quarta-feira, junho 21

Mise en Abyme


O que leva um realizador a colocar um filme dentro de um filme?
No caso de Truffaut, foi a concretização de um velho projecto: fazer um filme sobre o Cinema. Do pensamento para a concretização foi um passo. E assim surgiu La nuit américaine, o filme sobre os esplendores e misérias do processo de criação do Cinema e homenagem maior de Truffaut à sua profissão, ao Cinema e, mais importante, ao seu próximo - A vida era o écran.
Exemplo paradigmático - quiçá o mais perfeito - da utilização do mise en abyme em Cinema, La nuit américaine tem a virtualidade de nos mostrar um filme em três dimensões distintas: (i) a sua rodagem, (ii) a projecção das cenas rodadas numa sala onde estão os seus intérpretes e (iii) a sua inserção dentro do filme propriamente dito: Je vous présente Pamela o filme dentro de La nuit américaine.
Ora, se, per se, esta colocação no abismo, projecção de uma realidade noutra, através de uma teia imbrincada de pontos de contacto, merece todos os elogios, convém salientar que Truffaut não descurou de salientar o teatro de ilusões que o Cinema não deixa de ser, conforme o título indicia: a noite americana, o processo que permite, através da utilização de um filtro, filmar uma cena nocturna em pleno dia - o Cinema como ilusão.
Cinema é ilusão. Permite abstrair da realidade, acreditar num conto de fadas. Todavia, La nuit américaine mostra de forma crua o quão errados estamos: todos os intervenientes na rodagem de um filme têm problemas pessoais. Amam, choram, sofrem,... mas, estranhamente, durante a rodagem do filme este sobrepõe-se: o cinema impera conforme nos diz em off Truffaut. E será essa comunhão de fim - a feitura do filme - a originar uma profunda solidariedade entre todos os intervenientes - o Cinema como obsessão.
La nuit américaine anda a paredes meias entre a Verdade e a Ilusão, entre o documentário e a ficção, tal como o Cinema que retrata e desmistifica, o mesmo Cinema que admiramos e nos acompanha. E dá vontade de citar Eça: Sob o manto diáfano da fantasia, a nudez forte da Verdade.
No caso de La nuit américaine, ficará sempre uma dúvida: onde começa a Verdade e nasce a ilusão? Será que o que vemos é puro, isto é, sem filtros? Nunca o será, dado que entre a realidade e o que é dado a ver ao espectador intermediará o olhar do realizador. Mas, mais do que procurar problematizar o que vimos, talvez seja mais curial definir La nuit américaine como "a Pequena (grande) Enciclopédia do Cinema".

2 Comments:

Blogger manu said...

um texto sobre uma metáfora, de meter um sorriso nos lábios de satanás.
não keria ser chato mas continuamos a discordar em: "Cinema é ilusão. Permite abstrair da realidade", ilusão de kê? da vida? a vida é realidade?
abstrair ou mostrar outra possibilidade?
:)

3:07 da manhã  
Blogger Hugo said...

Qual chato qual quê! Quanto à ilusão que a vida pode ser, só me vem à cabeça a tagline do Blow-up:

"Sometimes reality is the strangest fantasy of them all"

12:05 da tarde  

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