segunda-feira, janeiro 30

Primeiras notas sobre o cinema de Antonioni

Michelangelo Antonioni, génio pós-moderno

Michelangelo Antonioni é aquilo que, em tom de graça, costumo designar pelo cineasta da ausência e da pós-modernidade. Hoje é a primeira tentativa minimamente séria que farei para desenvolver de modo sistematizado essa ideia. Sendo assim, cumpre fazer alguns esclarecimentos:
i) ausência, é usado num sentido amplo, que vai desde o mais óbvio (o desaparecimento de alguém em L'Avventura) até ao mais refinado (a ausência de afectos de L'eclisse, que está na origem de uma sucessão belíssima, mas tenebrosa, de planos onde reencontramos os espaços percorridos habitualmente pelas personagens, mas sem a presença destas);
ii) pós-modernidade não é utilizado na acepção lyotardiana de estudo sobre o conhecimento. Pelo contrário, é algo mais modesto, consistente no advento e superação do modernismo (de Marinetti) que esteve na base da apologia das máquinas e gerou, quase de imediato, uma profunda decepção/depressão, fruto da verificação de que o progresso industrial não é um somatório de maravilhas tecnológicas. Bem pelo contrário.
Ora, Antonioni move boa parte da sua obra girando sobre estes dois eixos, sendo que a pós-modernidade é, de facto, o critério reitor donde fluirão vários sentimentos negativos e onde, acima de tudo, teremos a possibilidade de ver um desfile de personagens vazias, desequilibradas e à beira da loucura. Basta atentar no ambiente que rodeia as personagens para facilmente se detectar que esse desequilíbrio é o resultado ambiente, bem como do meio social a que se pertence.
Trata-se de um aspecto por vezes negligenciado, mas as personagens de Antonioni movem-se, regra geral, no seio da alta burguesia, o que poderia permitir uma leitura classista, onde se diria que o dinheiro e o poder esvaziam o Homem. Nada disso (quando muito, poder-se-á dizer que Antonioni vive deslumbrado por esse meio). Esse alheamento da realidade envolvente é a natural consequência de um Mundo onde é acentuada a necessidade de se produzir em abundância e de descurar as relações interpessoais. Basta atentar em Piero (Alain Delon em L'eclisse): um jovem e ambicioso corretor de bolsa que, por mero acaso, conhece Vittoria (Monica Vitti), iniciando uma relação com ela. Mas trata-se de uma relação onde não há Amor. Este é ausente. Quase que se diria que os personagens vivem na ténue ilusão de que as coisas correrão bem, até ao momento em que se verifica que não. Marca-se um encontro, mas ninguém aparece.
E aí surge o primeiro dos grandes méritos de Antonioni: temos o retrato de uma sociedade feita de quotidianos, sendo que só temos a verdadeira percepção de que vivemos em tal rede de hábitos quando esta é quebrada. É essa a força do segmento final de L'eclisse: Antonioni mostra que o quotidiano é uma realidade que se impõe sobre todos nós sem darmos conta. Apenas quando fazemos algo diferente (ou quando vemos algo "anormal") é que temos essa percepção.
A ausência de valores é ainda mais vincada no filme inicial desta trilogia: L'Avventura. Aqui, sob o pretexto de ir procurar uma mulher desaparecida, o noivo (Gabrielle Ferzetti) e a melhor amiga desta (Monica Vitti), acabam por envolver-se. Ou seja, temos a prova de que o Ser Humano é volúvel e mutável, tal como os seus intentos e, como consequência, vemos o jovem casal esquecer-se, progressivamente, do objectivo inicial que os impeliu. Sucede que, também aqui, esta relação está condenada ao insucesso, devido ao carácter, digamos, empedernido, de Sandro (facto que permite apontar, de certa forma, uma faceta feminista ao filme).
Monica Vitti em L'Avventura
Já em La notte encontramos um casal (Marcello Mastroiani e Jeanne Moreau) onde não há qualquer vestígio de amor. Assim se percebe que Tommaso (Marcello Mastroiani) venha a ter uma relação extraconjugal com Valentina (Monica Vitti). O que é deveras curioso é que Tomaso e Valentina conhecem-se no dia em que pai desta falece e é precisamente nesse dia que se inicia a sua relação amorosa (lembre-se que o filme se passa num único dia). Novamente, temos Antonioni a mostrar que o Ser Humano não tem escrúpulos e se move por instinto.
Digo mostrar e não provar ou demonstrar, porque o próprio Antonioni tinha por hábito afirmar que contava uma história por imagens. Daí a sua fama de grande perfeccionista do mise-en-scène e da fotografia. Trata-se, creio, de uma faceta que é facilmente explicável conhecendo o seu percurso inicial: Antonioni começou a sua carreira fazendo documentários e, de certa forma, é o que Antonioni faz com mestria ímpar nos seus filmes: documenta certo sector da sociedade, tendo como base um argumento (regra geral de Tonino Guerra). E é esse estilo simultaneamente cru e belo que não pára, ainda hoje, de fascinar.
Uma das "técnicas" que ainda hoje não pára de surpreender pela beleza e pela eficácia é a que consiste na projecção dos sentimentos das personagens na personagem envolvente: só assim se percebe, por exemplo, a utilização de um tenebroso som de folhas de árvores em L'eclisse e Blowup. Ora, se é certo que este recurso permite alargar o "raio de acção" das personagens, também não é menos certo que temos exemplo do inverso, plasmado de forma categórica em Il deserto rosso, onde um complexo industrial e o meio envolvente se imiscuem na forma de pensar das personagens alterando-as e fazendo com que tenham de procurar escapatórias. Assim se perceberá a necessidade de contar a fábula da menina da ilha ou a necessidade de um grupo de amigos se deslocar para um casebre, onde poderá conviver.
Mais do que puro diletantismo ou ausência de valores, tais opções mostram uma indesmentível pressão que o meio exerce sobre as pessoas, sendo esses subterfúgios uma escapatória à normalidade, e ao omnipresente risco de insanidade. Trata-se, quase, de um grito de desespero dizendo "Estou vivo!". Nada aliás que não existisse em momentos prévios da filmografia do Mestre italiano: atente-se na necessidade de Vittoria e as suas amigas (em L'Eclisse) terem de recriar uma sessão de danças africanas para terem sensações novas e, simultaneamente, lembrarem-se de alguém querido (e ausente).
O culminar desta ausência, desta necessidade de escapatória será atingido em Blowup, quando a personagem de David Hemmings, ao constatar que não conseguiu deslindar o homicídio no parque (visão? realidade? sonho?), vendo um grupo de mimos jogar ténis mental acaba por aderir a ele. Se, inicialmente, esse jogo é visto de modo impassível, paulatinamente, Hemmings adere ao jogo acompanhando a movimentação de uma bola imaginária. Aliás, a sintonia é tanta que a própria câmara de Antonioni segue a bola. Rectius, Antononioni segue a bola, como que concordando que há realidades para além da realidade (a tagline do filme é Sometimes reality is the strangest fantasy of them all) e que somos forçados a aderir a elas, como se estivessemos a ser anestesiados relativamente à vida com que lidamos todos os dias (como diz o português: Só se tem saudades do que não se tem).
É essa a força do cinema de Antonioni: mostra-nos que a realidade que vivemos não é, forçosamente, um mal necessário. Pelo contrário, cabe a todos nós torná-la mais leve, nem que mais não seja escapando para outros Mundos. Citando um dos mais belos diálogos de Il deserto rosso, podemos ter, de certa forma, o "sumário" do cinema Antonioniano:
"Giluliana: Ma cosa vogliono che faccia coi miei occhi? Cosa devo guardare?
Corrado: Tu dici: cosa devo guardare? Io dico: come devo vivere? E la stessa cosa"
PS - isto é um mero working paper. Coisas mais avisadas (espera-se) serão escritas por mim próprio nos tempos vindouros.

domingo, janeiro 29

Momentos épicos

Il buonno, il brutto e il cattivo de Sergio Leone

sábado, janeiro 28

La Grande Illusion

Eric von Stronheim em La Grande Illusion
Um filme tocante sobre a Guerra e sobre os laços que se criam entre homens provindos de classes sociais diferentes: o aristocrata De Boldieu (Pierre Fresnay) e Maréchal (Jean Gabin), que são feitos prisioneiros num campo alemão.
Renoir tem aqui uma das suas obras de maior cariz político, dado que é filmado na iminência de um novo conflito à escala mundial, pelo que pode ser visto como uma síntese do que virá e serve, acima de tudo, para agitar consciências, fazendo pensar na justeza/necessidade do conflito armado.
Uma das tónicas principais de todo o filme prende-se com a emergência de uma nova ordem social. É uma situação que fica vísivel de forma meridiana no diálogo entre Boldieu e Rauffenstein (Eric von Stronheim), quando Boldieu, às portas da morte, refere que tem pena de Rauffenstein, pois este ficará vivo para assistir à queda dos aristocratas e à emergência de uma nova ordem a que terá de se habituar. Renoir traça, pois, o fim de uma época, o fim de determinados valores incorporados em dois aristocratas (Boldieu e Rauffenstein) que vêm a Guerra como um dever moral e não como uma mera obrigação (caso de Maréchal). Concomitantemente, Renoir parece antecipar o que virá a suceder anos mais tarde: o advento da mediania, em detrimento da urbanidade e da elevação cultural e consequente desaparecimento de valores fundamentais na relação humana.
A segunda grande tónica do filme está ligada à solidariedade entre homens, brilhantemente expressa na guarida que uma viúva alemã dá aos fugitivos Maréchal e Rosenthal (como que dizendo que apenas os dirigentes de um País declaram guerra a alguém) ou no saríficio da sua própria vida que Boldieu faz, para que os seus companheiros se possam evadir da prisão alemã (neste particular é tocante a forma como é demonstrada a relutância de Rauffenstein ao mandar abater Boldieu. Inimigos, mas daqueles que se admiram e respeitam).
Renoir tem ainda o grande mérito de antever a ascensão do fascismo e da possibilidade de um novo conflito mundial (lembre-se que falamos de um filme de 1937), pelo que a cena em que os prisioneiros, ao tomar conhecimento de uma vitória militar aliada, acabam por cantar "A Marselhesa" tem de ser vista, forçosamente como um grito de revolta e liberdade não dos soldados, mas do próprio Renoir.
E como nota de curiosidade, há que atentar, ainda, na lucidez de realizador que, cirurgicamente, lança a questão do anti-semitismo: Rosenthal é filho de banqueiros judeus e só é tolerado pelos seus companheiros de prisão, porque a família lhe envia iguarias muito apreciadas pelos prisioneiros...
E como estamos perante uma Grande Ilusão, o filme acaba com Maréchal e Rosenthal a continuarem a sua caminhada rumo à Suiça e à Liberdade, ignorando que já são livres, pois estão em território suiço.
Estamos perante um filme de guerra, mas não perante o clássico filme de guerra, dado que não há qualquer cena de batalha. Tudo se passa no isolamento e reclusão de uma prisão, mas, mesmo assim, ficamos com clara mensagem de que a guerra é um exercício fútil. Apesar de não vermos explosões, deparamos com um verdadeiro libelo acusatório contra a estupidez humana e contra a violência. É desta massa que se faz um grande (enorme!) filme e um realizador magistral.
Uma obra-prima.

sexta-feira, janeiro 27

Once upon a time in the West

Charles Bronson e Henry Fonda em Aconteceu no Oeste

Sergio Leone é daqueles realizadores que tem um lugar cativo nas minhas preferências. Após ter realizado o movimentado, enérgico e tresloucado "il bonno, il brutto e il cattivo" (que, mesmo assim tem mensagens subliminares sobre o horror da 1.º guerra mundial (Batalha para conquista de uma Ponte. Até tem trincheiras e tudo) e da 2.ª Guerra Mundial (prisão de Blondie e Tuco. Referência aos campos de concentração)), Leone presenteou-nos com o primeiro dos filmes pós-modernos que é uma verdadeira obra de arte "Once upon a time in the West" (Aconteceu no Oeste).

Porquê pós-moderno? Porque faz uso como poucos da citação cinéfila: todos os grandes Westerns estão lá devidamente identificados (High Noon, Johny Guitar e Shane são algumas das fontes). Porquê um obra de arte? Porque a forma magistral como o Oeste é filmado faz com que fiquemos colados à acção. Mas estamos a falar de um filme de Leone e, como tal, temos os clássicos close-ups (quem se esquecerá do enorme plano dos olhos de "Harmonica" (Charles Bronson)??) sobre os actores seguidos de amplos planos sobre a paisagem (a chegada de Jill (deslumbrante Claudia Cardinale) à estação e a panorâmica de uma cidade em construção em crescendo com a música de Ennio Morricone é arrepiante)...

Em "Aconteceu no Oeste", Leone não se coibe de, verdadeiramente, lançar um olhar amargo sobre o progresso. Já não topamos com a caçada louca a $ 200.000, mas sim o avanço da ferrovia no Velho Oeste e a consequente necessidade de "limpeza" de tudo o que se põe no seu caminho. É aí que conhecemos o poderoso Morton (Gabrielle Ferzetti, o mesmo de "L'Avventura de Michelangelo Antonioni) que, mau grado o seu poder, vive fechado num vagão pois tem os ossos corroídos. Trata-se, obviamente, de uma clara metáfora da visão de Leone sobre o poder e o capitalismo selvagem: fortes no poder, mas fracos de corpo e alma.

Encontramos, támbém, um brilhante Henry Fonda, a fazer o seu primeiro papel de anti-herói. Já não temos o simpático e afável Tom Joad de "Grapes of Wrath", mas sim um frio e gélido assassino profissional, capaz de promover autênticos massacres, de que a carnificina inicial no Rancho é o exemplo máximo. Nesta cena, é brilhante a forma como Leone usa o silêncio para criar um clima de tensão, apenas rompido com os disparos que iniciam o massacre. Tal como é brilhante a aparição de Fonda, que aparece no meio da poeiria, filmado de costas inicialmente com uma câmara que gira à sua volta até parar no seu olhar gélido (um plano capaz de fazer parar o sangue de correr nas veias).

Creio que o verdadeiro motor da acção é Cheyenne (um excelente Jason Robards), o ladrão romântico e herói pícaro. É ele que tem a habilidade de tecer comentários sobre as personagens e de lançar com mestria os momentos de humor do filme (a sequência sobre notas em falso e sobre saber disparar num bar em plena pradaria, por exemplo), bem como o inesquecível diálogo com Jill já no fim do filme.
Todavia, a acção centra-se em Harmonica (enigmático Charles Bronson), que desde o princípo filme apenas persegue Frank (Henry Fonda). Leone gere muito bem esta obsessão através de umas breves analepses que, com o decorrer do filme, se vão alongando, até toparmos com um incrivelmente rejuvenescido Henry Fonda que, afinal, tinha assassinado o irmão de Harmonica.
A chave do mistério de Harmonica...
Onde é que Leone inova? Relativamente à sua filmografia prévia, inova porque lança como personagem principal uma mulher: Claudia Cardinale (até aqui as mulheres eram um mero fait divers no decurso da acção). Paralelamente, também inova noutro pormenor que não é despiciendo: cada uma das quatro personagens tem um tema musical próprio, que permite indicar o momento em que entrarão em cena.

Em suma, estamos perante um filme onde Sergio Leone desconstrói o Western clássico de Hollywood, fornecendo-nos um carrossel de personagens bem construídas, mas onde sentido cénico e estético predomina. A ver, rever e voltar a ver.

Match Point ?

Scarlett Johansson e Johnathan Rhys-Myers em Match Point

Devo confessar que, sem saber muito bem porquê, gostei do novo filme de Woody Allen. É certo que o mote do filme é um lugar comum: tudo depende da sorte, coisa que é expressa, desde logo, no plano inicial...

Mas o filme tem muito mais para além disso. Fico-me, apenas pela leve (e fundamental) referência ao clássico "Crime e Castigo" que Chris (maquinal Rhys-Meyers) lê logo no início do filme. Leve, porque apenas vemos a capa do livro e fundamental porque antecipa o complexo de culpa que Chris sentirá por ter assassinado a mulher que amava, Nola Rice (uma madura e deslumbrante Scarlett Johansson).

Para além deste momento marcante, Allen não deixa de traçar um retrato ácido e duro da vida em sociedade hodierna. Já não se vive nem se actua porque se gosta ou deseja algo. Apenas porque é conveniente.

Neste particular, é muito bem conseguida a narração do casamento vazio de Chris, metáfora dos difícieis amores que hoje andam por aí e consequência directa de uma Sociedade Egoísta e Egocêntrica. Só assim se explica e percebe a constante referência às ajudas do pai de Chloe para que Chris possa singrar profissionalmente.

De forma simples e despretensiosa, Woody Allen faz passar diante de nós espécimens de uma Sociedade que todos conhecemos, porque convivemos com ela. Trata-se, pois, de algo meritório, sobretudo porque é contado de uma forma simples e directa, apta a ser percebida por qualquer um.

É certo que não estamos perante o melhor dos filmes de Woody Allen, mas, definitivamente, é um dos melhores que realizou ultimamente. Em qualquer caso, um filme a ver. A comparar com o que por aí se vai estreando, "Match Point" é mesmo bom. Caso para dizer: "Game, Set and Match".

quarta-feira, janeiro 25

Zorba, the Greek

À partida parece fácil resumir "Zorba, o Grego": a história de um tímido escritor inglês (Basil) que herda uma velha mina em Creta e que acaba por contratar como ajudante um homem que conhece no porto (Zorba), enquanto espera pelo embarque. Pelo meio, já em Creta, apaixona-se por uma jovem viúva, que desperta os desejos de todos os homens cretenses. Como tudo se passa na Grécia, há que ter o devido fim trágico, e a viúva é assassinada no largo de uma Igreja em virtude de um dos seus pretendentes se ter suicidado. Caso típico de vindicta privada, portanto. O que é muito curioso é o facto de ser uma cena em tudo semelhante À da peça "O crime da Aldeia Velha" de Bernardo Santareno. Saliento a emoção com que é filmado o momento em que a viúva é acossada. Através de uma câmara móvel, de modo a exprimir o desespero e a reacção animalesca da viúva, qual raposa refugiada na sua toca receando os caçadores...
Alan Bates e Irene Papas em Zorba, o Grego
Se tivermos em consideração que o livro é a adaptação do romance Alexis Zorbas de Nikos Kazantzakis, poderemos ser tentados a afirmar que estamos perante uma obra menor, pois, como é consabido, reina a velha máxima de que o livro nunca é superado pelo cinema.

Se pusermos de lado, este último pormenor, abstraindo-o momentaneamente, verificamos que Michael Caccoyannis faz uso de alguns dos ensinamentos dos neo-realistas. Um exemplo: boa parte dos actores é amadora. Mais não é do que a população da ilha de Creta, o que, confere, indelevelmente, maior realismo e credibilidade à história (um exemplo clássico deste recurso é o fantástico "la terra trembla" de Luchino Visconti).
A composição estética do filme é sempre muito simples, o que ajuda em muito a concentrarmo-nos nos longos e profundos diálogos travados entre o histriónico Zorba (magnífico Anthony Quinn) e o tímido Basil (eficientíssimo Alan Bates). E é precisamente aí que reina a grande força do filme: Caccoyannis retira as principais lições do romance, permitindo-se fazer desfilar as misérias e esplendores da existência humana: a profunda necessidade de aproveitar ao máximo tudo o que Vida oferece, desde a mais simples das amizades, passando por uma refeição ou a luta pelo Amor de uma Mulher. Dito de outro modo, temos o horaciano carpe diem em todo o seu esplendor.
Em Zorba, temos tudo isto, aparecendo Basil como o verdadeiro case study (uma cobaia de Zorba?) e Zorba como o agente provocador, uma projecção do Super Homem de Nietzsche: vital, histriónico, confidente e, humano, o que leva a que proceda à anàlise das coisas de um ponto de vista emocional, mas pragmático. Mas nunca através de um prisma puramente racional.
Anthony Quinn e Alan Bates (emoção vs razão)
Há filmes de muito maior valia técnica, bem sei, mas Zorba tem o condão de tocar fundo na minha Alma. Faz-me reflectir, viajar às profundezas do meu "EU", tentando descobrir-me e melhorar-me e isso, creio, é o mérito de um bom filme. No meu caso, o filme da minha vida.
Recordarei hoje e sempre a cena final em que, finalmente, Basil deixa de recalcar as emoções e após a derrocada de uma construção feita por Zorba, pede para ter aulas de dança. E é aí, em plena aula, ante a interrogação "Hey boss, did you ever see a more splendiferous crash? ", liberta o seu verdadeiro eu, rindo, como nunca fizera em todo o filme e, provavelmente, em toda a vida.
A banda sonora de Mikis Theodorakis é inesquecível, tal como é esta aula de dança, verdadeiro hino à Amizade verdadeira e desinteressada entre os Homens.
Anthony Quinn e Alan Bates, um hino à amizade
Acima de tudo, afigura-se essencial não menosprezar a adaptação de Caccoyannis, pois a adaptação de um livro de forte cariz filosófico não é tarefa fácil e, neste caso, foi feito de forma muito eficiente e, acima de tudo, sem grandes pretensiosimos de se criar "cinema-arte". Na verdade, creio que o filme foi feito na lógica do póquer: pagar para ver. Uma aposta muito bem conseguida e que consegue sobreviver muito bem ao passar dos anos, tal como um bom Vinho do Porto.

1900 (parte iv - o fim da indústria europeia de cinema?)

Bernardo Bertolucci

Bertolucci, tal como muitos outros realizadores viu a sua obra reduzida na duração (exemplos célebres desta famigerada prática são Lawrence of Arabia de David Lean ou Once upon a time in America de Sergio Leone), uma vez que os estúdios entenderam que o público seria incapaz de assistir a um filme tão grande.
Certo é que esse corte teve também o efeito de trazer um forte ataque da crítica (Bertolucci, após o célebre (e maldito) Último Tango em Paris era o centro de grande polémica), que ou apelidava de realizador militante ou de deturpador da verdade histórica
Todavia, 30 anos passados sobre o lançamento deste polémico filme, verifica-se que tem sido alvo de novas leituras, desta feita bem mais simpáticas e justas. É de crer que essas novas leituras resultarão, muito provavelmente, do lançamento da versão integral sem cortes nem censuras.
Fechando este parêntese inicial, é mister salientar que o lançamento de um filme com tamanha conotação política é o maior dos triunfos por parte de qualquer realizador, sobretudo quando são grandes estúdios a financiar a obra. Basta atentar que dos 6 milhões de dólares de orçamento, a United Artists, a Paramount Pictures e a 20th Century Fox contribuiram com 2 milhões cada uma...
É precisamente este último pormenor que convém salientar: se é certo que Bertolucci marcou, definitivamente, o seu lugar entre os melhores realizadores em actividade (veja-se o recente The dreamers de 2003), também é seguro que mostrou, sem margem para grandes dúvidas, que a Europa é incapaz de se dotar de uma verdadeira indústria cinematográfica.
Exemplos de independência como os da nouvelle vaguei francesa parecem ser "meros" episódios ocasionais (mas com marcas indeléveis na História da 7ª Arte), uma vez que a verdadeira máquina industrial cinematográfica está sediada nos Estados Unidos e não deste lado do Atlântico. Bertolucci, como nenhum outro, demonstrou isso de forma clara.
Concluo salientando também a grande humildade de Bertolucci. Já após ter realizado La comare secca e Prima della revoluzione, não conseguindo obter financiamento para novos projectos, não viu qualquer obstáculo a trabalhar no guião de Once upon a time in the West, em parceria com Sergio Leone e Dario Argento.

terça-feira, janeiro 24

1900 (parte III - Burt Lancaster, reminiscências de "il gattopardo"?)

Com Burt Lancaster desempenhando novamente, o papel de um abastado nobre, a comparação com Il gattopardo de Luchino Visconti é, à partida, quase imediata. Esse imediatismo sai reforçado com os planos iniciais de 1900: a forma de filmar a casa Berlinghieri é, em quase tudo, similar à primeira aproximação (exterior) do palácio d' O Leopardo, o princípe de Salina...
Pondo de lado este pormenor, que não é despiciendo, parece-me ser lícito afirmar que este desempenho de Burt Lancaster, mau grado ser secundário, é um dos catalizadores da acção, uma vez que marca o fim de uma aristocracia romântica, que é susbstituída pelos seus descendentes que, regra geral, apenas são motivados pela perfídia (mais um dos clichés utilizados com mestria por Bertolucci).
Basta atentar no facto de, a dada altura, il padrone recusar-se a tomar as refeições com a família. Se esta o considera louco, o velho aristocrata dá provas de lucidez dizendo ao neto Alfredo: "o meu dinheiro. Só querem o meu dinheiro" e, acto contínuo, "mata" com uma espingarda descarregada todos os comensais, incluindo a sua irmã, uma freira...
O suicídio apenas se dá quando não consegue excitar-se ao ver uma esbelta camponesa. E aqui, já topamos com uma das temáticas clássicas de Betolucci: a vitalidade sexual. Abandonado pela família, restaria apenas o sexo como elemento libertador da existência. Faltando este, já nada haverá a fazer.

1900 (parte II - a estética. Algumas obrservações)

Robert De Niro, Gérard Dépardieu e Donald Sutherland em 1900


Salvo melhor opinião, creio que o empenhamento ("engagement") político de 19oo é apenas total do ponto de vista estético. De facto, deparamos com inúmeras cenas de levantamentos populares em que a estética de esquerda é omnipresente: camponeses de braço no ar, bandeiras vermelhas, mas o ponto que mais chama a atenção será, certamente, o facto de serem entoadas inúmeras canções de cariz marcadamente político (maxime, a Internacional), contrastando, de forma acentuada, com o fausto e opulência em que vive a família Berlinghieri.
O filme não se resume a este choque visual, dado que nos brinda com alguns quadros bucólicos que não deixaram, certamente, de se inspirar em alguns quadros impressionistas do século XIX. Exemplo: as imagens bucólicas dos camponeses deitados ora sobre um monte ora sobre a palha. Dito de outro modo, até neste ponto, o filme não deixa de "ser pintado em fresco".

Simultaneamente, Bertolucci presta uma grande homenagem ao neo-realismo, porquanto topamos com todo o cenário desenvolvido por cineastas como Rosselini, Lattuada, De Sanctis ou Visconti (verbi gratia, em "Rocco e i suoi fratelli"): crianças descalças, complexos fabris que sobressaem sobre a mole...neste partcular, cumpre salientar a abundância de grandes (e arrastados) planos sobre os camponeses, bem como sobre as ruas da cidade...

Apesar destas influências, Bertolucci não deixa de nos brindar com a sua originalidade e vigor criativo. Permito-me, apenas, salientar o emocionado discurso de Olmo sobre a opressão dos trabalhadores em que, quase sem dar por isso, a câmara gira sobre o orador, que continua o seu discurso, desta feita para os espectadores que acabam por ser "chamados" para o filme.

1900 (parte I - fundamentos políticos)

Novecento - cartaz

De "Novecento" já se disse muita coisa: filme marxista, obituário do cinema europeu (devido à necessidade de recurso a estrelas internacionais), projecto megalómano, etcetera.
A sua história, que se desenrola por mais de cinco horas, é muito simples: duas crianças nascem em 1900. Alfredo (Robert De Niro) filho de il padrone (Burt Lancaster) e Olmo (Gérard Dépardieu), que nasce no meio dos operários (e é o filho ilegítimo de il padrone).
Trata-se, de facto, de um filme marcadamente político que parte de um dos clichés básicos do marxismo: os ricos são de direita e os pobres e oprimidos, por exclusão, serão de esquerda, maxime comunistas. Todavia, apesar desta abordagem marcadamente maniqueísta, Bertolucci (involuntariamente?) acaba por dar uma machadada fatal à lógica marxista.
Na verdade, verificamos que, aquando da libertação de Itália (1945), sendo já Olmo um destacado dirigente comunista, acaba por fazer a maior das provas de amizade e, simultaneamente, a maior das abstracções da ideologia marxista. Como?
No julgamento popular, Alfredo é acusado de ter espezinhado e maltratado os camponeses, mas tem direito a um surpreendentedefensor: Olmo. Este faz uso de um argumento brilhante: com a nova ordem, acabam os patrões e os camponeses. Ficam apenas os Homens. Já não temos il padrone, mas tão-somente, Alfredo Berlinghieri, um homem como qualquer um dos presentes. Il padrone morreu com a revolução e, consequentemente, nasceu Alfredo. (morte simbólica, está claro. Aliás, esta morte não será, também, a morte do capitalismo?)
Ou seja, temos a sobreposição (indirecta) do Homem sobre a Comunidade, o que marca, indelevelmente, creio, a morte do marxismo-leninismo que faz o apologismo da preponderância da Comunidade sobe o Homem. Com esta redenção simbólica, Olmo não se limita a salvar apenas o amigo. Pelo contrário, manifesta a crença profunda no Homem e não numa qualquer ideologia. Esta, quando muito, será o instrumento/meio pelo qual o Homem se salva.
Involuntariamente ou não, Bertolucci dá a machadada final no marxismo, do mesmo modo que o faz em "the last emperor", quando Pu Yi, já em idade avançada e depois de ter sobrevivido à prisão, não resiste a visitar a sua Cidade Proibida e sentar-se no trono que outrora fora seu. Ou seja, o sistema penal maoista não funcionou, o que permite concluir, que nem a mais cega aplicação dos canônes marxistas, rectius, maoístas pode apagar a identidade pessoal.
Se é certo que estamos perante um verdadeiro manifesto, um libelo acusatório contra o establishment capitalista, não é menos correcto afirmar que Bertolucci acaba por dar prevalência à crença no Homem, em detrimento da ideologia deificador da Comunidade.
Pelo meio, conhecemos a incarnação do Mal: Atila (Donald Sutherland), o camisa negra e representante do fascismo. De certo modo, Atila poderá ser o verdadeiro Leviatã de todo o filme, porquanto dedica-se a fazer uso do seu poder para perseguir os seus opositores (O Homem é Lobo do Homem, dizia, sabiamente, Hobbes). De certa forma, Atila não deixa de ser uma caricatura de Mussolini, uma vez que partilha das mesmas características: fraco intelecto e enorme força bruta. Trata-se, no fim de contas, do resumo da ascensão e da queda do fascismo: da mesma forma que, oportunamente, alcançou o poder, viu-se arredado deste às mãos do povo.
PS - diga-se, a talho de foice, que o julgamento popular que nos é apresentado no filme tem, de facto, origem maoísta e não marxista.

Amarcord

Expressão em dialecto romagnolo que significa "Io mi ricordo" e, simultaneamente, é o título de um celebérrimo filme de Federico Fellini.

De hoje em diante, este espaço fará jus ao nome: recordações do cinema de outros tempos, bem como reflexões a propósito do que hoje se vai fazendo. Sempre (espera-se) com um tom crítico, metódico e devidamente ponderado.