O cair da noite
La notte é dos mais perturbantes filmes de Michelangelo Antonioni. Provavelmente, será o mais soturno e mórbido.
Trata-se de um filme em que, subliminarmente, Antonioni nos revela os seus propósitos logo no genérico inicial. Com o longo travelling descendente sobre o edifício Pirelli em que a câmara aponta para os vidros espelhados, o espectador fica logo de sobreaviso: nada do que parece é, e, mais importante, muito do que julgamos ver mais não é do que o reflexo do que queremos ver (daí a focagem de vidros espelhados, reflexos de uma outra realidade).
Mais do que apontar para um certo "impressionismo", Antonioni vai descer ao fundo do animus das suas personagens. Na verdade, La notte mais não é do que o retrato duro e cru de um certo ethos social. O travelling inicial assim o indicia: tal como descemos o edifício Pirelli, também a câmara de Antonioni incidirá, rectius cairá sobre Giovanni (genial Marcello Mastroianni), Lidia (sublime Jeanne Moreau) e Valentina (sensacional Monica Vitti). E o retrato não podia ser mais preocupante: não há sentimentos, emoções ou valores. Em suma, vimos, durante duas horas, o desfilar da mais perfeita alienação.
Usando da sua linguagem arquetípica, Antonioni procura a abstracção do sentimento. Tal é conseguido através da projecção dos sentimentos das personagens para o exterior. E o exterior, aquilo que as molda, resume-se ao somatório de prédios volumosos. Modernos no estilo e na arquitectura, mas impessoais e frios. De facto, é esse grau de coolness (passe o anglicismo) e vazio sentimental que vemos perpassar em todas as personagens: Giovanni, o escritor famoso e apático; Lidia, a sua mulher, sempre deambulando por Milão; Valentina, a filha do industrial rico e incapaz de amar...
Este é um pormenor que é evidenciado pela longa sequência da festa: vimos o desfilar da futilidade e da estupidez. Afinal, qual o significado da exibição de um cavalo numa festa? Ou qual a necessidade de, previamente, alguém às portas da morte querer beber champagne? Perguntas para as quais a resposta sairá titubeante, mas, provavelmente, talvez sejam o reflexo de querer fugir de uma realidade que oprime (veja-se o paradigmático passeio de Lidia por Milão). Em qualquer caso, é possível afirmar que é a mais bela das ironias. Tal como é irónico que toda esta soturnidade, morbidez e alienação sejam acompanhados pelo calor do jazz no último terço do filme, em perfeito contraste com o que vemos.
Antonioni, uma vez mais, levou-nos a fazer a travessia do deserto da ausência, da aridez da alma e da desnecessidade da palavra. Vimos a consumação do desabar de um casamento (entre Lidia e Giovanni) poucas horas após uma visita a um amigo moribundo. E, de certo modo, foi a morte que vimos e que essa visita antecipou: a morte do Homem enquanto tal e o triunfo da aparência e do reflexo. Em bom rigor, nada que não fosse adivinhável: da mesma forma que a câmara é sempre um filtro do que vemos, em Antonioni, para além desse filtro, são os próprios objectos a mesclar-se com a nossa visão: basta dizer que não foram poucos os planos em que o exterior foi filmado através de uma janela ou de qualquer outro ambiente interior...
Aliás, não deixa de ser sintomático que o filme acabe com a focagem do vazio da floresta. Do mesmo modo que Giovanni e Lidia não existem enquanto casal, também nada mais, porventura, existirá. E a conclusão é a mesma daqueloutra de uma canção de Jacques Brel: L'amour est mort.
3 Comments:
Até hoje só vi 'Blow up' do realizador...
E, provavelmentes, viste o melhor dos filmes dele. É um ponto em que fico completamente dividido: entre o "Blow up" e a trilogia que o antecede ("l'avventura", "la notte" e "l'eclisse") custa-me sempre dizer qual é o melhor. O "Blow up", provavelmente, é o sumário do cinema do Antonioni. E que Cinema! ;-)
Idealmente, deviam ver-se pela cronologia (l'avventura, la notte e l'eclise), mas como não há fio condutor entre as histórias e apenas a temática é comum, acho que não há mal nenhum.
Ah, já agora, eu fui "introduzido" À trilogia, também, com "l'eclise" :)
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