quinta-feira, novembro 30

A troca de argumentos, o discurso fundamentado e o gosto

Eis uma pequena prova de que o Cinema é construído com base no que foi feito previamente. Desta feita, temos Godard e um excerto de Une femme est une femme. E isto por motivos óbvios: Godard gosta de citações. Mas, para além de referências directas, temos outras não detectáveis tão facilmente, como é o caso da homenagem ao burlesco. Mas será que alguém duvida que, a dada altura, em Dans Paris não vimos também uma homenagem similar ao Cinema Mudo? Acaso as belas passeatas de Louis Garrel não trazem reminiscências de alguns planos tipicamente Nouvelle Vague? (de repente, vem-me à memória À bout de soufle). Provavelmente, só duvidará quem desconhece. Leia-se não viu...

E com isto entramos noutro ponto essencial: um filme idealmente - tal como um livro - tem vários níveis de leitura. Id est, é susceptível de ser encarado por vários prismas. Prismas esses que, obviamente, variarão consoante os conhecimentos daquele que se propõe analisá-lo. No nível mais básico temos o enredo - e algo que começa a ser outro hábito: analisar as performances dos actores. Parece que um filme começa e acaba aí -, a que se segue o encadeamento dos planos, bem como raccords ou movimentos de câmara, e, claro, detectar influências de terceiros. Obviamente, quanto mais se viu, mais fácil fica. Porque o olhar já foi sendo educado ou, se preferirem, foi sendo exercitado.

À guisa de Post scriptum: o ora escriba não viu assim tantos filmes como por vezes se pode pensar. Por esse motivo, tem o cuidado de não pecar pelo tom categórico e absoluto, pelo que procura (tentar) fundamentar o que escreve e partilha com terceiros. E, precisamente por não querer as vestes de crítico, não se arroga o direito de dar veredictos. Assim, mais do que sentenciar, procura trocar impressões, seguindo os ensinamentos da Teoria da Argumentação (veja-se Chaïm Perelman, por exemplo). Para esse efeito, tenta arquitectar um discurso argumentativamente coerente. Porque um discurso tem de visar persuadir um auditório. E, para tal, deve ser defensável, pelo que tem de ter como principal atributo a coerência.

E, claro, depois há sempre a questão do gosto. Há quem prefira Godard a Truffaut, et cetera. O que convém mesmo é explicar porquê. Se tal acontecer, em vez de uma sucessão de afirmações estéreis, temos argumentos. E os argumentos, obviamente, podem ser degladiados. E, a final, é precisamente isso que conta. Porque da discussão nasce a razão.

quarta-feira, novembro 29

Cinefilia

"(...) Ainsi, la cinéphilie ne se construit pas contre le spectacle, ni contre les ciné-romans, ou la "presse à vedettes", mais comme une sorte de prolongement intellectualisé de leur action. C'est sa force. Elle invente une véritable culture. Elle ne se tient pas le même discours que ces magazines grand public sur le cinéma américain, revendique un jugement de goût, mais ce choix s'exerce sur un identique corpus de films."
Antoine de Baecque, La cinéphilie - Invention d'un regard, histoire d'une culture (1944-1968), Paris: Fayard, 2003, p. 19
Foi assim que nasceu a cinefilia e, no essencial, não andará muito longe disto nos tempos que correm.

terça-feira, novembro 28

Texto de Guerrilha

A/C de Gonn1000
Há uma tendência no Universo da blogosfera dedicada ao Cinema que consiste em acreditar piamente que basta ver um ou dois filmes e já se podem mandar uns quantos bitates sobre Cinema. Há uma certa tendência na blogosfera dedicada ao Cinema que consiste em fazer textos que mais não são do que puro ar. Vazios. Vãos. Inglórios. Inúteis. Pior ainda, há uma certa tendência no Universo da blogosfera dedicada ao Cinema que consiste em exibir alegremente a ignorância sobre a História da Sétima Arte. Ao ponto de afirmar, em jeito de gabarolice, que Saraband é um dos piores filmes de 2005 ou, pasme-se!, que nunca viu um filme de Visconti. O motivo: porque só o Cinema contemporâneo interessa.
Pois bem, é chegada a hora de fazer uma breve arenga: o Cinema, à imagem da literatura, tem várias correntes. Os autores, tal como um escritor, são mais ou menos influenciados por dado cineasta. Recusar ver isto é ser teimoso. Pior. É teimar na manutenção da ignorância. Com efeito, é incompreensível a rejeição constante do Cinema dito clássico. Dir-se-ia que, talvez por estar fora de moda, ver filmes "antigos" é um passatempo de indivíduos anacrónicos, desligados do seu tempo. Nada disso. Ver esses filmes é mergulhar na História. É educar o olhar, detectando a influência do muito que se faz hoje. Dois exemplos: vendo Melville percebe-se a influência sofrida por John Woo, do mesmo modo que se detecta em Tarantino uma homenagem profunda a Sergio Leone. Mas é muito mais para além disso. Os filmes "antigos", o mais das vezes, são dotados de uma modernidade ímpar. Alguém negará o carácter inovador de um Glauber Rocha, de um Jean-Luc Godard? Claro que não. Só o faz quem desconhece.
Conforme afirma Bernardo Bertolucci, Aprende-se Cinema vendo. Com efeito, só vendo com olhos de ver poderemos detectar aspectos tão simples como este: o pai de Philippe Garrel costuma fazer parte do elenco dos filmes de Garrel. Mas, claro, saíram muitos posts vilipendiando Les amants réguliers, bradando que Garrel contratou toda a família para entrar no filme. Obviamente, ninguém tem interesse em saber quem é Garrel. Aliás, isso talvez nem seja muito importante. Basta mostrar desconhecimento, manifestando alegremente essa ignorância. Só isso importa. Resumindo e concluindo: a blogosfera cinéfila, por via de regra, é similar a um fenómeno literário. Ao lado da literatura séria, há a literatura light. A que é consumida pela maioria*. Pronta a servir e de baixa qualidade. Mutatis mutandis, temos blogues light e blogues que tentam ser algo mais. Pena é que os light dominem. Bem vistas as coisas, nada que cause espanto: vivemos na época dos generalistas especializados e a blogosfera não é excepção.
Pode-se gostar ou não de um filme. Haverá quem goste de Juventude em Marcha de Pedro Costa e quem o odeie. Mas, pura e simplesmente, não é tolerável ver críticas lançadas contra os planos excessivamente longos de Transe de Teresa Villaverde - conhecer Tarkovsky e os seus textos sobre Tempo ajudava - ou ver o terçar de armas contra Pedro Costa e o seu Cinema. Regra geral, isso acontece porque o léxico de alguns "críticos" não compreende a expressão Cinema-Verdade. Foram educados no e pelo Blockbuster e recusam-se ousar ver algo diferente. O que se critica não é o facto de gostarem do Blockbuster - gostos são gostos - mas sim de recusarem ver algo de forma séria e, acto contínuo, lançarem críticas fáceis e superficiais. É, no mínimo, preocupante ver alguém que se apelida cinéfilo virar costas à História e não lhe detectar referências pré-1980. Tal como é preocupante ver o desconhecimento de figuras como Béla Tarr ou Otar Iosseliani. Eis os opinion makers blogosféricos, reflexos perfeitos do País que temos.
E sim, este é um texto de guerrilha, inspirado na figura tutelar de Luiz Pacheco e em livro com título homónimo. Visa provocar. Por isso até gosto de achar que é neo-abjeccionista à la Pacheco, apesar de ser impossível igualar o Mestre.
* Aliás, sublinhe-se que esta afirmação é por demais evidente. A título de exemplo, refira-se Rodrigo Guedes de Carvalho que, apresentando Cemitério de Pianos, o novo livro de José Luís Peixoto, lamentava o imperialismo da literatura light.

segunda-feira, novembro 27

Umberto D


Umberto D é um filme absolutamente perturbador e visceral. Este é um dos momento mais arrepiantes: Umberto D vencendo todos os seus preconceitos, decide pedir esmola. A genialidade de Vittorio de Sica está, sobretudo, na facilidade com que pega numa história banal para oferecer um retrato duro sobre a insensibilidade perante os dramas de terceiros. Esta é a viagem pelo inferno pessoal de Umberto D, um funcionário reformado que tem de batalhar diariamente por coisas tão triviais como a alimentação e a habitação. De Sica oferece-nos um filme com uma intensidade ímpar e ensina-nos o verdadeiro significado da expressão abaixo de cão. Porque é isso que vemos em Umberto D: um homem isolado de tudo e todos que apenas tem como companhia o seu cão Flick e, por isso mesmo, faz tudo para lhe arranjar uma habitação condigna após decidir por termo à vida. A suprema ironia reside no facto de ser Flick o único a nutrir carinho por Umberto D. Ao ponto de o salvar da Morte.

domingo, novembro 26

The Misfits


It's... It's like ropin' a dream now. Just gotta find another way to be alive, that's all. If there is one any more.

Dos inúmeros diálogos cortantes de The Misfits, talvez seja este o que melhor define este western dos tempos modernos de John Huston. Num Mundo onde o passado não tem lugar, onde não há espaço para a tradição, sobra o conformismo e a inerente atitude passiva, a par de uma tristeza e apatia constantes. Sobra apenas uma tentativa desesperada - e votada ao insucesso - de procurar a felicidade. A felicidade que teima em fugir, diluindo-se na imensidão espacial de um deserto onde estes inadaptados darão caça aos outros: os cavalos. Porque nenhum deles tem um lar, porque quer o trio quer os cavalos vivem livres - acaso não será uma vã ilusão? - correndo sem destino ao sabor do vento. São estes os inadaptados filmados por Huston, que soube captar a tensão existente entre um Mundo que se fazia anunciar e um passado que já não era. Porque o Homem é um produto do Tempo. E estes inadaptados - maxime Gay Lagland (um soberbo Clark Gable) - não fogem à regra. De certa forma, até se podia recuperar uma das máximas de Nicholas Ray: We can't go home again...
Note-se também que este é, de certa forma, o filme que marca o fim do studio system. Construído com total independência perante a indústria, The Misfits marca o adeus de dois dos seus emblemas: Gable e Monroe. Tal como o trio dominado pela amargura que domina o filme, também Hollywood começava a não ter lugar para estas estrelas. Também elas inadaptadas. O título The Misfits acaba, assim, por ter a virtualidade de ser o canto do cisne de uma época e de cristalizar na perfeição os sinais de um tempo.

sexta-feira, novembro 24

L'argent


Em L'Argent, obra derradeira de Robert Bresson, vemos o evoluir de uma reacção em cadeia, que começa quando dois jovens colocam em circulação uma nota falsa, que irá circulando até um inocente ser acusado de falsificação. É um filme onde uma mera nota está na base do escalar de crimes: a falsificação dos jovens liceais, o perjúrio do empregado de loja e os homícidios em massa cometidos pelo inocente. O dinheiro, sempre em circulação, é um vaso de comunicação que permite vislumbrar um Mundo maquinal e amoral, onde o bem do Eu é obtido à custa dos outros.
Mas é, também, o retrato da perda da Alma. O dinheiro que, inicialmente, servia para comprar objectos satisfazendo necessidades básicas, está na base de um Mundo que gira - tal como a nota - insensível ao que está à sua volta. Talvez por isso as interpretações sejam maquinais. Porque mais do que corpos que são e actuam, estas personagens são - e permitam-me adaptar o intróito de Engrenagem de Soeiro Pereira Gomes - rodas de uma engrenagem em movimento. Neste caso, é uma engrenagem dominada pelo Mal em estado puro. Porque em L'argent o dinheiro corrompe e é a causa remota da perdição. A partir da primeira perdição seguem-se as reacções em cadeia.

quinta-feira, novembro 23

Teorema

O Teorema de Pasolini é, provavelmente, insolúvel. O seu centro gravitacional é um misterioso Visitante sem nome que acabará por influenciar todos os habitantes de uma casa da alta burguesia milanesa, contribuindo para a sua lenta dissolução. Com efeito, este estranho visitante, símbolo do erotismo e, simultaneamente, ente envolto numa aura divina, mudará radicalmente a vida de todos através do contacto sexual. A mulher do industrial transformar-se-á numa ninfomaníaca; a filha será internada numa clínica; o filho terá de reconhecer a homossexualidade e passará a ser um artista; a criada beata transforma-se numa santa que produz milagres. O paterfamilias, rico industrial, enlouquece e doa a fábrica aos operários.
Pasolini desenha a lenta degradação de um Mundo. Um Mundo que, tal como o terreno que vamos vislumbrando ao longo do filme, se vai erodindo. É esse o deserto que o industrial Paolo irá pisar e é, também, o símbolo da aridez que impera na burguesia. Teorema é, pois, o filme dos símbolos, claramente identificados pelos espaços exíguos em que as personagens se movimentam: a escola, a fábrica e a cidade. Mais do que um espaço definido, Teorema oferece um espaço sugerido, fragmentado. Tal como a sua narrativa que, apesar de aparentemente transparente e directa, esconde fragmentos que apenas são ligados por um denominador comum: o Visitante.
O Visitante que, inicialmente ocupa um espaço físico e afectivo, dominando, seduzindo e conquistando, para fazer vingar o vazio após a sua saída. O Visitante funciona como catalizador, será a prova da ausência de identidade de todos aqueles que giram à sua volta. Tudo se resume a sublinhar o vazio, quer afectivo, quer moral, quer ideológico. Teorema ilustra um Mundo em crise, onde não há lugar para a comunicação. Apenas se contenta, tal como o livro homónimo de Pasolini, a oferecer dados a partir dos quais será enunciado este Teorema imperscrutável. As personagens, sem excepção, aparecem ilustradas das marcas típicas da sua classe. Com efeito, este é um filme inspirado pela visão marxista da História. Apesar disso, Pasolini, o poeta, prevalece, temperando essa visão inexorável através do recurso ao simbolismo e à alegoria.
Exceptuando a morte agónica da burguesia e do capitalismo, plasmados na loucura de Paolo e cristalizados no deserto para o qual caminhará nu, fica muito por revelar. Críptico, estimulante e problematizante, Teorema continua, ainda hoje, a obrigar-nos a sondar mistérios indecifráveis. Como certeza fica apenas uma visão de um Humanidade degradada. Pasolini demonstrou-o, pondo a nu as fragilidades da forma organizacional central de qualquer sociedade: a família. Desse modo, mais do que atacar uma classe, questionou toda uma ordem social.

quarta-feira, novembro 22

Juventude em Marcha


"Nha cretcheu, meu amor, o nosso encontro vai tornar a nossa vida mais bonita por mais trinta anos. Pela minha parte, volto mais novo e cheio de força. Eu gostava de te oferecer 100 000 cigarros, uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, um automóvel, uma casinha de lava que tu tanto querias, um ramalhete de flores de quatro tostõe. Mas antes de todas as coisas bebe uma garrafa de vinho do bom, e pensa em mim. Aqui o trabalho nunca pára. Agora somos mais de cem. Anteontem, no meu aniversário foi altura de um longo de pensamento para ti. A carta que te levaram chegou bem? Não tive resposta tua. Fico à espera. Todos os dias, todos os minutos, todos os dias, aprendo umas palavras novas, bonitas, só para nós dois assim à nossa medida, como um pijama de seda fina. Não queres? Só te posso chegar uma carta por mês. Ainda sempre nada da tua mão. Fica para a próxima. Às vezes tenho medo de construir estas paredes eu com a picareta e o cimento e tu, com o teu silêncio. Uma vala tão funda que te empurra para um longo esquecimento. Até dói cá dentro de ver estas coisas más que não queria ver. O teu cabelo tão lindo cai-me das mãos como erva seca.
Às vezes perco as forças e julgo que vou esquecer-me."
Eis a carta queVentura vai recitando, construindo e desconstruindo ao longo de Juventude em Marcha. A carta que está sempre em construção, em contraste manifesto com o bairro que vai sendo demolido e com o Mundo de Ventura que, gradualmente, vai sendo transformado em estilhaços. Carta em construção é certo. Apesar desse aspecto fragmentário, Ventura dá-nos uma soberba lição de humanidade e amor, ensinando-nos o verdadeiro significado de Nha cretcheu. Aquele que não vem nos dicionários.
Juventude em Marcha é o melhor filme do ano e dificilmente estreará filme que o supere. Eis uma certeza firme. Estreia amanhã.

terça-feira, novembro 21

Requiescat in pace

Robert Altman, 1925-2006

Coincidências: Godard e Bergman

Fotograma de Le Mépris
À guisa de raccord (falhado) com os bergmanismos do Miguel:
Se é certo que para Ingmar Bergman os filmes de Jean-Luc Godard eram pretensiosos e feitos com o fito de agradar a crítica, há uma pequena curiosidade que deve ser sublinhada: em Persona, Bergman, desbravando os caminhos da metalinguagem levou-nos ao interior de uma câmara. É, pois, uma viagem ao cerne do Cinema, ao seu interior. Ao ponto de a sua brilhante sequência inicial filmar Bergman em acção...ora, é precisamente esse o caminho que Jean-Luc Godard já houvera percorrido anos antes em Le mépris, filme que inicia com a visualização de um travelling a ser filmado. Até ao momento em que vemos o lendário Raoul Coutard focar o espectador, tornando-o personagem principal do filme e abrindo as portas da metáfora.
Se Persona é o filme da metalinguagem, também Le mépris o é. Com uma diferença: o filme de Godard é um travelling - e é nestes momentos que a máxima godardiana o travelling é uma questão de moral parece fazer todo o sentido - que reflecte sobre o Cinema, sobre os seus elementos e sobre a sua influência nas pessoas. Dito de outro modo, enquanto Persona procura afastar essa reflexão com uma elipse suprema, Le mépris não o faz, assumindo sem pejo a máxima de Bazin: Le cinéma substitue à notre regard un monde qui s'accorde à nos désirs. Ambas as obras são duas faces da mesma moeda: o carácter absoluto do Cinema. Porque Cinema é vida.

segunda-feira, novembro 20

A Morte de Charlot

É em Modern Times que ouvimos pela primeira vez a voz de Charlot. É, também, nesse momento que ocorre a sua morte. Com efeito, já ao longo do filme tíveramos a oportunidade de verificar que, apesar de este trabalhador partilhar muitos dos trejeitos de Charlot, já não havia lugar para o vagabundo que vivia num Mundo próprio, tentando arrastar todos os que se aproximam dele para essa esfera íntima. Já não era, pois, Charlot, mas sim o operário que se procurava integrar no sistema produtivo, denunciando todos os seus defeitos. O momento em que, finalmente, lhe ouvimos a voz acaba apenas por funcionar como epitáfio. Um epitáfio sem sentido, já que a canção parece não ter qualquer nexo. Apesar disso, este é um momento inesquecível. Porque ao lado do humor físico de Chaplin acaba por aliar-se a sua voz.

domingo, novembro 19

Aviso à navegação

A propósito de algumas reacções - mais de conhecidos do que amigos - às minhas declarações à Y da passada Sexta-feira:
Primo: Teria sido muito mais fácil para mim fazer um blogue que falasse de Direito. Se o tivesse feito, provavelmente teria dado uma prova de que sou uma pessoa terrivelmente mais aborrecida do que aquilo que realmente sou. Para falar de Direito, já tenho a minha profissão e, sobretudo, o Mestrado que estou a fazer. Teria sido muito mais fácil se tivesse feito posts vertendo os inúmeros artigos de diplomas legais. Se o tivesse feito, isso seria sinónimo de preguiça - afinal, copiar preceitos legais é facílimo - e de pedantismo. Pior, seria uma total incapacidade de apartar as águas entre profissão e gostos pessoais.
Secundo: Quanto ao Cinema - e chamem-me anacrónico se quiserem - gosto mesmo da Nouvelle Vague e de cineastas ditos clássicos, comos os Mestres americanos ou os cineastas da Primeira e Segunda Vagas Italianas. Porquê? Porque o Cinema dos anos 60 (e não só, obviamente) respira mais modernidade do que muito do que se faz hoje.Talvez porque, à época, se trabalhava em reacção a outrem, existindo assim uma virtuosa reacção em cadeia. Com exclentes frutos, aliás.
Tertio: E se criticam por falar de La maman et la putain, o mais das vezes é porque nunca viram o filme ou, o que não é melhor, porque acham que o título é impróprio. Nunca gostei de conservadorismo bacoco nem de manisfestações exacerbadas de ignorância. Jean Eustache abordou o meio comunicacional por excelência: a palavra. Desde o palavrão até ao discurso literário. Mas também aborda o vazio das relações. O mesmo que vai imperando nos dias de hoje. Daí a sua actualidade, tal como a da trilogia de Antonioni, que também aborda noutro prisma esse vazio. Em Antonioni impera a alienação. Tal como hoje. Convém não esquecer que esta é a época em que já não há lugar para o outro. Apenas para o Eu. E isso é triste.
Finalmente, este blogue, tal como o autor, procura não ser reaccionário. Apenas visa trocar ideias. Porque é dessa troca que nasce a razão. Ah! Por pouco não me esquecia: o Cinema, para mim, é paixão.
E pronto, desculpem lá qualquer coisinha. O Cinema segue dentro de algumas horas.

sexta-feira, novembro 17

Os aplausos...

Pedro Costa
...são mais do que merecidos. Porque Juventude em Marcha é um filme ímpar. Directo no estilo. Espartano no mise-en-scène. Porque a obsessão por filmar a realidade tal como ela é cede à necessidade de ser temperada por um lírico Ventura, cuja vida é tudo menos venturosa. Porque (também) é Cinema-Verdade. Porque mostra que para se fazer grande Cinema não são precisos grandes meios. Porque mesmo um filme deliciosamente artesanal na confecção - como este Juventude em Marcha - é uma pequena grande lição de como fazer Cinema. Porque é capaz de apreender os dramas dos votados ao esquecimento. Porque nos faz lembrar que a Vida não é um mar de sonhos. Porque é um filme português. Em suma, eis Pedro Costa. E em grande forma com o magnífico Juventude em Marcha, um filme a ver e rever.

quinta-feira, novembro 16

Costa em Marcha


É hoje que - finalmente! - se pode aquilatar dos méritos de Juventude em Marcha, o novo filme de Pedro Costa. Às 21.30 na Cinemateca. As expectativas estão altas. A ver vamos. Será que se repete a ovação?

quarta-feira, novembro 15

Dancemos no Mundo

..só porque há dias em que apetece mandar tudo às malvas e dar asas à liberdade. Zorba, the Greek de Michael Cacoyannis, filme inspirado no romance Alexis Zorbas de Nikos Kazantzakis, onde podemos ver uma das mais fiéis projecções do Super-Homem de Nietzsche: Zorba, o grego rufião que faz do carpe diem regra de ouro.

segunda-feira, novembro 13

Ozu, a beleza do pormenor

A propósito de Chikamatsu monogatari (Mizoguchi) e Higanbana (Ozu) que vi ontem na companhia do mui ilustre Nuno:
Yasujiro Ozu foi um dos últimos mestres japoneses a ser conhecido no ocidente. Contrariamente a realizadores como Kurosawa e Mizoguchi, os filmes de Ozu não têm nada de exótico ou espectacular, dado que em Ozu não há lugar para samurais ou geishas e, talvez por esse motivo, não despertaram desde logo a curiosidade do espectador.
Apesar de Mizoguchi e Kurosawa serem realizadores de méritos incontestáveis – fico sempre alterado quando me lembro do suicídio elíptico de Sansho Dayu, momento que me lembra a desconcertante frase inicial de Camus n’O Mito de Sísifo: Apenas existe um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio – confesso que Ozu tem a minnha preferência. Quer pelo seu estilo absolutamente abstracto e depurado, mas, também, pela poesia que irradia do mise-en-scène rigoroso e espartano. Filmes como Chichi Ariki ou Soshun ao abordar muitos dos aspectos que a vida moderna impõe, como é o caso das rotinas e dos automatismos, marcam. Marcam também porque em Ozu a família - elemento que tende a desagregar-se à medida que a vida vai ficando mais vertiginosa - tem um lugar central, acabando por assumir o protagonismo.
Em Ozu a perfeição formal esconde uma complexidade desconcertante. Trata-se do cinema dos paralelismos, das subtilezas, das elipses, do humor fino e, sobretudo, da atenção ao pormenor. É o cinema que versa sobre o quotidiano e sobre a importância das reuniões entre familiares e amigos. O que equivale a dizer que é um cinema com pólos aglutinadores, tentando combater a desagregação que o progresso dita. Mas é, outrossim, um cinema dotado da capacidade de usar esse mesmo progresso, transformando-o em elemento dramático de grande intensidade, como é o caso dos comboios.
Yasujiro Ozu, o mesmo que Wenders considerou um anjo – a par de Truffaut e Tarkovsky – em Der Himmel über Berlin é, pois, um cineasta a ser conhecido. Porque o seu Cinema é belo e porque, apesar da sua abstracção, as situações quotidianas que aborda são universais, obrigando à reflexão sobre a vida tal como ela é.

domingo, novembro 12

Evolução segundo Melville

Esquerda:Jean-Paul Belmondo em Le Doulos Direita:Alain Delon em Le Samouraï
Wasted Blues, muito obrigado por te teres juntado à malta em Le doulos.

sexta-feira, novembro 10

The Departed*

Leonardo DiCaprio e Jack Nicholson em The departed
Com The departed, Martin Scorsese regressa a um território em que se move com total e absoluta naturalidade: o do sub-mundo da criminalidade. De qualquer modo, Scorsese, apesar de revisitar um Mundo que conhece bem, acaba por introduzir variações interessantes. Em vez de lidarmos com o mundo italo-americano, desta feita estamos em Boston, principal berço da comunidade irlandesa dos EUA.
Contrariamente ao que se verificou nos passos prévios da sua obra, The Departed não partilha do tom pomposo e feito à medida do Óscar que escapou às obras que o precederam. Efectivamente, apesar dos virtuosos movimentos de câmara que há muito são imagem de marca do Mestre Nova Iorquino, The Departed é um filme directo. Quer pela forma como é efectuado o enquadramento, quer pela violência que vai crescendo à medida que o tempo vai passando. Neste particular, sobressai o espantoso trabalho de edição de Thelma Schoonmaker (mais um!). Com efeito, teremos inúmeras sucessões de jump cuts, bem como uma mistura prodigiosa do som, que tão depressa desaparece abruptamente como ressurge em altos decibéis, contribuindo para criar uma sensação disforme e de estranheza. A mesma sensação de estranheza que domina Bill Costigan (Di Caprio), o polícia infiltrado que, a alturas tantas, é dominado pela desorientação e pela sensação de deslocamento provocado pela constante procura de identidade.
Num filme marcado por um bom ritmo (por vezes alucinante), os constante volta-faces são de eficiência manifesta, dado que trazem a incerteza. Incerteza que culmina numa sequência de pura apologia da vindicta privada, mascarada pelos habituais códigos do género: solidariedade e amizade entre aliados e respeito perante os inimigos. Aspectos que desde cedo marcaram o film noir e acabarão por ser importados para géneros afins. Este é, pois, um filme sombrio. E, se dúvidas houvesse, a apresentação de Jack Costello (jack Nicholson) trataria de as desfazer. De perfil, envolto na penumbra, sendo acompanhado por um belo travelling, apenas interrompido pela aparição de Collin Sullivan (Mat Damon) que, a final, não será a personagem angelical que esta primeira aparição anunciava.
Mais importante, se, inicialmente, é anunciado o clássico número polícia bom-polícia mau, acabaremos por verificar que, em bom rigor, não há qualquer maniqueísmo excessivo nesta obra, uma vez que em The Departed não há inocentes. Todos mentem, todos são movidos pelo instinto de vingança. Apenas os lados da barricada são diferentes e isso, per se, não justifica qualquer maniqueísmo.
Sendo assim, cabe perguntar o porquê de um ligeiro sabor a deceoção após mais de duas horas e meia de um belo exercício cinematográfico? Talvez porque a Scorsese se exige mais do que um remake. Mesmo quando esse remake é capaz de fazer esquecer que houve um filme inspirador. Mas há uma certeza: Scorsese está em forma. E recomenda-se.
* "Entre Inimigos" é mais um título que figurará nos anais do disparate, naquela que já é uma velha tradição lusitana.

quinta-feira, novembro 9

Prima della Rivoluzione


Mais do quem um filme sobre a educação sentimental ou um filme que representa o exorcismo do passado do seu autor, Prima della Rivoluzione é uma obra reveladora da maturidade e da criatividade de um cineasta de 24 anos: Bernardo Bertolucci. Com efeito, se em La comare secca, filme construído sabiamente em subtis camadas que reflectiam os diferentes pontos de vista dos vários personagens, confluindo assim para deslindar o mistério da morte de uma prostituta, Bertolucci herdara um projecto do seu amigo Pier Paolo Pasolini, em Prima della Rivoluzione topamos com uma da obra da exclusiva pertença de Bertolucci.
Ambas as obras são marcadas pela cinefilia. Se em La comare secca esta é menos óbvia, pressentido-se nos flashbacks ou na confluência de vários pontos de vista para construir a narrativa (num contraste explícito com o estilo directo de Pasolini), em Prima della Rivoluzione ela é manifesta e afirmada de modo expresso. Com efeito, veremos um crítico reproduzir a máxima de Godard O travelling é uma questão de moral, tal como se dirá que é impossível viver sem Rossellini e veremos a admiração por Nicholas Ray.
Mas, ou não fosse a segunda geração italiana marcada pelo empenhamento político, este é também um filme sobre a educação política, maxime sobre os paradoxos experimentados por um jovem burguês adepto dos ideais marxistas. Fabrizio, o jovem intelectual que, inicialmente, é um fervoroso adepto do ideário de esquerda e que, paulatinamente, cede, conformando-se ao ponto de aceitar as instituições que o rodeiam. Trata-se, pois, de um filme sobre a derrota do ideal e da utopia, anunciando, assim, as conclusões que obras como Novecento ou The last emperor confirmaram. Mais do que a imposição da massa sobre a individualidade, será esta a prevalecer sempre. Só assim se percebe, por exemplo, que Pu Yi, mesmo idoso, não abdique de se sentar no seu antigo trono.
Todavia, o que distingue Prima della Rivoluzione das restantes obras de Bertolucci talvez seja o seu tom melancólico e nebuloso. Com efeito, não pode deixar de causar espanto que um jovem de 24 anos realize um filme tão outonal e com um sentido trágico tão acentuado. Quem não viveu antes da revolução não conheceu a doçura de viver, eis a questão.

terça-feira, novembro 7

Terra em transe


Terra em transe de Glauber Rocha é um verdadeiro tratado sobre a sedução que o poder exerce no Homem. Inebriante, sedutor e enlouquecedor, o poder surge como a coroa que permite subjugar o povo - um imbecil não analfabetizado, conforme se diz a certa altura - de molde a satisfazer necessidades próprias. Glauber Rocha assinou um filme revolucionário e pleno de convulsões, tal como os personagens que se vão degladiando na tela.
Através desta visita a um país imaginário, El Dorado, Rocha retrata o Brasil de ontem e de hoje, aquele onde a demagogia, o populismo bacoco e as relações promíscuas com a Igreja e com os donos do Igreja produzem frutos. Esta é uma visão maquiavélica da política: os fins justificam os meios. Este é, assim, um retrato nigérrimo do lado vil do Homem. Mas é, também, uma obra dotada de um experimentalismo ímpar. Apesar de parentemente desconexa, a obra encontra o seu fio condutor no homícidio do jornalista Paulo, que permite faculta o acesso às memórias íntimas deste e à sua relação com políticos de esquerda e de direita. Um filme onde o plano seguinte é anunciado por uma qualquer palavra - numa sucessão de raccords infernais, onde o jump cut desempenha um papel fundamental - e onde avulta o tom grotesco, quer pelo recurso à handy cam, quer pelos grandes planos de rostos transfigurados e de feições duras e nitidamente recortadas.
Diziam-me, com toda a razão, que hoje o cinema não é capaz de tanta modernidade. Pois não. É incrível como uma obra dotada de tanta abstracção e simbolismo como Terra em transe, é capaz de descer à mais normal das realidades, para nos dar um retrato tão sarcástico de uma classe abjecta. Só por isso, o tom programático e panfletário desta ópera tropical brilhantemente coreografada está mais do que perdoado.

segunda-feira, novembro 6

La maman et la putain, o estalar do verniz

Em 1973 Jean Eustache assinou um filme monumental que, entre outras coisas, era uma reacção contra o cinema de papa que alguns autores como Truffaut e Chabrol vinham fazendo. Eis o leit motiv de La maman et la putain. Apesar de a sua intenção inicial ter sido a de criar um filme que interrogasse a palvra, em que a palavra fosse o enredo, assumindo, assim o papel principal - basta lembrar o tom escrito do texto. Todos se tratam pelo pomposo Vous - Eustache acabou por ceder, permitindo que Veronika (la putain) corte cerce o tom teatral que impera no filme.

Certeiro. Cru. Agridoce e de uma lucidez visceral. Aqui, tal como num texto de Céline ou Genet, é o palavrão que fica bem e que é utilizado na medida certa. Serve de moldura à mensagem e, simultaneamente, é o seu veículo. Belo. Muito belo. São estes os escombros do Maio de 68. Eis os seus filhos desencantados. Perdidos no meio de nenhures, entre a esperança ingénua e o realismo cínico e amargurado.

sábado, novembro 4

Dans Paris, uma variação sobre a liberdade

Louis Garrel e Romain Duris

Dans Paris de Christophe Honoré é uma bela proposta do Cinema francês e merece, sem margem para dúvidas, a deslocação ao Cinema. Não só porque é um belo objecto cinematográfico que respira liberdade, mas, também, porque respira cinefilia.
Com um enredo aparentemente simples - o confronto de perspectivas entre um jovem dotado de um certo anacronismo em plena depressão, fruto de uma crise amorosa (Romain Duris) e o seu irmão, um bon vivant que passa o tempo de conquista em conquista (Louis Garrel) - Christophe Honoré utiliza com mestria o espaço e o mise-en-scène. Com efeito, enquanto veremos Louis Garrel (Jonathan) deambular por Paris, de conquista em conquista, veremos Durris (Paul) experimentar a sua depressão, em estado quase vegetativo, nas fronteiras traçadas pelas paredes do apartamento do seu pai. Apenas sairá desse espaço fechado no momento em que tenta o suicídio. Esta é, pois, quer a Paris dos espaços abertos, quer a Paris vista e sentida num quarto. E é neste ir e vir de perspectiva que Honoré alimenta o filme, a par de uma bela analepse que nos permite perceber o porquê de três jovens estarem deitados na mesma cama.
Mas este é também um filme pejado de referências cinematográficas. Veremos Garrel discutindo no leito amoroso, tal como em Doinel em Domicile Conugal; teremos Duris a lançar-se ao Sena, tal como Catherine em Jules et Jim; vemos três jovens na cama, à imagem de La maman et la putain, tal como veremos as imagens de um livro entrar no filme, provavelmente por inspiração de Pierrot le fou. E bastantes mais exemplos poderiam ser citados.
Na verdade, Honoré, a par desta cinefilia louvável (não estaremos, a final, perante um filme sobre filmes?), acaba por construir uma obra aparentemente livre, sendo que tal liberdade se encontra perfeitamente cristalizada nas deambulações de Garrel por Paris. É aí que veremos homenagens ao Cinema mudo, bem como a homenagem ao espaço aberto. Homenagem a Paris, às suas ruas e, sobretudo, à sua capacidade para emoldurar enredos aparentemente simples. Não eram estes alguns dos pressupostos da Nouvelle vague? Claro que sim.
Honoré brindou-nos com um filme poético, matizado pela crueza de um drama existencial, bem como pelas deixas cómicas que Garrel e Guy Marchand vão introduzindo. Trata-se pois, simultaneamente, de uma homenagem ao Cinema e de uma variação sobre o seu lirismo, designadamente sobre a sua capacidade de exploração dos pequenos grandes dramas caseiros que, devidamente projectados, são capazes de tocar cada um de nós. Honoré acaba, assim, por ter o condão de saber dosear na medida certa os vários elementos, de molde a oferecer-nos uma obra equilibrada, próxima do ponto óptimo.
Falhas? Claro que as há. Mas são compensadas pela emoção e pelo lirismo que fluem ao longo desta obra. E, já dizia Samuel Fuller: in one word, emotion. É precisamente esta uma definição possível para Dans Paris. Emoção, com muita liberdade. Talvez acabemos por não saber se é possível amar alguém ao ponto de nos atirarmos de uma ponte, mas, pelo menos, Honoré tem o condão de, através de Garrel, confrontar directamente o espectador com essa questão.
E isso, contrariamente ao que é dito logo a abrir, não tem nada de pedante.

quinta-feira, novembro 2

Centenário de Visconti

Luchino Visconti - 1906-1976

Luchino Visconti nasceu em 2 de Novembro de 1906.
Autor de obras seminais como Ossessione, La terra trema, Senso, Rocco e i suoi fratelli, Il gattopardo, La caduta degli dei ou Morte a Venezia, Visconti é um nome fundamental da História da Sétima Arte. Formado em plena explossão do neo-realismo, desde cedo superou os canônes vigentes, para criar um estilo próprio, onde o mise-en-scène, uma estética apurada e a operaticidade, confluem numa absoluta explosão de sentimentos que, com o passar dos anos, dará lugar retratos desencantados e decadentes. Em qualquer caso, Visconti foi - e sempre será - o esteta supremo.
Porque nunca é demais recordá-lo, o ABC Cineclube dedica-lhe um ciclo evocativo. As entradas são grátis. Pena é que o Museu de Cinema não lhe tema dedicado qualquer ciclo. Tal como não o fez relativamente a outro autor fundamental cujo centenário é celebrado este ano: Roberto Rossellini.

Interpretações memoráveis V

Dominique Sanda em Une femme douce

Por vezes o Cinema brinda-nos com aparições devastadoras. Tal é o que acontece em Une femme douce de Robert Bresson.
Nesta obra singular, somos brindados pela soberba interpretação de Dominique Sanda, a mulher que, logo no ínicio, se suicida e cuja vida conjugal vemos recriada num flash-back que está em contrabalanço constante entre a recordação dos tempos idos e o presente, marcado pelas confissões e lamentos do marido diante do corpo inanimado da mulher. Durante toda a obra avulta Dominique Sanda, cuja personagem (apenas "a mulher") surge como alguém absolutamente vazio, marcado pela ambiguidade, dado que tão depressa tem fugazes assomos de ternura para com o marido como o despreza, mostrando-se indiferente.
Tal como o marido contempla o corpo inanimado, tal como a obra é construída em (aparente) flash-back, Dominique Sanda surge, assim, envolta numa aura irreal, fruto da constante evocação de que é alvo. Mais do que o objecto inanimado - e o tom necrófilo da obra é manifesto - avulta o objecto sonhado e idealizado. Absolutamente irreal e, talvez por isso, terrivelmente perturbadora.

quarta-feira, novembro 1

Variações sobre o western...


...desta feita com África como cenário. Tal como num western que se preze, temos o território hostil e inóspito, pronto a ser dominado por um homem ou por um grupo deles. Como aparente nota de dissonância aparecem os elefantes. O tom ligeiro e bem disposto é apenas outra das variações introduzidas por Howard Hawks. Rectius, é uma falsa pista. No essencial, Hatari! tem os elementos do Western. Daí que não seja descabido afirmar que Hawks ofereceu-nos uma obra moderna, tal é a sua capacidade de reinvenção do género.

Como bónus, em pano de fundo, toca Baby Elephant Walk de Henry Mancini.