca do passado das personagens, surgindo à cabeça a cena da ponte. A ponte que une duas margens e que acabará, também, por ligar Tommy e Vicki.
Party Girl, mau grado denotar algum desequílbrio em função da fusão de vários elementos, acaba por ser um filme cuja aura de erotismo, sensualidade, lirismo e emoção prendem o espectador, deixando-o num estado de pura contemplação. Mas, nada há aqui que nos surpreenda. Com efeito, tirando a excepção da pura perfeição formal de They live by night, toda a obra de Ray é marcada pelo desequílibrio e pela instabilidade, facto patente em todas as suas personagens. Em Ray esquece-se tudo isso. Porque a tela vibra de emoção e cada momento de imperfeição ou desequilíbrio acaba por por em relevo toda a beleza do conjunto. Porque uma história banal converte-se em algo inesquecível. Em suma, porque Nicholas Ray c'est le cinéma e Party Girl não é excepção.

sábado, setembro 23

Lavoratori...


Lavoratori? Prrrrrrr
Lavoratori della maltaaa?...

(Alberto Sordi em I Vitelloni)

sexta-feira, setembro 22

Sonhos frustrados

Fotograma de I Vitelloni
Corria o ano de 1953 e Federico Fellini, ilusionista supremo e poeta do amor à vida, brindava-nos com I Vitelloni, obra maior onde os sonhos frustrados e ambições traídas da juventude são elevadas a protagonistas.
Estes vitelloni são Fausto, o eterno engatatão, Alberto, a criança em ponto grande, Leopoldo, o escritor sedento de fama e Moraldo, a voz da consciência deste grupo. Um grupo que procura, constantemente, um rumo para a sua vida. Incapazes de crescer, estes jovens vêm-se enclausurados numa cidade cujo único escape é a vista para o mar ou a festa de Carnaval. Jovens adultos que mais não são do que marionetas nas mãos dos pais (veja-se Fausto a levar tabefes do pai e a ter de casar por vontade deste), rebelando-se através da participação num conjunto de tropelias. Num claro contraste entre uma juventude ansiando - e desesperando - por um qualquer sentido ou fim que os inspire, viverão num dolce far niente, sonhando com o abandono da sua terra natal, dado que a única alternativa que conhecem é representada pelos seus pais, cidadãos zelosos e cumpridores, capazes de assumir as responsabilidades com que se vão deparando.
I vitelloni é, assim, um retrato tragicómico e agridoce de um conjunto de jovens que se recusa a crescer, contribuindo, assim, para o culto do imobilismo. Perante essa imobilidade, resta, apenas, o escape da diversão plena, o inebriar dos sentidos. Mas, fica sempre o sentido de vazio, como uma ressaca. Só assim, por exemplo, se persebe a alegria louca de Alberto, dançando com uma marioneta para, no dia seguinte, cair em si e verificar que a festa, tal como a ilusão criada, foi fugaz, continuando prisioneiro do Mundo que sempre conheceu. Prisão que encontra o contraponto perfeito no mar cuja imensidão o grupo admira. Provavelmente porque podem fabular nas aventuras que se escondem para lá da linha do horizonte.
A mesma contemplação que Moraldo tem perante os seus companheiros. Sempre encostado a um canto, limita-se a ver - tal como o narrador que, em off, vai tecendo comentários sobre o que se passa - de forma dolorosa e melancólica os companheiros, apesar de também alinhar em algumas das travessuras. O mesmo tom nostálgico que decorre do belíssimo plano final em que Moraldo, já no combóio, pensa nos seus amigos. E, do mesmo modo que combóio o afasta da cidade natal, também a câmara de Fellini se move, num travelling portentoso, afastando-se dos restantes vitelloni que antes focara em planos apertados.
Mais do que uma despedida, ficamos com a sensação de estar perante uma qualquer evocação, ficando Alberto, Fausto e Leopoldo a povoar a imaginação de Moraldo. E assim ficarão, ad aeternum, vivendo a realidade que bem conhecem e, simultaneamente, gravando imagens indeléveis na memória de Moraldo. E na nossa.

quinta-feira, setembro 21

Frase memorável

Ingrid Bergman em Stromboli, terra di dio

Deus! Ó Meu Deus!

Ajuda-me! Dá-me a força, a compreensão e a coragem

(Ingrid Bergman na cena final de Stromboli, de Roberto Rossellini)

quarta-feira, setembro 20

Da compaixão e da misericórdia

Fotograma de Sansho Dayu
Um homem sem compaixão é como um animal. Ama todos os outros homens qualquer que seja a condição deles, porque todos os homens são iguais

Eis a frase que nunca abandonará a mente de Zushio. A criança raptada e vendida como escrava, que conhecerá o inferno de um campo de escravos às mãos do Intendente Sanshu e dos seus sequazes. Suzhio, o mesmo que esquecerá momentaneamente a regra de ouro da compaixão e acabará por marcar um velho andrajoso com um ferro quente, apesar de, ao pescoço, trazer pendente uma figura do Deus da Misericórdia e da Compaixão. O mesmo Zushio que, preparando-se para lançar uma velha aos abutres, acabará por recordar a máxima que antes lhe tivera sido ensinada, quando revive um momento exactamente igual a outro do passado.

Mizoguchi, o poeta da beleza serena - mesmo nesta viagem infernal de Sansho Dayu - reafirma, assim, a sua crença no Homem puro e impoluto. Se Zushio acaba por se reencontrar consigo próprio, também acabará por ver sobre as suas costas o peso da culpa e a necessidade da desculpa de todos aqueles a quem fez mal. De Diabo a Santo, Zushio, transforma-se e emociona-se. Tal como o espectador, absolutamente incapaz de ficar insensível perante o que se vê desenrolar à sua frente. Sanshu dayu é o filme da compaixão, da misericórdia, o filme onde podemos ver projectada quer a nossa faceta malévola quer aqueloutra boa, imaculada. Em qualquer caso, uma prova de amor. O mesmo amor entre dois seres que levou Zushio a procurar a sua irmã morta e a mãe com que se reencontrará. Já cega, uma mera lembrança do que fôra outrora. Mas isso é o menos. Num Mundo de formas, mais do que os invólucros, apenas o conteúdo conta. E, neste caso, prima tudo aquilo que de mais nobre um Ser Humano pode oferecer. E as suas possibilidades são infinitas, tal como o Mar que a câmara de Mizoguchi nos mostra mesmo no final. Um mar apenas entrecortado por uma ilha. O que é irónico. Porque nenhum Homem é uma ilha.

terça-feira, setembro 19

Cinema em Estado Puro

Fotograma de Sansho Dayu de Kenji Mizogguchhi
Privada da liberdade em idade tenra - atente-se que não é à toa que, na Alemanha, este filme é conhecido por "Uma Vida sem Liberdade" (Ein Leben ohne Freiheit) - Anju, decide suicidar-se, após ter ajudado o seu irmão a fugir de um campo de escravos. Até aqui dir-me-ão que isto é algo banal.
Ora, toda a genialidade de Mizoguchi vem ao de cima pelo que não se vê. Apenas se pressente. O espectador limita-se a ver meros indícios do que se passou. Anju, atormentada pela dor, chorando, desloca-se serenamente para as águas. Colocará pedras nos bolsos para que se afunde mais depresa e dará os primeiros passos para o leito das águas. Quando a câmara volta a focar o local onde estava, já só resta o borbulhar da água em sereno sobressalto. Afogou-se. E só nessa altura nos vem à memória o facto de Anju ter avançado para o nevoeiro. Ela, que mais não passava de sombra que se locomovia, entrou no seu reino. O das sombras.
Uma elipse primorosa, que nos mostra a mais calma, poética e bela das mortes. Assim é Mizoguchi. Assim é o Cinema.
À propos, veja-se este belo texto de André Dias.

segunda-feira, setembro 18

E se ler fosse proibido?

Oskar Werner em Farenheit 451

François Truffaut em Farenheit 451, ao adaptar o romance homónimo de Ray Bradburry, deu-nos a resposta. Numa sociedade em que ler é pecado, onde ser um livre-pensador equivale a ser um fora-da-lei, onde ter opinião é sinónimo de perseguição pelas autoridades, até a simples tarefa de destruir livros pode ser posta em causa a partir do momento em que se acede ao fruto proibido. Como diria José Afonso Vejam bem,/que não há só gaivotas em terra/quando um homem se põe a pensar.
Neste filme perturbante, vimos um retrato cru, verdadeiramente paradigmático, da sociedade do Homem Massa. Uma sociedade homogeneizada onde as regras foram feitas para ser cumpridas fielmente e onde até o ser-se delator merece prémio. É esta, também, a sociedade do Leviatã, cabendo ao Homem a tarefa de ser seu próprio Lobo até se projectar no infinito do vazio de conhecimento próprio. Tudo se resume a ver o Mundo pelos olhos dos outros, a sermos hipnotizados pela propaganda difundida pela TV. Nesta Sociedade vazia, tudo se resume, pois, a uma simples luta, a luta entre agir mecanicamente e pensar. Só pensando poderemos desenvolver a nossa personalidade. E só assim poderemos ser livres - les hommes libres sont les hommes-livres como se dizia no guião original em francês.
Porque, cada vez mais, vivemos num Mundo de padrões homogeneizados e onde a consciência crítica parece cair em desuso (e, por vezes, olhada de soslaio), é sempre bom ver que o Cinema é capaz de nos dar uma resposta ágil e hábil para o problema. E como é de Truffaut que falamos, tal resposta assenta os seus alicerces num Humanismo e numa Humanidade a toda a prova. Em Farenheit 451, obra que para além de convidar à reflexão, é, também, a homenagem a Hitchcock - basta atentar nos planos tirados a papel químico das escadas de Vertigo ou no recurso ao soberbo Bernard Herrman para a banda sonora - bem como a afirmação do Amor de Truffaut pelos livros. Truffaut, L'homme qui aimait les femmes, cinéfio doente (porque La vie était l'écran), era também um ávido consumidor de livros. Esta é, pois, mais uma das suas muitas provas de amor.
Ora, fazendo a ponte entre filme e a realidade envolvente, surge a dúvida - parafraseando um célebre título de Ortega y Gasset - para quando a Rebelião das Massas?

sábado, setembro 16

Modas

James Ellroy
O Cinema tem disto. Cria modas. Traz à lembrança autores já caídos no esquecimento e, também, dá aconhecer autores por vezes desconhecidos do grande público. Neste particular, o novo filme de Brian De Palma, The Black Dahlia, terá a virtualidade de, em Portugal, ter sido o impulsionador da reedição da obra homónima de James Ellroy pela mão da Presença.
Não se trata de estratégia nova. Basta lembrar que Capote originou a reimpressão de A Sangue Frio (In cold blood) obra máxima de Truman Capote ou que A Selva de Leonel Vieira ocasionou a reimpressão d' A Selva de Ferreira de Castro, obra importantíssima em virtude de o estilo jornalístico de Ferreira de Castro ter contrribuído para o escancarar de portas ao neo-realismo em Portugal (pena é que o filme de Leonel Vieira não tenha saído da mediania).
Há que aplaudir a iniciativa da Editorial Presença. Com efeito, A Dália Negra, a despedida em sangue de Ellroy para com a sua mãe, é um romance policial notável, onde Ellroy, com a sua escrita telegráfica e o seu humor cínico e corrosivo nos leva a uma viagem demencial aos bastidores de Hollywood, criticando a típico autoritarismo de algumas instituições americanas e, simultaneamente, dando uma visão quási-heróica da Polícia. Espera-se que, de seguida, sejam re-editados os restantes livros da Tetralogia de Los Angeles: O grande desconhecido, Los Angeles confidencial (já adaptado por Curtis Hanson) e, finalmente, seja traduzido White Jazz, obra onde a escrita de Ellroy atinge a sua maturidade.
Após um hiato temporal de 13 anos em que A Dália Negra surgiu entre nós pela mão da Difusão Editorial, espera-se que também o público adira à obra de Ellroy. À época, apesar de não terem sido feitas referências extensas ao acontecimento editorial - exceptuando, por exemplo, a cobertura dada pela Revista Ler - os livros depressa esgotaram, o que denota sucesso junto do público. Se o Cinema tiver o mérito de criar novos leitores, apesar de tudo, há que nos congratularmos. Basta lembrar que sempre será uma forma de minimizar a perda de leitores e, paralelamente, são mostradas obras que, nem de longe nem de perto, são literatura light.
Concluo espicançando, ainda mais, a curiosidade do leitor: Ellroy é, de facto, um autor na linha de mestres da literatura policial como Dashiell Hammett e de Raymond Chandler.

quinta-feira, setembro 14

O pioneiro da Nouvelle Vague

Roger Duchesne em Bob le flambeur
Se é certo que Godard apelidou Jacques Becker de frére Jacques, não é menos certo que o verdadeiro pai do movimento, aquele que inspirou e incentivou Godard, Truffaut, Rohmer, Rivette e Chabrol a filmar foi Jean-Pierre Melville.
Acaso restassem dúvidas, bastaria um visionamento de Bob le flambeur para confirmar o que acabou de ser dito. Melville tem todos os traços que nos habituaremos a reconhecer em obras seminais como À bout de souffle ou Les quatre cents coups. Melville, cultor de um genero dito menor, o noir, acabou por desconstruí-lo, sublimando-o e elevando-o a patamares de excelência dificilmente alcançáveis, à imagem do que Sergio Leone veio a fazer com o western. Voltando a Bob le flambeur, teremos o prazer de ver o tratamento de histórias simples, banais e, simultaneamente, teremos a oportunidade de ver a Paris nunca vista. A Paris do milieu, dos pequenos marginais, dos reis de bairro, povoada por figuras curiosas, castiças, irónicas. Enfim, por pessoas que todos nós somos capazes de identificar com facilidade na rua. A isto acresce o privilegiamento - óbvio - da luz natural e do som captado ao vivo, bem como um estilo marcado não para hipnotizar o espectador, mas sim, pelo contrário, para lhe apresentar a realidade à imagem de uma qualquer reportagem.
Melville funciona, pois, como pioneiro e, mais importante, é outro dos belos exemplos que comprovam que o Grande Cinema nasce da escassez de meios. Basta lembrar que Bob le flambeur - filme que poderia ser designado, embora de forma altamente redutora, como o filme da noite e das mesas de jogo - apenas privilegiou os espaços públicos em virtude de Melville não dispor dos meios suficientes para construir cenários. E em boa hora que tal aconteceu. Só assim pode ver a luz do dia uma das obras mais singulares e marcantes do Cinema. Em qualquer caso, essa escassez de meios foi compensada pelos inúmeros movimentos de câmara que, o mais das vezes, fazem com que tudo pareça deslizar diante dos nosssos olhos. Exemplos manifestos de virtuosismo e de talento. Para fazer Cinema é quanto basta.
E assim tivemos a oportunidade de ver, antes do tempo, ambientes em tudo semelhantes aos de obras posteriores como À bout de souffle de Godard ou de Tirez sur le pianiste de Truffaut, obras maiores da Sétima Arte. Porque todos têm gurus e mentores, nunca será demais lembrar e conhecer Melville. Porque é Cinema. Porque é Vida.

terça-feira, setembro 12

Todos aspiramos a 2046


Wong Kar-Wai fechou a trilogia iniciada com Days of being wild e In the mood for love com chave de ouro. Se estas duas obras nos tinham deixado assoberbados pela sua estética refinada, assombrosa e hipnotizante, sempre matizada por uma poesia quase indescritível, sublime, e etérea, 2046 demonstra de forma cabal as qualidades que já havam elevado Kar-Wai ao Olimpo da cinefilia.
Através desta proposta que roça a megalomania, Kar-Wai oferece-nos um filme desdobrado em três níveis distintos: o real, vivenciado pelas personagens, a ficção, projectada nos romances ficcionados de Chow, 2o46 e 2047, bem como a memória, que se imiscui entre estes dois níveis, enleando-nos, seduzindo-nos e, também, deixando-nos perplexos, quer pela interpenetração destas três realidades tão díspares, quer pelos contrastes flagrantes das experiências que nos são dadas a vislumbrar. Em qualquer caso, cumpre salientar que nesta tensão entre presente e futuro, será sempre a memória a comandar, porque, através de várias coincidências (Chow passou uma noite com o amor da sua vida no quarto 2046, o mesmo que passará a espiolhar; será o reencontro com uma Li Zehn que fará despontar, de novo, a chama da paixão...), acabará por fazer avançar o enredo.
No seu âmago, 2046 mais não é do que a história de Chow (sensacional Tony Leung), escritor e jornalista que habita num quarto de hotel. Solitário, sedutor, egoísta e insensível, Chow passa boa parte do seu tempo a preparar o seu romance 2046, aproveitando, igualmente, para rememorar boa parte das suas relações passadas. Chow é, assim, o leit motiv utilizado para Wong Kar-Wai lançar várias interrogações sobre as relações humanas. Mais do que personagens concretas e definidas, 2046 apresenta-nos náufragos à deriva, seres acossados, dominados por dilemas existenciais profundos, exponenciados por um décor que, apesar da sua frugalidade - e pensamos sobretudo no Hotel - transmite lúxuria e desejo, imbuindo o espectador de desejo e paixão. Kar-Wai, sempre fiel quer à utilização do slow motion para amplificar o pathos vivido pelas suas personagens, quer por sensacionais grandes planos, oferece-nos uma história onde a par de algum aparente irrealismo, o mistério domina.
2046, filme de extremos que se tocam, sem jamais entrar em conflito, oferece-nos assim o contraste entre o tom por vezes visceral de um presente, cheio de sombras e curvas sinuosas e um futuro, rectius, um imaginário onírico, onde todos são apresentados em tons quase celestiais, mesmo os andróides com reacções retardadas, metáforas do Homem Massa - para usar a expressão de Ortega y Gasset - com que Chow convive e que também ele é.
Assim, temos a oportunidade de, durante cerca de duas horas, ver um retrato duro de personagens alienadas, que se projectam no outro à espera de atingir o amor, sempre brindados por uma banda sonora que, mais do que ser um mero adorno, acaba por funcionar como peça narrativa, contribuindo, assim, para adensar o labirinto com que somos confrontados. No fim, sobrará o imenso vazio, quer a aridez de sentimentos de Chow, quer o deserto amoroso de Bai Ling (Ziyi Zang) ou a incapacidade de Li Zehn (Li Gong) fugir ao seu passado. Tudo isto para acentuar a que todos aspiramos ao nosso Mundo dos Sonhos, ao nosso 2046, lugar onde podemos amar e ser amados, expressão máxima do sentir, cúmulo da perfeição. O local onde poderemos ser unos, completos.
E tudo isto porque, se a realidade pesa, o largo espectro da memória nunca deixa de nos perseguir, censurando-nos por termos ou não termos feito. No caso de Chow, vingou a sua incapacidade de fugir ao passado e de superar a sua ironia e frieza para com as mulheres. Como que se Kar-Wai nos relembrasse que há que abrir espaço para o Amor. Para dar e receber. Com carinho e emoção, de molde a que não haja espaço nem para ambições frustradas, nem para sentimentos dominados pela sensação de vazio.
Wong Kar-Wai é, assim, o poeta do amor, o pintor das emoções e o escultor de ambientes. Em suma, um cineasta para conhecer, apreciar e estimar.

domingo, setembro 10

A propósito de Volver e de Almodóvar

Eloy de la Iglesia
"A minha dependência das drogas é coisa pequena quando comparada com a dependência provocada pelo Cinema"
Eloy de la Iglesia
Vivemos na época do elogio fácil, repetido e, por vezes, servil. Virou moda elogiar Almodóvar. Aparentemente, o cineasta espanhol largou a sua faceta de enfant terrible, de provocador, de agitador de consciências. Hoje temos "o" Almodóvar, cineasta reconhecido e profusamente elogiado (e de forma merecida, convenhamos). Parece que muitos dos seus delatores se esqueceram da polémica gerada por Átame!, Carne trémula, La ley del deseo, Mujeres al borde de un ataque de nervios ou Que he hecho yo para merecer esto?
Pois bem, parece terem esquecido, de igual modo, que Almodóvar não seria o mesmo se o Cinema espanhol não dispusesse da obra do polémico cineasta Eloy de la Iglesia (1944-2006). Eloy de la Iglesia ficou conhecido em virtude de brindar o espectador com histórias povoadas por marginais, delinquentes juvenis e onde a droga e os conflitos geracionais reinavam. Iglesia, funcionou, assim, como operador da transição entre um Cinema dominado pelo Franquismo e aqueloutro que explodiria nos anos 80, com Almodóvar como figura de proa. Como exemplo arquetípico saliente-se El diputado, obra onde o cineasta retrata as pressões sofridas por um deputado comunista, alvo de chantagem pela extrema direita, devido ao facto de ser homossexual.
Uma obra que prima pelo seu tom directo e cru e que não pode ser esquecida, sobretudo devido aos seus pontos de contacto com a de Pasolini - saliente-se que, por via de regra, o cineasta espanhol retrata ambientes similares aos de Accatone ou Mama Roma - e com Rainer Werner Fassbinder - o que é manifesto nas temáticas exploradas.
Almodóvar é importante, de facto, mas é conveniente não esquecer aqueles que o inspiraram.

sábado, setembro 9

Volver, ou do círculo perfeito

Penélope Cruz em Volver
Volver. Regressar, reencontrar as origens, voltar ao ponto de partida.
Num filme dominado pela morte, pela doença, pela união da família, e sem descurar as vestes do suspense e da comédia de costumes, Almodóvar faz-nos reencontrar o prazer do Cinema. Seja porque vimos o regresso de Carmen Maura ao universo do realizador, seja porque vimos Penélope Cruz falando a sua língua pátria, seja porque uma vez mais, Almodóvar reflectiu sobre as suas origens.
Um filme de regressos, mas também de dúvidas, surpresas, culpa e sentimento. Muito. Almodóvar, através de sublimes elipses mostra-nos quer um cadáver adiado que desconhece a sua sorte, mas cuja doença se adivinha, pelo seu aspecto frágil e febril (Agustina), tal como nos transporta num retorno constante entre Passado e Presente. Uma história de paralelos entre Mãe e Filha. Apenas porque a história se repete e esta mais não é do que um eterno retorno, um voltar atrás, revisitar. Dito de outro modo, trata-se regresso ao ponto de partida.
Sensível, tocante, Volver traz-nos os ecos das donas de casa que pululavam o neo-realismo italiano. Neste particular é manifesta a parecença na pose e na atitude entre Raimunda (Penélope Cruz) e a Madallena (Anna Magnani) de Bellissima. Mais do que uma homenagem de Almodóvar, este é, também, o seu modo de salientar a forte componente rural das sociedades urbanas. Tal como em Bellissima de Visconti, Almodóvar vem falar sobre o amor materno. O amor de Raimunda por Paula e de Irene por Raimunda. Mais importante, tal como em Bellissima, também houve, em tempos, um concurso de talentos em que Irene quis que a sua filha singrasse. Amor obsessivo, tal como é asfixiante a obsessão das personagens com a Morte.
A Morte antecipada quer por Agustina quer pela sequência inicial do cemitério. Através de personagens acossadas por espectros, aparentemente fantasmas, que visitam os moribundos, Almodóvar acaba por traçar um pitoresco retrato sobre as superstições e, mais importante, a forte componente rural - e também castiça - dos habitantes de uma grande cidade. Espíritos crédulos, algo tacanhos, mas sempre sinceros no sentir e na emoção. Emoção, eis o que Volver nos oferece. A mesma emoção com que Raimunda e sua irmã, Sole, se aperceberão que, a final, a sua mãe não morrera e que o seu fantasma mais não era do que um mito urbano.
Sempre autobiográfico, também Almodóvar regressou ao seu passado, desta feita recordando a sua terra natal, reflectindo sobre as suas origens e sobre as complexas teias familiares que se vão desenvolvendo, aconchegando e envolvendo os vários intervenientes. Mas não só. Volver não deixa de abordar os complexos de culpa, também eles outra obsessão capaz de conduzir ao abismo. Sejam os remorsos por matar, sejam o ressentimento pela aparente falta de afecto, a culpa surge como via única para a expiação dos pecados. E, neste particular, Almodóvar, indirectamente, dá a crítica quer de uma Espanha rural e católica, como também criticará a Espanha urbana, do lixo televisivo e dos reality shows.
Volver é o regresso de Almodóvar e do Cinema. É o reencontro do espectador com os Mestres: desde o explícito Visconti que passa na TV, passando por cenas que lembram Hitchcock - veja-se, por exemplo, a ocultação do cadáver. Almodóvar regressou. Tal como nós, que redescobrimos a emoção e pudemos perscrutar as nossas origens, pela mão de Raimunda, Irene, Sole, Paula e Agustina. E no fim, vemos a unidade da família. Todos os elos reunidos numa união indissolúvel (e, aqui, vêm-nos à memória memórias de Ozu). Porque um galho, sózinho, é facilmente quebrável, mas vários juntos dificilmente serão destruídos.
Volver. Tudo voltou a ser como era. Bem vistas as coisas, nunca saímos do ponto inicial.

quinta-feira, setembro 7

A Ilha dos Amores

Clara Joana e Luís Miguel Cintra em A ilha dos amores
Paulo Rocha, autor do imortal Verdes Anos, é um nome incontornável do Cinema Portugês, tal como o é este A Ilha dos Amores.
Obra de fôlego e extremamente ambiciosa, A Ilha dos amores está construído em termos em tudo iguais aos de uma epopeia. Com efeito o espectador toma contacto como uma proposição, uma invocação e uma narração para chegar, cremos, a um epílogo. O tom ambicioso é manifesto, desde logo, se se tiverem em conta os pontos de contacto com Os Lusíadas, obra sempre presente, tal como o seu autor, Luís Vaz de Camões, erigido por Paulo Rocha como figura inimitável e arquétipo de todo o português. Todavia, contrariamente ao poema épico camoniano, não topámos com a sublimação do povo português. Pelo contrário, Paulo Rocha, recorrendo à figura de Wenceslau de Moraes, acaba por traçar uma profunda análise ao modo de ser português e ao sentir lusitano.
Wenceslau de Moraes (soberbo Luís Miguel Cintra) que, inicialmente, surge como alguém titubeante, receoso de embarcar no desconhecido, o Oriente longínquo, acaba por transformar-se, gradualmente, num ser romântico e, à medida que aumentam os anos da estadia pelo Oriente, vê a sua Saudade crescer, ensimesmando-se, até acabar sozinho, sempre deambulando por cemitérios. Vimos um Wenceslau momentaneamente exacerbado, perdido de amores, para acabar só e amargurado. Sem ninguém. Apenas acompanhado pelo seu gato e pelos seus livros. Um verdadeiro militante da cultura que tudo teve e tudo perdeu, tal como a sua pátria. Este é o único fim digno desse nome que o espectador vislumbra.
A Ilha dos Amores, filme formalmente dividido em nove cantos, é um filme de espelhos e reflexos. Não é à toa que a câmara de Paulo Rocha filma espelhos amiudadas vezes. O espectador não toma contacto directo com a realidade. Vê-a reflectida. E vê uma alma em crise, rarefeita, sempre ofuscada pela sombra paterna e monumental de Camões. Aliás, não é à toa que veremos Pessanha (Paulo Rocha, lui-même) dizer que, no Oriente, ele e Moraes são os típicos lusitanos, com sua mulher nativa, a prole mestiça, sobre a protecção da estátua de Camões. A Ilha dos Amores acaba, também, por ser a sublimação e apologia do passado, em contraste com um pressente povoado de despojos, farrapos e imundície. Isso mesmo é corroborado pelos longos monólogos de Vénus, sempre rodeada por peças de artilharia, demonstrando a fragilidade das ligações entre presente e passado e, mais importante, mostrando uma alma em crise, em luta, em permanente desconstrução.
Obra de uma beleza a toda a prova, A Ilha dos Amores é um marco no Cinema Português. Wenceslau de Moraes acabou por ser apenas, passe o exagero, um mero pretexto, para podermos tomar contacto com uma obra ríquíssima, em que contrasta a sensualidade e exuberância da paisagem oriental, com a frieza, pedantismo e snobismo de uma Lisboa virada sobre si mesma. Neste particular, são assombrosos os raccords entre Oriente e Lisboa - sobretudo os seus telhados - apesar do flagrante contraste entre ambos os espaços. Os mesmos telhados onde os actores receberam as suas personagens e, simbolicamente, as queimaram no fogo.
Esta é A Ilha dos amores, um filme labírintico, aberto, pleno de interpretações e trilhos a serem explorados. Filme de tom grave e de ritmo lento, A Ilha dos Amores visa semear a dúvida, a reflexão, tal como toda a sua beleza deve ser contemplada e saboreada, sem quaisquer pressas. Desde o tom ligeiramente colonialista, passando pela incapacidade de adaptação a um qualquer ligar, os amores exacerbados, a honra, ao longo de três horas o espectador vê enleado numa delicada e imbricada teia de relações e de questões. Talvez por este motivo se possa dizer que vimos um filme pomposo e altivo. Nada mais acertado. Com tamanha riqueza temática, e atendendo à inspiração épica, não poderia ser outro o tom.
Bem vistas as coisas, as magníficas sequências do Museu de Artilharia funcionam como a síntese desta obra excepcional: obra em conflito, em luta, tal como Wenceslau consigo e o País que o acolheu. Tal como qualquer Ser Humano vive em conflito consigo próprio. Em qualquer caso, ficam semeados a dúvida e o receio: será que Portugal acabará decrépito, só, como um vagabundo, tal como Wenceslau? Talvez seja esta uma das principais questões a que A Ilha dos Amores não responde.

quarta-feira, setembro 6

Cinema Existencial III

Bengt Ekerot e Max von Sydow em Der Sjunde inseglet
Porque tudo se resume a um jogo. Mesmo a Morte.

terça-feira, setembro 5

Exemplo a seguir

Fritz Lang
Fritz Lang, autor de obras imortais como Metropolis, M - Ein Stadt sucht ein Mörder, Die Spinnen ou Dr. Mabuse, der Spieler, aquando da sua fuga para os Estados Unidos da América, deu-se ao trabalho de, antes de retomar a tempo inteiro a sua profissão, ler muitas das obras secundárias da literatura norte-americana, com o intuito de poder, simultaneamente, entender o público com o qual passaria a comunicar e descobrir histórias que pudessem servir de base aos seus futuros filmes.
Lang, apesar da sua celebérrima fama de realizador tirano e implacável para com os actores, teve a humildade de procurar entender o seu público, de molde a adaptar a sua Arte a uma nova realidade, em vez de impor a sua visão do Mundo. Lang não foi autista. Desejou comunicar. Deste modo, puderam ver a luz obras como Fury, Rancho Notorious ou The Big Heat*.
Ora, numa época em que muitos realizadores centram as suas atenções em sucessos literários à escala mundial (veja-se, por exemplo, o medíocre Da Vinci Code), talvez não fosse má ideia aprenderem com Mestre Lang: maus romances, podem dar grandes filmes. Basta que o realizador, para além de ter talento, seja capaz de extrair o melhor do material de base. Assim, para evitar que a literatura Thrash (também conhecida por literatura de aeroporto) invada as salas de cinema em adaptações medíocres e sensaboronas, urge que os realizadores se esforcem ao invés de, pura e simplesmente, enfiarem uma história numa dado tempo limite.
* Note-se que das obras citadas apenas The Big Heat teve por base um romance.

Interpretações memoráveis IV

Simone Signoret em Casque d'or
Ver Casque d'or, obra maior de Jacques Becker equivale a deixarmo-nos hipnotizar por Simone Signoret. A sua entrada em cena, insitintivamente, leva-nos a fixar o olhar nela. Signoret, em pose de diva, em tom de desafio, sem medo, segura. Becker, como se houvesse necessidade, em muito contribui para esse hipnotismo: Signoret, Casque d'Or, surge sempre deificada em virtude de uma profusa e prodigiiosa utilização de luz. Com efeito, não vimos uma mulher dos bas fonds. Graças a Becker, vimos uma deusa pairando sobre o décor, difundindo o seu charme e a sua graça. Espalhando luz, reflectindo-a. Signoret, mais do que a luz deste excelso filme, é um farol, iluminando Manda (portentoso Serge Reggiani), e encadeando o espectador.
Com auréola de divindade, Signoret passeia a sua graça, fazendo Manda enamorar-se perdidamente, tal como o espectador, absolutamente rendido aos seus encantos e incapaz de desviar os olhos desta divindade enviada para que os restantes pedaços de criação a possam contemplar. Contemplar, eis a palavra adequada. O belíssimo plano em que Manda acorda e se depara com Casque d'Or é o resumo perfeito desta visão do Paraíso. Mas sempre fica uma dúvida: vimos alguém real ou absolutamente ideal, rectius, idealizado pelo toque magistral de Becker?

domingo, setembro 3

Je vous présente....Iosseliani

Otar Iosseliani

Otar Iosseliani, autor de obras como Les favorits de la Lune, Et la lumière fut, La chasse aux papillons ou, mais recentemente, Lundi Matin, esteve em Portugal há alguns meses. Na altura disponibilizou-se para discutir com os espectadores após a exibição do filme Lundi Matin. Eis alguns dos seus pontos de vista sobre como fazer cinema:
- Nunca se deve adaptar um livro. Se ele é mau, nem sequer vale a pena adaptá-lo. Se é bom, arriscamo-nos sempre a ficar aquém da obra que serve de base ao nosso trabalho.
- Nunca fazer campo, contra-campo.
- Contratar actores desconhecidos. Se contratamos Gérard Depardieu ou Catherine Deneuve, não teremos a personagem A, B ou C, mas sim Gérard Depardieu ou Catherine Deneuve. Mais importante, um actor desconhecido ajuda a passar melhor a mensagem que queremos transmitir.
Iosseliani, autor fortemente influenciado por Jacques Tati, é dono de uma obra original, com um humor corrosivo e com uma fina ironia, pondo a nu muitas das incogruências do ser humano. Os seus filmes, por assim dizer, são uma panorâmica sobre um dado lugar, em que cada frase é uma estocada precisa, dotada de uma suprema ironia, sendo que a forma como esse lugar nos é apresentado denota a precisão do trabalho em filigrana. Os ambientes de Iosseliani são um fresco povoado de personagens por vezes dotadas de algum surrealismo, bem como por algum pessimismo. Mas, mais importante, os seus filmes partem da emoção e de um ponto de vista extremamente humano para serem o libelo acusatório, rectius, retrato mordaz da realidade envolvente.

sexta-feira, setembro 1

Abraçar o destino

Rocco e i suoi fratelli

O abraço da morte, a aceitação do destino, a purificação pela morte.
Nadia, a prostituta desencantanda com a vida, abrindo os braços ao seu assassino, aceitando o destino, corporizado no carrasco impiedoso e implacável, Simone, que não será capaz de superar a sua morte. Este abraço, sendo a aceitação trágica de uma realidade a que se não pode fugir, é, também, a redenção, a busca de perdão, o anseio pela paz interior. Nadia, a prostituta que levara Simone à perdição e despertara a comiseração e o amor de Rocco. Movimentando-se entre a vida pecaminosa das camas de amor comprado e a crença ingénua numa realidade alegre, graças à projecção no outro, aquele capaz de a completar e de a afastar da perdição, Nadia acaba por funcionar como uma síntese perfeita do paradoxo existencial, dos gestos e atitudes contraditórias. Mais importante, é a vítima exemplar no altar sacrificial do Destino. Ele pode tardar, mas não lhe podemos fugir.
Nadia optou por aceitá-lo de braços abertos, como se estivesse na cruz, expiando os seus pecados e, simultaneamente, obtendo o perdão pela vida que levara. Tal como o vazio do cenário, também Nadia já nada tinha de seu. Daí o passo em frente para o grande vazio...