sexta-feira, setembro 28

Solidão

Coisa bela a solidão, Miss Allen. Moustaki dá disso exemplo em Ma solitude. Tal como Irene Lisboa que, em Solidão, diário das notas soltas do quotidiano de uma mulher, eleva a objecto de estudo tão insidioso sentimento. A dada altura (p. 55 da edição do Círculo de Leitores, de 1973) podemos ler [sobre a solidão do homem de letras]:
"(...) Falava-nos do prazer da companhia dos outros homens e ao mesmo tempo da solidão de cada espírito, que nunca encontra em outro o seu perfeito desdobramento, o seu complemento...
Em todo o caso, esta solidão sempre nos regala de visões e de panoramas sobre a diversidade dos espíritos! É a grata, curiosa solidão dos que criticam os outros, e com isso gozam(...)"
Esta mafarrica solitária, tal como Mefistófeles, tem muitas vestes e procura acomodar-se aos nossos desejos, fazendo-nos ensimesmar, esquecendo o Outro e esquecendo-nos de nós próprios. É uma prisão com grades translúcidas que, dando-nos a sensação de gozar a companhia alheia dos que se cruzam connosco, nos faz refastelar no comodismo egoísta do Eu. Acontece que enquanto estamos com ela, nunca estamos sós. Um belíssimo paradoxo alimentado pela dor da ausência ou pela ilusão da companhia da solidão. Em suma, um mundo de sombras. Talvez um sinónimo de alienação.
* Miss Allen, co-autora de um dos meus blogues favoritos: o regabofe

quarta-feira, setembro 26

Capacete lírico


Num filme onde as sombras de Nicholas Ray imperam ou não fosse Jota um rebelde sem causa, à imagem de James Dean em Rebel Whitout a cause, talvez seja They live by night a referência maior. Na verdade, ambos os personagens nunca foram devidamente apresentados ao Mundo que os rodeia, sendo um alvo constante de incompreensão. Jota refugiou-se na violência e na solidão; Margarida numa teia de silêncios e auto-destruição. Acabam por encontrar-se, encontrando-se a si próprios e fazendo parar o tempo, algo que o próprio Cramez evidencia através de belíssimas sequências (da água a correr, por exemplo).
Cramez oferece-nos um filme de paradoxos e e contrastes. Afinal tudo gira em dois pólos aparentemente opostos e inconciliáveis: de um lado temos a dureza da linguagem, fortemente apoiada no impropério e no palavrão – afinal é precisamente o palavrão que fica bem e não um qualquer diálogo encenado – e a pureza dos sentimentos, do amor de Jota por Margarida. Tudo redunda numa obra lírica onde a rudeza de carácter apenas cede ao Amor e à Beleza. Vimos o turbilhão da vida, uma girândola de emoções, não tendo sido descuidado o retrato da realidade subjacente. Dura e agreste ou não se tratasse de Trás-os-Montes. Tudo isto na medida perfeita.
Por breves instantes acredita-se que o Cinema é capaz de nos salvar. Só esse é o maior dos elogios.

terça-feira, setembro 25

Gostar de pintura (e Cinema)

(Rembrandt segundo Jean-Luc Godard)

domingo, setembro 23

Ser alarve e inculto

"O meu insulto favorito é "pseudo-intelectual". Reparem como nunca nenhum "verdadeiro" intelectual ou pessoa letrada usa o insulto: a gente imagina que "pseudo-intelectual" fosse um epíteto brandido por quem consome todos os dias o seu Adorno e o seu Dewey; mas na verdade são os iletrados que usam a palavra com mais gosto. Não há alarve que não chame aos intelectuais "pseudo-intelectuais". Sendo que, para os incultos, qualquer pessoa que leia livros é um "intelectual" (ou seja, um "pseudo)." Pedro Mexia, in Público, 15-09-2007
Via Mr. Peeping Tom

Pois bem, esta é a hora de ser alarve e inculto: este senhor, ora citado, é um pseudo-intelectual que, o mais das vezes, não sai do lugar comum, disfarçando-o com uns pós de erudição: uma citação aqui (ajuda sempre quando queremos passar por pós-modernos), uma palavra cara além e, muito importante, postas procurando a compaixão do leitor. Dito de outro modo, a velha e clássica rábula do zé coitadinho.
Como esta é uma casa dedicada ao Cinema, permito-me acrescentar que não basta ter traduzido Notas sobre o Cinematógrafo, de Bresson para passar a ter lugar cativo nas fileiras críticas... Mas isto digo eu, que não percebo nada de Cinema. Aliás, pergunto-me também de onde terá o ilustre licenciado em Direito obtido os méritos e louvores de crítico literário. Resposta óbvia, vertida em frase da povo (os mesmo alarves que têm prazer no insulto!): um Jurista (Advogado, no original) é capaz de fazer qualquer coisa.
Quanto ao que ora importa, não diria que este é um complexo de inferioridade, Mr. Peeping Tom. Bem pelo contrário, ou é a clássica lógica da procura de compaixão ou, quando muito, uma forma sub-reptícia e sibilina de afirmar uma qualquer superioridade moral e/ou intelectual. Em qualquer dos casos, um momento típico de uma certa inteligentsia lusa, a tal que receia uma, passe a expressão, populaça culta e que, paralelamente, ora gosta de zombar da ignorância alheia ora gosta de se fazer passar por vítima da tal "intelectualidade", conforme conveniente, vulgo consoante o lado para onde sopra o vento.
Concluído o desabafo*, regressemos ao Cinema.
* o ora escriba, alarve inculto, permite-se a veleidade de chamar a atenção para uma oração de estilo latinizado, inspirada naquilo que, em gramática latina (entendamo-nos: de latim, a língua morta), é conhecido como ablativo absoluto.

sábado, setembro 22

O estado das coisas*

Ver um documentário em fase de montagem. Tecer apreciações. Dar ideias que dão trabalho.
Acto contínuo, começar a falar de Cinema. Ser cravado para escrever um guião (e isto só depois de explicar a base para o dito, rectius a realidade ("straubianamente" falando) que serve como ponto de partida e narrar - com direito a imagens semi-enquadradas por umas mãos torpes, mas sonhadoras - os primeiros planos). Talvez seja desta que me dedico (com mais intensidade e afinco...) à escrita. Vai ser uma bela peregrinação. Esperemos que não se transforme em via sacra.
* post manifestamente umbiguista.

quinta-feira, setembro 20

O cancro

"(...)Ma paroisse est dévorée par l'ennui, voilà le mot. Comme tant d'autres paroisses! L'ennui les dévore sous nos yeux et nous n'y pouvons rien. Quelque jour peut-être la contagion nous gagnera, nous découvrirons en nous ce cancer. On peut vivre très longtemps avec ça(...)"
Georges Bernanos, Journal d'un curé de campagne, Paris: Librairie Plon, 1963, p. 5.

terça-feira, setembro 18

Desconstrução*

Quando se ganha o hábito de ler os ditos clássicos russos - parece que agora é moda ler tais coisas, sobretudo citá-los. Ao que dizem, dá ar de erudição - constrói-se uma determinada imagem da Rússia: grandiosa, imponente, idílica por vezes. Povoada por gentes honradas e de carácter íntegro. E depois lê-se Solzhenitsyn e toda essa imagem cai por água abaixo, dando lugar a um Mundo de espectros habitando escombros.
De certo modo, é o que acontece ao espectador que, em dado momento, cresceu vendo os clássicos americanos das décadas de 40 e 50. De repente veio Godard e o seu À bout de souffle, filme onde não há dois raccords consecutivos "bem feitos" (dizem-me os especialistas), e soçobra a narrativa tal como a conhecíamos. Nasce a modernidade do Cinema e com ela vem a experimentação. Desconstrução muito maior se virmos os primeiros filmes de um não cineasta: Pasolini. Accattone ou Mamma Roma foram feitos por quem não sabia o que era uma objectiva, mas tinha uma noção do que queria: mostrar a realidade sob a forma de poema (in casu, de feições duras, roçando o abjecto). Sempre que o Homem sonha o Mundo pula e avança, dizia Gedeão. Neste caso, o sonho dá lugar a um constante estaleiro de obras onde se experimenta até à exaustão a capacidade de invenção e reinvenção do Cinema.
* Com este título não se tem em mente Derrida.

sábado, setembro 15

Portentoso

Nikolai Cherkasov em Ivan Grozny, de Sergei Eisenstein

sexta-feira, setembro 14

Bella ciao

Por cá gosta-se de cantares de resistência, mesmo quando são estrangeiros:
"Una mattina mi son svegliato,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Una mattina mi son svegliato,
ed ho trovato l'invasor.

O partigiano, portami via,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
O partigiano, portami via,
ché mi sento di morir.
(...)"
Devidamente sonorizada - e não só - pelo inimitável César. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César. Aliás, esta coincidência permite, também, dizer estoutra coisa: este é um Cinema de resistência. Contra o lugar comum, contra a banalização, contra um sistema pré-estabelecido, tentando impor uma certa forma de fazer Cinema, que prima pelo sublime poético. Essa, sim, é a postura de um realizador que se preze: mais do que narrar uma qualquer história, há que curar de afirmar uma mundividência própria. Eis a marca do Autor.

terça-feira, setembro 11

Estado de espírito

ou: De como um filme do Mestre, de repente, faz todo o sentido.

sexta-feira, setembro 7

Uma questão de joelho

Depois de rever Le genou de Claire é difícil não fazer o trocadilho fácil: esta é a versão académica e erudita de L'homme qui aimait les femmes, de François Truffaut. Fácil, mas errado. Onde Truffaut procura enfatizar a vertente autobiográfica, Rohmer dá primazia plena ao tratamento superior da língua, bem como da composição espartana das cenas e, acima de tudo, às questões morais inerentes ao relacionamento a dois.
É essa depuração que em flagrante contraste com a riqueza dos diálogos que compõe a beleza e a, passe a expressão, da superioridade do seu Cinema: partindo sempre de uma questão moral - ou não fosse este o quinto capítulo dos Contos Morais - Rohmer apresenta-nos personagens paradoxais: desde o adulto que não consegue largar a sua faceta infantil, passando pela adolescente de têmpera curtida e feitio inquisidor, vemos dilucidados os caminhos do amor e, sobretudo, da atracção, simbolizada num joelho.
Num ambiente que, por vezes, lembra quadros impressionistas (tal é a magnificência da iluminação), o espectador vê-se num mundo diáfano, apenas cortado pelas pulsões de desejo, que contribuem assim para não abandonarmos a realidade e, muito menos, as questões de moral e as sempre recorrentes dúvidas existenciais. Fica, pois, o retrato de alguém que procura (desesperadamente) ver, sentir e combater a sua ignorância relativamente ao seu semelhante.

Estar inocente

terça-feira, setembro 4

A (falsa) serenidade das bibliotecas

Em pleno regresso às lides académicas, apenas me interrogo onde estarão Cassiel e Damiel para ajudarem na necessidade de serenar o turbilhão de ideias que vão perpassando o espírito do leitor. Há coisas que fazem falta, de facto...

sábado, setembro 1

Paixão, razão e fraternidade

Por via de regra tendem a perguntar-me Como é que raio um desregrado como tu é de Direito? Como bom comodista que não deixo de ser, limito-me a dar uma resposta seca: "Conheces Kieslowski? (pausa) Não? Então, vê Trois Couleurs: Rouge e encontras a resposta".
Entre a esperança por vezes ingénua de Valentine e o desencanto de Joseph encontramos o equilíbrio perfeito que o Direito procura. E, como dum produto social se trata, é da cumplicidade de ambos, da sua fraternidade, valor que deve guiar a arte de fazer o justo que temos a força motriz da obra. Direito - sendo certo que, na prática, chega a ser um deserto árido - é o frágil equilíbrio entre emoção e razão. Kieslowski, sem nunca tocar na definição da Arte do Justo, acaba por retratá-lo. E é esse o Direito a que aspiro. A lei é a razão sem paixão dizia Aristóteles, mas, acaso dos acasos, Vermelho é a cor desta arte.