terça-feira, maio 29

A magia e o suspense da porta

O cinéfilo militante acaba, inelutavelmente, por se deixar vencer e ser enleado pelo mundo dos vários fotogramas que vai vendo, admirando e amando. Invariavelmente, chegará o dia em que a o Cinema acabará por tomar as rédeas da sua retina e, por um motivo qualquer, um simples acontecimento vivido despoletará a memória de outro visto projectado na tela. É nesse ir e vir de perspectiva que, provavelmente, a cinefilia nascerá e se desenvolverá.
Num desses momentos - e ainda não há muitas horas - o ora escribe viveu uma dessas, passe a expressão, experiências: atravessando um longo corredor permeado de portas, com o olhar fixo na porta que daria acesso ao local de trabalho provisório das próximas semanas, inúmeros fotogramas dos travellings de Yazujiro Ozu atravessaram, em lampejos sucessivos, os olhos, enquanto iam sendo dado passos para o objectivo final. Finalmente compreendeu-se a dificuldade de filmar uma porta fechada. Esta esconde um mistério ao qual nos vamos aproximando, sempre sem saber ao certo aquilo que veremos ou qual o aspecto do espaço a que acederemos. A porta é uma fronteira, mas é, também, um pólo que atrai e espevita a imaginação. Estranhamente, temos medo do desconhecido e esse medo, simultaneamente, faz voar a imaginação. Uma das belezas do Cinema de Ozu é o facto de captar toda a essência de momentos tão frugais e banais como esses de modo eficaz e poético.
A porta - a real, bem entendido - estava fechada: alguém tinha perdido as chaves da dita, ficando, assim, por desvendar o mistério escondido por trás da fronteira que ela marca. (ou Do Mundo da Alta Finança no seu melhor)

domingo, maio 27

Tese e antítese: ideia e matéria

Jean-Marie Straub e Danielle Huillet vistos por Pedro Costa, neste excerto do magnífico Où gît votre sourire enfoui? AKA Onde jaz o teu sorriso?
Uma forma de auto-penitência por não ter ido rever Quei loro encontri, para grande pena minha por razões várias.

sexta-feira, maio 25

Está bonita a Feira...

...mas o tempo nem por isso. Apesar de tudo, não há melhor forma do que selar uma semana infernal percorrendo as barracas instaladas no Parque. É certo que as ditas barraquinhas não têm um ar respeitável. Pelo contrário, algumas fazem lembrar bunkers ou, quando muito, construções terceiro-mundistas. Estranhamente - ou talvez não - são a melhor forma de, temporariamente, dar vida a uma zona da Cidade que, nos dias remanescentes, está quase esquecida. Mas eis o mais importante: viajar pelas ideias que outros verteram no papel, partilhando e abrindo o seu Eu a um Mundo mais vasto, é pretexto mais do que suficiente para perder algumas horas lendo, folheando livros e fazendo a corte ao livro que, quase invariavelmente, acabamos por comprar.
Os suspeitos do costume são conhecidos: Relógio d'Água, Assírio e Alvim e Livros Cotovia. Em segunda linha vêm a Caminho (porque publica grandes autores de expressão portuguesa) e a Dom Quixote (só porque têm Lobo Antunes e, sobretudo, Maria Velho da Costa). Junte-se estoutro: o sítio do costume. Afinal de contas, o Cinema também está bem representado. E recomenda-se.

segunda-feira, maio 21

Post macunaímo-morettiano


Após 16 horas de uma dura e intensa maratona negocial, ao Herói só acorria uma frase "Ai que preguiça". Apesar da sensação do dever cumprido, o Herói experimentava o estranho sentimento de estar num Mundo que conhecia, mas teimava em não perceber. Um Mundo onde a baixeza e os instintos vis imperam, mas onde - certamente por milagre - se conhecem alguns pedaços de criação dignos de ser conhecidos. Apesar de tudo, o Herói não deixou de sentir a sensação de passear pelos corredores da alta finança galopando na sua Vespa, de óculos escuros e sempre com observações irónicas, prontas a brindar os interlocutores enfiados em fatos escuros e com forcas ao pescoço. Compreendia-os, apoiava-os, incentivava-os, mas não deixava de sentir uma compaixão paternalista pela pequenez das suas condutas. Tem mais não?

domingo, maio 20

Still life, a (des)construção das ruínas


Em Still life, de Jia Zhang-ke, tal como em Juventude em Marcha, de Pedro Costa, somos confrontados com uma realidade em ruínas, que se constrói e desconstrói constantemente. Mais do que a construção da barragem das Três Gargantas, que serve como pano de fundo às personagens, em Still life é todo um Mundo de emoções que também ficará em estilhaços e destroços.
É um mundo povoado por resistentes cujos corpos inistem em gravar a sua presença no seu espaço. Perante as pressões ditadas por um outro Mundo, em progresso constante, as personagens principais de Still life surgem-nos como seres passivos, estóicos e persistentes. São personagens que se negam a abandonar a realidade que conhecem. Ficaram reféns de um qualquer evento e, consequentemente, resistem de forma passiva perante a voracidade da globalização e do progresso.
Still life é poesia em estado puro. Construída sobre indiferença e a resistência ao progresso, algures entre a ténue linha do saudosismo do tempo que já não é e do tempo que virá (e de novo vem-nos à cabeça Ventura e a sua Juventude em Marcha). É um filme elegante e, provavelmente, o melhor em exibição. Tal como é um objecto peculiar, onde há lugar para tudo e onde tudo é construído a partir da observação atenta do quotidiano (o que nos traz reminiscências de Ozu). Neste labirinto de destroços e de personagens que erram pelas ruas à procura de algo que teima em fugir-lhes, fica, como força motriz, o humanismo e romantismo que guiam os protagonistas.
Still life, tal como a realidade que documenta para a posteridade, é, também, um objecto destinado a desaparecer: na velocidade vertiginosa do Mundo moderno parece não haver (muito) espaço para poetas românticos como Zhang-Ke. O que é pena.

quinta-feira, maio 17

O Herói sem carácter

Falar de Macunaíma, filme de Joaquim Pedro de Andrade sem referir Macunaíma, romance de Mário de Andrade* resulta impossível. Joaquim Pedro aproveitou o facto de ter à sua disposição uma obra que ditou a revolução da linguagem (no que ao Português do Brasil diz respeito) para nos dar a sua visão do Brasil.
Para o efeito, centrou-se na singular e surreal personagem Macunaíma, o índio preguiçoso, que, à custa de brincadeiras se vai transforamando consoante as circunstâncias: princípe branco, insecto, peixe e, até, pato.
Joaquim Pedro aproveita toda esta parafernália de metáforas existentes no romance para dar um retrato irónico e mordaz do Brasil (retrato ainda hoje actual e, diga-se, "exportável" para outras paragens), centrando-se apenas na metamorfose de índio preto em príncipe branco de Macunaíma. Numa adaptação muito livre da obra homónima, Joaquim Pedro oferece-nos uma ópera tropical de tons garridos. Nela está encerrado o Brasil, mas, principalmente, a natureza humana. Macunaíma é o símbolo do povo Brasileiro (facto confessado por Mário de Andrade em prefácio ao romance): preguiçoso e sem carácter. Criatura de má formação e instintos pérfidos, Macunaíma é o símbolo do oportunismo e mesquinhez que dominam criaturas cegas pela cobiça e pela inveja. Acima de tudo, Macunaíma, é, também, uma das obras-charneira do Novo Cinema Brasileiro. O mesmo que nos deu a conhecer e a admirar Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e, claro, Joaquim Pedro de Andrade.
Dá vontade de citar o final de Macunaíma (livro): Tem mais não.
*publicado entre nós pela Antígona

terça-feira, maio 15

Moravia, "Dessublimato"

Alberto Moravia é um escritor muito prezado neste recanto. Eis um motivo. Em Moravia, o Cinema é, o mais das vezes, figurante, protagonista e cenário (pense-se, por exemplo, em O desprezo, obra-base do filme homónimo de Jean-Luc Godard):
"Intrigante! Astucioso! Traiçoeiro! Vil! Eis como manténs as tuas promessas! Eis como respeitas os pactos. Durmo, tenho uma quantidade de sonhos indiferentes que agora não recordo, e, no fim, sonho estar num estúdio cinematográfico, enormíssimo, imerso na penumbra. Num ângulo, sobre o carrinho está a máquina de filmar coberta por um pano preto. Sei seguramente que está girando, finalmente!, o "meu" filme. Qual filme? Quem é o produtor? Quem são os actores? Não o sei. Sei somente que é o "meu" filme. O filme no qual penso há quinze anos. O filme do qual depende toda a minha vida. Eis que salto para o carrinho, sento-me no banco e, curvando-me para a frente, com um gesto desenvolto e profissional, ponho o olho na objectiva.(...)"
Eu e ele, (tradução de Marques Gastão) Livros do Brasil, p. 9

segunda-feira, maio 14

Verdade dogmática (inabalável?)


Da vida a dois, na singular visão de Jean-Luc Godard e nas palavras de Aznavour, reunidos durante perto de quase 4 minutos em Une femme est une femme:
"(...)Au lieu d'penser que j'te déteste
Et de me fuir comme la peste
Essaie de te montrer gentille
Redeviens la petite fille
Qui m'a donné tant de bonheur
Et parfois comm' par le passé
J'aim'rais que tout contre mon cœur
Tu l'laisses aller, Tu l'laisses aller"

domingo, maio 13

História de um tímido

Com Tirez sur le pianiste, François Truffaut procurou um estilo novo, fundado nas incessantes alterações do tempo, construindo, assim, um filme feito sobre rupturas de ritmo. Para além do mais - e porque é de um pianista que se trata - todo é um "quase-musical", composto por vários registos sonoros destinados a criar os vários ambientes em que Charlie se passeia ou os sentimentos que experimenta.
Talvez por isso, este seja o verdadeiro filme Nouvelle Vague de Truffaut: experimentalismo, rudeza de linguagem (quer visual, quer verbal), constante jogos de palavras, citações cinéfilas em série. O filme foi um verdadeiro desastre comercial e Truffaut não mais ousaria filmar de modo tão experimental, preferindo optar por abordagens conservadores. Dir-se-ia que, do mesmo modo que Tirez sur le pianiste é a homenagem e elogio da timidez, também a restante obra de Truffaut o será, já que a sua "timidez" na abordagem dos filmes o mais das vezes esconde obras-primas absolutas.

quarta-feira, maio 9

Reflexão (quase) herética

Ver um Straub-Huillet é uma experiência mista, cujas componentes, apesar de complementares, são (aparentemente) contraditórias:
  1. equivale a bater contra um muro de betão. É um Cinema sólido. Impera o plano-sequência. Por via de regra, o argumento tem por base textos literários.
  2. implica um acto de contemplação. A composição da imagem (pensemos, por exemplo, na inspiração retirada do expressionismo alemão), apesar da aparente simplicidade, esconde uma riqueza indesmentível.
Straub, pedaço de Criação absolutamente verborreico, apelidava o raccord como a invenção mais estúpida do Cinema. Talvez por esse motivo o centro gravitacional do Cinema da dupla Straub-Huillet resida na procura de registar o real, da forma, passe a expressão, mais verídica possível.

segunda-feira, maio 7

Os duros não dançam

Lendo Os duros não dançam, de Norman Mailer, dei por mim a ser invadido por um omnipresente Sam Fuller. Não era para menos: a prosa acutilante e directa de Mailer, associada a algumas das explosões de violência do protagonista, faziam ecoar o estilo Fuller: simplista, violento, com linguagem dura e processos (aparentemente) simples. Como isto anda tudo ligado, ao rever The Big Red One, de Fuller lembrei-me, instintivamente, do estado de espírito e de algumas das peripécias das personagens de Os nus e os mortos, de Mailer*: impera o espírito de grupo, o desprezo para os que estão fora dele e, acima de tudo, a rudeza de carácter, expressa na violência do gesto e na rispidez da linguagem.

* Com as devidas distâncias entre os Universos de ambos os autores, claro está. Como exemplo, note-se o facto de o romance de Mailer ser a reminiscência das experiências vividas na II Guerra Mundial por Mailer no Japão...

domingo, maio 6

Pyaasa, ou do lugar do artista no Mundo

(Clicar na imagem)

Guru Dutt é um Mestre absoluto do Cinema mundial e, ironicamente, talvez seja dos menos conhecidos e divulgados. Trata-se de alguém que foi capaz de aglutinar dois elementos distintos (de um lado o legado da Hollywood clássica e, de outro, o musical de Bollywood), instrumentalizando-os, de modo a colocá-los ao serviço da sua particular mundividência.
Nem mesmo no mais capital dos momentos, como na cena do auditório de Pyaasa, em que um poeta que todos julgavam morto reaparece, de molde a reclamar a autoria da sua obra que, entretanto, conheceu umfulgurante sucesso popular, o melodrama ou a emoção barata toldam o filme. Dutt, nos seus melhores momentos, é sempre capaz de gerir com perfeição a racionalidade de alguém que tem algo para dizer (o realizador) e de alguém que quer ver algo emocionante (o espectador). Em Pyaasa isso faz-se através de um momento sublime: Vijay (Guru Dutt) vem das sombras e, no umbral da porta de um auditório, surge em jeito crístico - como que simbolizando o seu sacríficio e da sua obra à materialidade reinante - cantando as suas mágoas e, simultaneamente, acusando o sistema que usurpou o seu legado. Aí, a música, a palavra, o movimento de câmara e a mise-en-scène (com a câmara ora aproximando-se, ora distanciando-se das personagens, reflectindo a sua relação com Vijay) atingem a simbiose perfeita. Transformam-se num corpo uno, onde cada frame é a sílaba (ou palavra, ou letra...) dos versos que vamos ouvindo. Tudo isto num ambiente que tão depressa nos leva desde a mais idílica fantasia até à mais dura realidade, sendo a música o elo que as liga e cria atmosfera necessária para o efeito.
Guru Dutt é, pois, um tesouro a ser descoberto.

sexta-feira, maio 4

Da estranheza da realidade

A câmara de Thomas propunha-se ser o prolongamento dos seus olhos. Mais do que um apêndice do seu corpo, a câmara seria o próprio Thomas: seria visão, tacto, olfacto, audição...propunha-se captar a realidade conforme ela se lhe oferecia. Ora lânguida, ora agitada. Feia. Bela. O seu aspecto talvez fosse o que menos importasse. Apenas contava captar a essência do real. Mas também a câmara, objecto de precisão transformado em parte do corpo, falha. Cria ilusões, induzindo a obsessão e a sensação de engano, tornando-nos incapazes de distinguir o real da fantasia. Ao ponto de a própria câmara de Antonioni, acompanhando a bola imaginária de um jogo de ténis, paulatinamente, acompanhar esse objecto abstracto que, mais do que se projectar no vazio, impõe-se, subjugando a realidade envolvente e todos aqueles que a contemplam. Simultaneamente familiar e incómoda. É essa a estranheza da realidade que nos envolve.Obriga-nos sempre a interrogar se vimos de facto ou se, pelo contrário, nos ficámos por uma qualquer sensação com sabor a real. No fim, sobra sempre o vazio do quase: sentimentos toldados pela angústia e desespero de termos tido o Santo Graal nas mãos e este se ter esvaído em fumo, e pela quietude de espírito que nos leva a desejar obter a simbiose entre matéria e espírito, diluindo-nos na própria abstracção da "realidade" que perseguimos.

quarta-feira, maio 2

Da vida alheia

Almada Negreiros finaliza o seu Nome de Guerra, apresentando a moralidade do romance: Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar.
Trata-se de uma máxima que é perfeitamente aplicável ao cinéfilo militante, aquele que vive, sente e ama o Cinema (um amador em sentido próprio). Efectivamente, a curiosidade que desperta o nosso olhar, nos faz querer ver mais, rever uma cena ou plano que gostamos é uma das aplicações da máxima de Almada: alimentando o vício que educação do olhar exige, o cinéfilo acaba por ver-se enleado numa aura de espectros. Espectros animados que povoam a mente e uma qualquer situação do quotidiano faz acordar, sobressaltados, de um beco recôndito ou de um canto escuro da mente. O Cinema é vida, é obsessão e paixão. É total. Ao ponto de, mal entramos - ao jeito de um voyeur - nas vidas projectadas no écran, sermos incapazes de as abandonar, tal é a força do nó que nos amarra ao alheio, à vida dos outros.