sexta-feira, novembro 30

Terrível palavra é um NON

"Terrível palavra é um NON, não tem direito nem avesso, por qualquer lado que a tomeis, sempre soa e diz o mesmo, lido do princípio para o fim ou do fim para o princípio, sempre é NON."

Terrível país este construído de insucesso em insucesso, ensimesmado em si mesmo, glorificando tempos idos e colocando os olhos num futuro do qual se tem saudades. País de cobardes, sonhos vãos e megalómanos...filme de tons irreais, roçando o sensualismo onírico - no belíssimo episódio da Ilha dos Amores - Non ou a vã glória de mandar funciona, de certo modo, como psicanálise e revisão histórica de um povo, sendo que essa revisão desemboca directamente no presente, não tanto por concluir em 25 de Abril de 1974, mas pelo facto de muitas das características das personagens e dos episódios evocados poderem servir de modelo deste país de entretantos. Em Non, tal como nas palavras do Padre António Vieira, não há direito ou avesso ou mesmo fim. Fica-se por uma leitura da História voltada para o presente.
Non é privado de esperança, é ambíguo. Não tem fim. É um travelling pela História - curiosamente, o filme começa com um portentoso travelling em torno de uma árvore - e um convite à reflexão. Isto enquanto Oliveira nos presenteia com o seu libelo acusatório: um Portugal de fracassos, como que para espevitar consciências e obrigar a meditar sobre o Mundo lá fora: aquele em que vivemos e apenas está fora do filme de forma aparente, já que todas as personagens, certamente, poderiam ser uma emanação dessa realidade externa.

segunda-feira, novembro 26

Ramos Alves, possível retrato momentâneo

“(…)toda a minha vida passa ante mim como um livro por brochar, páginas em desordem que rodopiam por cadernos com os fios pendentes e se confundem, os números ora para cima ora para baixo. Não posso orientar-me, os anos e os dias estão misturados, nada se passa consoante a sucessão razoável dos acontecimentos.(…)”
Aragon, Condenação à morte, Portugália.

domingo, novembro 25

Ontem como hoje


Ver Brandos Costumes, Alberto Seixas Santos, tentando desligá-lo do contexto em que foi criado é uma tarefa impossível: a metáfora da morte de um pai que mais não é do que o tirano de sal e azar é um retrato vincado e acutilante da sociedade portuguesa da década de '70.
Produto de difícil catalogação, entre o documentário e a ficção, Brandos Costumes é um ensaio social onde estão bem traçadas as fronteiras de todos e cada um numa dada sociedade: o pai que manda, a criada que faz, a mulher beata e as filhas algo perdidas. Tudo construído em contraste, provocando assim uma cadeia de choques contínuos. Vanguardista, retórico, exagerado e, não obstante, algo que marca, nem que mais não seja pelo cuidado tratamento do português, ou não fossem os diálogos uma sucessão de rimas.
Tarefa mais interessante - e simultaneamente mais curiosa - seria a tentativa de fazer a ponte desta família fechada em si mesma e num espaço opressivo para os tempos que correm. Bem vistas as coisas, continuamos fechados num passado distante, procurando identificar-nos no primeiro que tenha um mínimo de carisma. Projectamo-nos no infinito, num arquétipo. Em Brandos costumes era o pai tirano, hoje é a tirania das modas fugazes e voláteis. Será que os discurso do pai e da mãe - citações de Salazar o mais das vezes, sublinhe-se - estarão obsoletos hoje, ou teremos sido nós que pouco evoluímos?

sexta-feira, novembro 23

Imobilismo

J'ai l'air vieux aujourd'hui, diz um desencantado Claude ao ver o seu rosto reflectido num vidro.
Eis a última frase do belíssimo Les deux anglaises et le continent. Envelhecer - tornar-se lento e miserável num qualquer recanto... - sentindo não só o peso das rugas e da pele dura, mas flácida. Ter noção dos nossos limites, fracassos, ganhar a capacidade de avaliar erros. Há, irresistivelmente, um retrato desencantado do fluir do tempo neste filme impressionista de Truffaut: o tempo resume-se a um mero somatório de fracassos consecutivos, que apenas dão lugar à memória agridoce de um passado alegre que fugiu.
Tal como as inúmeras estátuas que vamos vendo e contemplando, Claude limita-se a contemplar o Mundo à volta. Filme do imobilismo, do amor romântico e da descoberta do corpo, funciona assim como voz da consciência do espectador.

terça-feira, novembro 20

Alienação

Dissertava por obrigação profissional acerca da alienação de acções de uma qualquer sociedade anónima e, de repente, tomou consciência da alienação espiritual e sentimental a que tal actividade o conduzia: já não se comunica, não se fixam os olhos do interlocutor, não se interpretam os gestos titubeantes ou pretensamente decididos e convictos da outra parte. Tudo é resumível a um qualquer resultado que se passeia na abstracção da rede das redes, vulgo Internet, para, a final, ser corporizado num resultado que não nos diz respeito. Em bom português: alienação, ao jeito de Antonioni. Nem sequer estamos no vento já. Apenas nos deixamos arrastar na mole de gestos quotidianos.

domingo, novembro 18

Memo to self II

Quando eu subi aos céus, disse para todos os mortais:
fodam-se vocês agora, que a mim já não me fodem mais

A César o que é de César. Max Monteiro, o Obscuro, cada vez mais guia espiritual deste recanto.

sábado, novembro 17

Memo to self

Vivre dangereusement jusqu'au bout!

Nem que para isso seja necessário mandar à merda todo e qualquer traste com que nos cruzemos ou tenhamos de mandar para a grandessíssima [censurado] todo e qualquer cretino que se nos atravesse à frente.

sexta-feira, novembro 16

Crença e palavra

Em Ordet, Carl Theodor Dreyer faz-nos sentir constantemente e de forma intensa o tempo a passar no tique-taque de um relógio, bem como o vento gélido abraçar-nos. É aqui que nos interrogamos sobre o valor da palavra, mas, sobretudo, do lugar de Deus na nossa vida. Entre a crença cega na palavra impressa na Bíblia e a interpretação cega de um louco que julga ser Cristo. O mesmo louco que crê ser capaz de fazer milagres e provoca discussões sobre a doença do seu espírito em contraste com o corpo sadio. É ele, o louco, que blasfema e, a final, produz o milagre de ressuscitar um ente morto.
Mais do que incidir na palavra, interrogamo-nos sobre a fé, a irracionalidade da crença e a ortodoxia das opiniões alheias. Nunca a fé ficou tão exposta, tal como nunca nos sentimos tão à beira do abismo existencial...mesmo que o ateísmo nos comande. Com Ordet vivemos a mais espiritual das experiências, mesmo que isso seja sinónimo de nos interrogarmos sobre verdades que julgávamos absolutas: se até um morto ressuscita, é possível acreditar que tudo pode acontecer. Basta acreditar.

terça-feira, novembro 13

Samouraï agradecido

Retomar velhos hábitos, ir ao sítio do costume: um Lubitsch. O magnífico Design for living. Esquecidas as agruras das torturas a que o Direito é submetido quotidianamente, eis um bom plano para acabar bem o dia e povoar os sonhos.
Acontece que há dias em que tudo corre bem. Venho acompanado por Michel Poicard numa espampanante edição Criterion e pela Cléo (idem). Merci!. (Re)Descubro a modernidade, a frescura do Cinema, a abertura à Cidade e às suas gentes, ao pós-modernismo, a cinefilia pura e dura...embalado pela alegria infantil de quem tem um brinquedo novo, vou para casa. Chave na porta. O barulho típico da abertura...um som oco...acordo estremunhado...co'a breca: um envelope de dimensões avantajadas com o meu nome. Interrogações em catadupa, mãos torpes e curiosas lançando-se à obra. Surge esplendorosa A poesia da terra, o constante chamamento telúrico, desta feita nos fotogramas de António Reis e Margarida Cordeiro. Um álbum lindíssimo. Obrigado, Ana.
Promessas...só uma: nos próximos dias este Samouraï abandona a revisitação Céliniana. E, por momentos, o peso de mais um ano em cima dos ombros abandona-me: volto a ser criança, hipnotizado pelo Cinema, inebriado pela amizade. Conforme Deus manda (para quem nele acredita, claro...).

segunda-feira, novembro 12

O Mundo não é só Cinema

Com um agradecimento à inefável Miss Blues pela chamada de atenção
Eis uma declaração com a qual concordo na íntegra. Se me é permitido, apenas diria que essa direita irrequieta e bem pensante comporta-se à imagem de um belíssimo agregado de pedaços inúteis de criação que transvestem chavões clássicos com alguns toques de (pseudo-)modernidade*.
*por momentos estive para acrescentar "e pseudo-intelectualidade". Ganhei juízo a horas: não gosto do epíteto e ainda estou à espera que me façam um desenho explicando o que é um intelectual.

domingo, novembro 11

Bons selvagens e leviatãs

Invariavelmente, a cada nova visita a expoentes do apelidado neo-realismo (não há um, mas sim vários. Tantos quantos os realizadores que o abraçaram) ocorre-me um pensamento ingénuo: há uma crença quase absoluta na natureza boa do Ser Humano. Simultaneamente, há um qualquer ente maligno que corrompe e destrói. Chamemos-lhe Leviatã: evoluções à parte, em Roma, città aperta era o invasor germânico, em Paisá a miséria do pós-guerra.
Ora, o que distingue um mestre absoluto como Rosselini de um realizador com toques de génio (à cabeça De Sica, atingindo o apogeu em Umberto D) é a capacidade de não cair na emoção fácil ou no maniqueísmo. Assim, enquanto Rossellini acabaria por procurar exorcizar as suas relações com a Igreja e os problemas de fé (com um soberbo Francesco, giullare di Dio) ou meditar sobre o estado do Mundo (essa grande metáfora que é Europa 51), De Sica enveredou pela comédia popular e pelos filmes de lágrima fácil. Também aqui podemos usar a metáfora dos bons selvagens e dos leviatãs: De Sica sucumbiu ao poder do dinheiro e às exigências populares. Rossellini procurou mudar o sistema por dentro, qual reformista, tentando fazer uso da televisão para criar novas linguagens e, simultaneamente, ser um educador popular. Por exemplo, com um curiosíssimo Viva Garibaldi.
O Cinema, como tudo, parece ser uma questão de leviatãs e bons selvagens. Há quem sucumba ao poder e à glória fácil, outros acreditam na Arte enquanto Arte.

quinta-feira, novembro 8

Pura anarquia

"(...)Aquilo que eu sei mesmo sobre física é que, para um homem situado na margem de um rio ou de um lago, o tempo passa mais depressa do que para um homem num barco - particularmente se o homem do barco estiver acompanhado de uma mulher(...)"
Woody Allen, Pura Anarquia, Gradiva, 2007, p. 123.

Com o devido agradecimento à little boss, que me tirou das trevas célinianas para embarcar no masoquismo obsessivo alleniano (danke!). Amanhã até vou trabalhar mais bem disposto e com melhor leveza de estar. E, com jeitinho, semear um pouco de anarquia na arquitectura sisuda da praxis jurídica.

quarta-feira, novembro 7

Ich bin der Zorn Gottes

domingo, novembro 4

Uma questão de culpa

A liberdade, como é consabido, acarreta o peso da responsabilidade. Meditar, agir, falar, tudo tem uma consequência. "De meditar, concluir, ir e fazer/'stá sobre o Mundo o Homem atirado" diria Manuel da Fonseca, provavelmente.
Precisamente por inverter essa lógica, Les Cousins, de Claude Chabrol surge como um objecto paradigmático: no curioso despique entre o estudante cábula e o devorador compulsivo de manuais universitários, apenas a preguiça inspirada pela doce vida de diletância terá direito a prémio. Virá o louvor dos pares, o sucesso académico - o curso é para ir fazendo... - e a continuação de um estilo de vida boémio, diletante e absolutamente inútil. Situação surreal? injusto? Abram os olhos e vejam bem o que está à volta*. Pensamento concluído, fica-se com vontade de (re)ler Poema temperamental, de Joaquim Pessoa.
*Pérola de sabedoria de alguém que pisa este purgatório terreno há mais 50 anos do que o ora escriba.

sexta-feira, novembro 2

Reencontro telúrico

Trás-os-Montes, de António Reis