segunda-feira, abril 30

Filmar literatura, escrever filmes

Com o título deste post, poderíamos, facilmente, ser tentados a evocar Teorema, de Pier Paolo Pasolini, obra que conheceu duas expressões distintas: filme e livro, cada uma delas, sublime à sua maneira. Todavia, desta feita, cede-se a palavra a Eric Rohmer, a propósito dos seus Six Contes Moraux:
"(...)Houve outra razão que me forçou a dar aos Contos um cunho literário. A literatura, neste caso - e é essa a minha principal desculpa - tem menos a ver com a forma do que o conteúdo. A minha intenção não era filmar episódios brutos, mas o relato que alguém fazia deles. A história, a escolha dos factos, a sua organização, a forma de os apreender estavam "do lado" do próprio tema, não do tratamento que eu podia fazer desse tema. Um dos motivos porque se diz que estes Contos são "morais" é que são quase totalmente desprovidos de acções físicas: tudo se passa na cabeça do narrador. Contada por outra pessoa qualquer, a história seria diferente, não existiria.(...)"
Eric Rohmer, Seis Contos Morais (tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo), Lisboa: Edições Cotovia, 1999, pp. 11-12
Seis Contos Morais (livro) é, pois, a antecâmara cronológica dos Six Contes Moraux (filmes) mas é, simultaneamente, o prolongamento da sua projecção. Um exemplo de puro prazer. Visual e não só.

sexta-feira, abril 27

Jazz Mood

Sabe-se que o Jazz (a par dos Blues) preenche o imaginário de muitos dos grandes cineastas: Clint Eastwood realizou "Bird", inspirado no lendário Charlie Parker, Scorsese assinou documentários sobre Blues, tal como Wim Wenders; Miles Davis assina a banda sonora de "Ascenseur pour l'échafaud" de Louis Malle, Herbie Hancock a de "Blowup", de Michelangelo Antonioni. Citando o título do tema do vídeo supra: "So what?" (como bónus, registe-se a participação do virtuosíssimo John Coltrane). A música é, talvez, a mais perfeita expressão da faceta intíma do Ser e, por isso mesmo, as palavras, o mais das vezes só atrapalham na ilustração dos sentimentos.
De qualquer modo, é sempre bom ver que, de arte étnica e menor, o Jazz acabou por ascender a produto (tendencialmente) para (pseudo)elites. Passou da América pobre para as salas de espectáculos. Atravessou o Atlântico e conquistou Paris. Boris Vian imortalizou-o em "L'écume des Jours" e o inevitável Jean-Luc Godard ofereceu-nos um "à bout de soufle" ao som de uma portentosa banda sonora jazz da autoria de Martial Solal. Resumindo: também o Jazz é Cinema.

quarta-feira, abril 25

Porque hoje é dia 25 (um intermezzo)

Um dos elementos de um certo conjunto de pedaços de criação bloggeiros escreveu outrora que o José Afonso não era assim tão bom. Pois bem, lembrei-me de uma canção ("Coro dos caídos") de José Afonso que se aplica na perfeição às pseudo-abriladas que por lá se vão escrevendo (o episódio "Gato Fedorento" seria mais um belo exemplo disso mesmo):

"(...)Cantai cantai melancolias serenas
Como o trigo da moda nas verbenas
Cantai cantai guizos doidos dos sinos
Os vossos salmos de embalar meninos
Cantai bichos da treva e da opulência
A vossa vil e vã magnificência (...)"

Meninos, convém não esquecer que muitas das coisas que por aí vão sendo publicadas só o podem ser graças ao 25 do A. Mais importante, convém perder o "complexo de Édipo" que domina a Direita lusa: para se impor sente uma necessidade latente de criticar "símbolos" ou "marcos" conotados com a Esquerda. Para completar a receita, por vezes, também se acena com os fantasmas que a acusam de salazarismo, fascismo ou afins, recorrendo à velha técnica da vitimização. Trata-se, obviamente, de um problema mal resolvido. O que não deixa de ser curioso, dado que o dito blogue se afirma como de terceira geração. Ora, até pode ser, mas, até ver, padece de traumas vetustos. O que não deixa de ser curioso, já que, afinal de contas, o mais das vezes, esconde-se um discurso ultrapassado, devidamente disfarçado por alguns toques de modernidade.
Fica uma das máximas democráticas (na poesia de José Afonso, claro): Amigo/Maior que o pensamento/Por essa estrada amigo vem e, mais importante, Vejam bem/que não há só gaivotas em terra/quando um homem se põe a pensar.
Nunca esquecer: Cada Homem é o seu Comité Central.
[O cinema segue dentro de momentos]

Liebe ist kälter als der Tod

...ou de como a série B, encabeçada pela figura tutelar de Jean-Pierre Melville (bem como Raoul Walsh ou Howard Hawks, que faziam as delícias do Jovem Fassbinder), devidamente coadjuvada pelo apadrinhamento de Jean-Marie Straub e pela admiração por Jean-Luc Godard recebem, de braços abertos, o Universo de Rainer Werner Fassbinder.Aqui, mais do que a homenagem ao filme de gangsters e ao noir, prevalece um Mundo de sombras, povoado pelo vazio, pela solidão e pelo desespero que conduz à auto-destruição. Daí que, a final, a conclusão seja lógica: o amor é mais frio do que a morte.

segunda-feira, abril 23

Masques, ou do fenómeno da interposição

Já se sabe que nas relações com o Outro, consciente ou inconscientemente, colocamos máscaras, passamos (tentamos, por vezes...) pelo que não somos, seduzimos...a máscara é o adereço que se coloca entre nós e o Mundo, interpondo-se entre o nosso Ser e o Mundo do Ser. Em Masques, de Claude Chabrol, esse conceito é levado ao extremo: um apresentador de televisão cria uma imagem de bonomia e de afabilidade, de molde a esconder os crimes cometidos. Todavia. em Masques, Chabrol não se fica pela análise do fenómeno da interposição. Também critica, com antecedência (estamos em 1987!), a reality tv. Com efeito, só na mente perversa de Chabrol se pode ficcionar um programa onde os protagonistas são idosos que desempenham números de variedades, cantando modas antigas e dançando na plateia. Algo que, por mais estranho que pareça, não se afasta da realidade.

sábado, abril 21

Imperativo ético

Como por aqui se adere à máxima italiana traduttore, traditore, segue no original:
"(...) Considérer le cinéma (puisque c'est de cet art que nous parlons) comme un sujet de conversation et tellement comme tel, me semble inqualifiable. L'envisager uniquement comme un object d'interêt personnel (gagne-pain, occasion de se faire un nom et d'arriver, possibilité de vendre un scénario ou de se vendre), ou l'utiliser pour mener un combat idéologique, politique, réligieux, qui lui est étranger, bref, gonfler son moi ou une cause, fût-elle la plus noble, au détriment du cinéma, trahit une malhonnêteté intelectuelle foncière. L'art exige de la critique qu'elle se serve et non qu'elle s'en serve." (Jean Douchet)

in Jean Douchet, L'art d'aimer, Paris: Cahiers du Cinéma, 2003 (reimp.) pp. 22-23.

quinta-feira, abril 19

Herr Rainer Werner Fassbinder

Começou ontem no sítio do costume, a retrospectiva integral dedicada a Rainer Werner Fassbinder, aquele para quem o amor é mais frio do que a morte, que nos lembra que o medo come a alma e que é preciso ter cuidado com essa santa puta e que procura demarcar o direito do mais forte à liberdade. Tudo no pequeno caos da roleta chinesa, com passagem por Berlin Alexanderplatz.
E pronto, o jogo de palavras acaba aqui.

terça-feira, abril 17

Edward G. Robinson

"Não são apenas os olhos de Eward G. Robinson que são os mais melancólicos do Mundo, são aqueles lábios de borracha a desistirem na cara, são as rugas de defunto nas bochechas, são as mirabolantes pálpebras de lagarto, é a sua fragilidade tocantemente grave."
in António Lobo Antunes, Auto dos Danados
...ou um pequeno exemplo - em forma de mini-post - de como o Cinema, cada vez mais, vai ocupando um lugar de destaque nas outras Artes, ocupando o imaginário, projectando, (re)construindo imagens, confirmando assim a sua perenidade e o seu carácter insidioso na mente do seu espectador. O que também prova, entre outras coisas, que o Cinema não se esgota com o acender das luzes da sala escura. Tem vida própria. É independente e prolonga-se nos becos mais recônditos e íntimos da mente.

domingo, abril 15

Fellini, o Maestro Ilusionista

"All'inizio un film è un sospetto, un'ipotesi di racconto, ombre di idee, sentimenti sfumati. Eppure in quel primo impalpabile contatto il film sembra essere già tutto sé stesso, completo, vitale, purissimo. La tentazione di lasciarlo così, in questa dimensione immacolata è grandissima". (Federico Fellini)
Pensando em Fellini, somos invadidos, desde logo, por um adjectivo: "felliniano". Adjectivo que mais não é do que uma tentativa de aglutinar - por via de regra, de forma vaga - aspectos superficiais da sua obra: onirismo, estilo barroco, exibicionista, visonário, exagerado...
Em Fellini, tudo se centra numa qualquer aparição que procura sintetizar o espectáculo da realidade. É essa a pedra-de-toque do seu Mundo singular, sempre dotado de uma visão poética - o mais das vezes mágicas - conferindo uma aura de eternidade às suas personagens. Não envelhecem. São imaculadas. Etéreas. Sempre de molde a procurar expressar a concordância/simbiose com o meio que as envolve.
Mas é, também, um processo onde a sua obra é sempre algo in fieri. Que faz, que se vai fazendo, até ao momento em que vemos o todo. É um lento aglutinar de finas camadas, princípios abandonados e mundos paralelos. Uma sinfonia aparentemente repleta de notas falsas, mas que acaba por redundar em algo triunfal e completo. Que é per se.
Fellini, um ilusionista com a batuta de Maestro, mais do que um moralista, opta por ser um observados irónico do Mundo que capta. E esse Mundo mais não é do que a Vida. Com tudo o que tem de atroz e de belo. Em Fellini, o reduto do Cinema é a Vida. Sempre abraçada de modo sôfrego.

sexta-feira, abril 13

La belle noiseuse

Diz-se em La belle noiseuse, de Jacques Rivette, que a pintura verdadeira deve procurar o sangue. De certo modo, é isso que nos é oferecido ao longo de cerca de quatro horas. À medida que vemos Frenhoffer (Michel Piccoli) fazer traços nas telas, vemos também a procura dessa verdade, fazendo com que cada traço feito por um lápis, carvão ou pincel na tela ou no caderno de desenhos se assemelhe ao bisturi de um cirurgião pronto a rasgar um corpo. Porque é também esse outro dos pontos centrais de La belle noiseuse: a exploração da nudez que, a final, é um mero pretexto para alcançar algo mais nobre e abstracto: a verdade. Seja ela qual for.
Na exploração das relações entre modelo e criador, Rivette procura descrever a génese de uma obra-prima. Ao fazê-lo, neste belíssimo filme de câmara, acaba, também, por criar uma obra-prima, confirmando, assim, uma outra certeza: a sua obra é um dos mais belos e secretos tesouros escondidos do Cinema Francês.
Em Rivette, o tempo pára: é esculpido de molde a dar lugar a narrativas fluidas - lassas, mesmo - que, em bom rigor, são que menos conta. Em La belle noiseuse, o que importa é a procura da verdade, de mão dada com o ensaio sobre as relações/reflexões do Cinema sobre a Pintura e o próprio acto de criação.

quarta-feira, abril 11

Der Stand der Dinge

Der Stand der Dinge (O Estado das Coisas) é um título providencialmente luminoso. Não só porque, em jeito de balanço, capta e dá ao espectador a essência daquilo que verá, mas também porque fornece indícios do leit motiv que guia Wim Wenders: expor muitos dos problemas com que o realizador de Cinema tem de lidar.
Der Stand der Dinge é precisamente isso. Uma reflexão de cariz autobiográfico sobre a criação do Cinema, inspirada - ao que parece - numa máxima de Sam Fuller: “Life is in colour, but black and white is more realistic”. À guisa de macguffin (e como forma de atiçar a curiosidade): o filme que está na base de Der Stand der Dinge é rodado em Portugal e Artur Semedo marca presença. Tal como o próprio Sam Fuller.

segunda-feira, abril 9

L'armée des ombres

"mauvais souvenirs, soyez pourtant les bienvenus...vous-êtes ma jeunesse lointaine"
Em L'armée des ombres Jean-Pierre Melville assina um filme aparentemente atípico. Saindo do registo que o celebrizou, a (des)construção do noir, Melville aventura-se num projecto altamente pessoal, cujo cerne é um conjunto de episódios na vida de alguns membros da Resistência Francesa durante a II Guerra Mundial.
Trata-se de uma atipicidade aparente: toda a abstracção estilística, aliada aos códigos típicos do noir, maxime a solidariedade, a lealdade e o respeito entre os vários contendores marcam presença, tal como a própria mão de Melville, que nos transporta para um Universo vagamente irreal, onde os resistentes se assemelham a espectros, cadáveres adiados que fazem adivinhar o fim trágico que se espera e se abaterá sobre todos. Se a Selva urbana de Le Samouraï era o cenário trágico por excelência, em L'armée des ombres a tragédia surge de um facto histórico concreto que, a final, é apenas uma falsa pista no Universo Melvilleano. Estamos perante um Mundo hermético, dominado pelos espaços fechados e onde os gestos do quotidiano imperam. Mais: o que vemos redunda na depuração desses mesmos actos/espaços.
Tal como Le Samouraï ou Le Cercle Rouge, este é um Mundo de sombras e, sobretudo, de solidão. Desta feita, com um plus: Melville conta episódios que conhece por dentro.

quinta-feira, abril 5

Santa Páscoa!

Eis os votos da gerência que, durante três dias, vai esquecer momentaneamente a Banca, a Bolsa e os Títulos de Crédito (isto para chamar à colação revista jurídica italiana homónima, bem como as actividades profissionais recentes). O corpo e o espírito pedem-no. O Cinema, graças a alguns revisionamentos, vai ser a terapêutica providencial e mais do que adequada.

quarta-feira, abril 4

Da incapacidade de comunicar


Em L'eclisse, de Michelangelo Antonioni, tal como em boa parte da sua cinematografia, a arquitectura joga um papel decisivo. É omnipresente, impõe-se, condiciona o comportamento de todos aqueles que vamos momentaneamente conhecendo. Mais do que um fim, a projecção física dos edifícios é um meio para demonstrar a alienação e a solidão do Homem nas sociedades modernas. Não há lugar para as relações a dois, nem sequer para emoções verdadeiras. Tudo se resume a uma sucessão de gestos monótonos, fruto da repetição quotidiana, demonstrando assim o vazio interior de todos.
Nas palavras de Mayet Giaume, Michelangelo Antonioni, Le fil intérieur, Editions Yellow Now, 1990, p. 62, "Si L'Avventura est l'histoire d'une espérance endeuillé, La notte celle d'une espérance ravagée, L'Eclisse fonctionne comme une rappel de celles-là, pour tenter de les résoudre." A solução, essa, é a dos fantasmagóricos minutos finais: a repetição de gestos quotidianos, mas sem a presença do casal Piero e Vittoria.

terça-feira, abril 3

Os filmes da minha vida

Atendendo a um gentil pedido do Harry Madox, elaborei uma lista dos filmes da minha vida. É favor notar que é uma lista emocional e não racional. Alguns só constam dela (Zorba the Greek à cabeça) porque - por qualquer motivo - me tocaram de forma indelével.

segunda-feira, abril 2

Telurismo (emocional)

Um jovem acariciando a face impressa do seu irmão no cartaz. Rocco, o jovem pugilista que, para salvar o seu irmão Simone, sacrifica o seu futuro, assinando um contrato que o transforma num escravo do seu agente. Rocco, o jovem que nunca se adaptou a Milão, às luzes, às montras opulentas e aos néons sensuais, preferindo sempre o cheiro da vegetação de Lucania, a terra natal e que sempre curou de ensinar ao seu irmão mais novo as virtudes de não esquecer as suas origens.
Em Rocco e i suoi fratelli, de Luchino Visconti, temos uma síntese de todos esses sentimentos no segmento final (quando pouco antes nos foi oferecido um momento operático absolutamente cortante). Luca, que se vê impedido de conviver com o irmão, tem de se resignar a acariciar as résteas da sua presença: os cartazes omnipresentes nas ruas. A esse vazio físico, em contraposição à pujança da ligação emocional, segue-se também, a projecção no vazio das ruas de Milão, um espaço impessoal e semi-desértico. Fica uma sinestesia perfeita, a projecção dos sentimentos para o espaço e, simultaneamente, a metáfora da incapacidade de adaptação à selva urbana. Bello paese mio...

domingo, abril 1

Cenas da vida conjugal (teorização?)

...segundo a direcção de Jean-Luc Godard e de acordo com as palavras de Cyrus Bassiak.