quinta-feira, julho 27

A transcedência estóica

Bruno Ganz em Der Himmel über Berlin

Tão longe, tão perto.
Num Mundo em tons sépia, os Anjos existem desde o princípio das coisas. Incapazes de sentir, limitam-se a contemplar, do alto de uma estátua ou de um edifício, os habitante de uma Berlim dividida por um muro. Longe, porque é grande o distanciamento e perto, porque apesar de não serem vistos, estas criaturas puramente espirituais, assistem a tudo ao nosso lado, por cima do nosso ombro. Enternecendo-se, atingindo o desespero por ver alguém suicidar-se, sem poder evitar o resultado.
Estes Anjos, de certa forma, são estóicos: limitam-se a contemplar a existência, conformando-se com o que vêm. Só nunca saberemos se o fazem como caminho para chegar à virtude. Ora, a fragilidade de tal atitude é demonstrada: é impossível ficar a contemplar o Mundo sem sofrer (seja porque se vê alguém a ser atropelado, seja porque se vê alguém a morrer). Isto porque a atitude contemplativa tem de ter uma capacidade de encaixe muito grande. Ver tanta coisa atroz e ser capaz de permanecer imóvel implica espírito de missão. Ou seja, tem de haver combate, mas num plano interior. E é esse combate, essa tensão que estará sempre latente nos diálogos de Cassiel (Otto Sander) e de Damiel (Bruno Ganz).
Nesta cidade dividida por um Muro, o Céu é opaco, cinzento e não augura grande futuro. É pesado e a sua simples presença intimida e oprime. O céu sobre Berlim não é um paraíso. Podia sê-lo, mas resume-se a um puro estado contemplativo, em que Damiel e Cassiel tiram notas e comparam-nas, com o fito de tentar obter sensações verdadeiras. Uma profunda sensação de vazio domina-os. Incapazes de sentir, a sua omnisciência leva a que ouçam os pensamentos dos habitantes da cidade, como se de transmissões radiofónicas se tratasse. Tal como a cidade está reduzida a um monte de destroços e de escombros, também os seus habitantes são os estilhaços de um passado aguardando um futuro melhor. Neuróticos, obsessivos, perdidos. Eis os habitantes desta cidade perdida no passado.
Será Marion, a trapezista solitária que apenas encontra refúgio no Rock (naquele que é um momento de pura magia), um anjo pairando entre os homens, a despertar o afecto de Damiel. Damiel, que tudo viu, quer sentir e, a final, acaba por abdicar da existência eterna. Para sentir as emoções terrenas. Desde o cheiro do café, passando por um cigarro. Sentir. E veremos um Damiel exultante que deambula por Berlim bramando Schön! para espanto dos transeuntes.
Schön! É esta a palavra certa para definir Der Himmel über Berlin, ensaio sobre o transcendental e sobre o vazio das sensações. Passámos do omnipresente preto e branco, sinal da incapacidade de percepção dos Anjos e do seu distanciamento relativamente à Humanidade, para a Cor. A Cor que nos permite presenciar a maior história de todos os tempos e, mais importante, que faz com que saibamos o que nenhum Anjo sabe (Ich weiss jetzt was kein Engel weiss, diz-nos Damiel).
Projectarmo-nos no mundo do sentir é projectarmo-nos no outro, vivermos dentro dele. É essa a nossa salvação. Talvez haja Anjos no Céu, mas Damiel ensinou-nos que eles estão entre nós.


Solveig Dommartin em Der Himmel über Berlin

terça-feira, julho 25

O poeta da alienação

Michelangelo Antonioni

Ver um filme de Michelangelo Antonioni equivale a ver projecção da vida tal como a conhecemos. Talvez por isso fiquemos assoberbados pela solidão avassaladora e dilacerante que se abate sobre nós. Cada plano, cada sequência, trabalhados até à perfeição, de forma aturada, são o sinónimo de deserto. Da alma, do ego, de nós, do Mundo.
Um Mundo povoado por edifícios imponentes e impessoais. Tão impessoais como os seus habitantes e as relações que entabulam entre eles. Antonioni, mais do que um arauto da desgraça ou do que um profeta nihilista, limita-se a ser o cronista do Mundo que o rodeia. Um Mundo tão dele como nosso. E talvez seja essa familiaridade, essa facilidade em reconhecermos realidades que nos são caras, que nos leva, instintivamente, a repudiar o seu Cinema. Um Cinema imponente, visual e poético. Mas, acima de tudo, um Cinema real. Tão real como um documentário. Em Antonioni não vemos ficção. Na sua essência, e uma vez despojada de artificiosismos, vemos a Verdade. Nua. Crua. Visceral.
É cero que o que parece ser por vezes não é. A realidade é a mais estranha de todas as fantasias. Mas em Antonioni, tendo como ponto de partida um qualquer enredo, temos todo o tratado filosófico do Homem pós-moderno: só, deprimido, à beira do abismo e à procura de escapes. O cinema de Antonioni, é, pois, o Cinema da alienação. De todos aqueles incapazes de se integrarar no Mundo que lhes é dado a conhecer. Mais importante, é o Cinema sobre a dimensão trágica da consciência dessa alienação.
Bem vistas as coisas, este é o nosso Mundo. Comumemte apontam o seu cinema como chato. Ora, também o Mundo tal como o conhecemos o é. É esse um dos seus muitos méritos: a sua câmara nunca falha nesta documentação da realidade.
Antonioni é Verdade, tal como a Verdade é Cinema.

domingo, julho 23

Antonioni segundo Bergman

"Ele fez duas obras-primas, pelo que não é preciso preocupar-se com o resto. Uma é Blow-up, que vi várias vezes, e a outra é La Notte, também um filme maravilhoso, apesar de tal dever-se,m em parte, a Jeanne Moreau. Na minha colecção, tenho uma cópia de Il Grido, que é um filme aborrecido. Tão diabolicamente triste, entenda-se. Antonioni nunca aprendeu realmente a essência. Ele concentrou-se em imagens isoladas, nunca se apercebendo que um filme é uma sucessão rítmica de imagens, um movimento. Com certeza que há momentos brilhantes nos seus filmes. Mas eu não sinto nada por L'Avventura, por exemplo. Apenas indiferença. Nunca percebi porque é que Antonioni foi aplaudido tão intensamente pela crítica. E acho que a sua musa, Monica Vitti, era uma péssima actriz"
Ingmar Bergman

Profession: Reporter, em exibição no Nimas, é uma das provas que mostram que, também neste particular, o grande Ingmar Bergman teve uma frase infeliz. Aliás, nada que seja de admirar, pois para Bergman, Orson Welles era um realizador sobrevalorizado e Jean-Luc Godard era alguém que fazia filmes desinteressantes e aborrecidos com o objectivo de satisfazer os críticos.
Mas talvez o melhor seja o espectador visitar um dos últimos redutos da cinefilia em Lisboa - o Cinema Nimas - para tirar conclusões por si próprio.

Profissão: errante

Jack Nicholson em Profession: reporter

David Locke (sublime Jack Nicholson) é um jornalista no deserto africano que, em virtude de frustrações várias, acaba por desistir da sua vida, da sua profissão e da sua mulher. Dando de caras com um homem morto, não resiste a apropriar-se do seu passaporte, assumindo uma nova identidade: David Robertson.
Profession: Reporter funciona, assim, como um exercício magistral sobre a perda e a procura de identidade. Com efeito, ao longo de todo o filme, veremos Locke, perdão, Robertson a procurar assumir a realidade do outro. Assim, acabará por seguir à risca a agenda do falecido, eliminando, assim, paulatinamente, as reminiscências da vida passada. Sob as vestes de um filme policial, as várias incursões de David pela Europa lembrarão um detective privado ou um repórter, já que para assumir o lugar do novo “Eu” será sempre preciso investigar o seu passado.
Todavia, esta veste policial é meramente formal. Profession: Reporter é (mais um) filme sobre a alienação e sobre a incapacidade de pertencer a um determinado lugar. Mas, mais importante, é um filme onde o espectro da morte pairará sempre sobre as personagens. Vemos o périplo de David por um cemitério, vimos a execução de um rebelde em África, tal como veremos a jovem rapariga (Maria Schneider) dizer que desaparecem pessoas todos os dias. É este fantasma que pesa sobre ambos e, provavelmente, impele-os para um romance intenso. Intenso, mas pleno de contrastes. Com efeito, a errância de David, sempre fugindo à morte, encontra o contraponto perfeito numa jovem pragmática que se deixa guiar pelo bom senso.
A consequência da dimensão trágica da morte, leva à fuga em frente. Daí que sejamos brindados com inúmeros périplos por Espanha. Neste particular, Profession: reporter adopta as vestes de road movie. Mas, mais importante, este périplos mais não são do que o reflexo da inevitabilidade do passado. São, apenas, uma tentativa de viver um idílio impossível. O amor louco e fugaz, assombrado pela morte.
Ente o ideal e o real, Profession: Reporter flui lentamente. Acossado pela consciência da finitude, acabaremos por ver David a render-se aos seus assassinos. E, como se fosse necessário, Antonioni brinda-nos com todo o seu virtuosismo num longo plano que começa no quarto do hotel e acabará focando a jovem rapariga no exterior. Apenas voltaremos ao interior quando a jovem filha tenta abrir a porta do quarto e depara com David morto.
Entre ambas as dimensões apenas encontramos as grades da janela. As mesmas grades que nos acorrentam à nossa identidade e ao nosso passado. David fugiu de um passado, assumindo o de outrem com o fito de se libertar. Apenas conseguiu a total identificação com a personagem que assumiu e foi esse o passado que levou à sua morte. A sua mulher não o reconheceu, mas a jovem rapariga sim. Talvez porque ela, efectivamente, o conheceu.
Neste ir e vir de perspectiva, vimos todo o virtuosismo de Antonioni. Plano longo e desmesurado? Talvez. Mas, como sempre em Antonioni, tem a virtualidade de nos mostrar que a realidade que os nossos olhos percebem é filtrada. Não é à toa que Antonioni sói filmar através de janelas ou de outros objectos. Há sempre algo que se interpõe entre o ser e o que percebemos. Daí que ver a Verdade (se é que ela existe) seja um exercício frenético e claustrofóbico que implica a total atenção por parte do espectador, a quem cabe a tarefa de interrogar-se sobre o que viu.

No fim, apenas a dolente banda sonora e a projecção para o infinito. Afinal, num filme sobre a perda de identidade e sobre alienação este seria o fim mais coerente.

sexta-feira, julho 21

O Processo

Anthony Perkins em The trial

Falar de The Trial, de Orson Welles, implica, tal como em qualquer filme que adapta um romance, tecer breves considerações sobre as ligações entre Cinema e Literatura. Por comodidade, limito-me a salientar que faço parte do grupo que entende que o filme não tem de, necessariamente, adaptar de forma canina a obra que lhe está na base.
Viajar ao Mundo de Franz Kafka equivale a aventurarmo-nos no mundo do surreal, do absurdo, pelo que o desafio que se coloca a quem queira adaptar prende-se com o como exprimir a claustrofobia e angústia despoletados por uma visão delirante e angustiante da Humanidade. Neste particular, Welles brindou-nos com uma demonstração exemplar da sua genialidade enquanto realizador. Em The trial o espectador é brindado com uma visão labiríntica do pesadelo Kafkiana: através de cenários comunicantes e interligados, como se de vasos sanguíneos se tratasse, vêmo-nos transportados, num ápice, quer para o tribunal, quer para quarto abjecto do pintor ou para a faustosa habitação do advogado.
Mais do que uma interpretação barroca da genial obra de Kafka, Welles, de certo modo, projecta-se em Joseph K. (genial Anthony Perkins), fazendo-nos embarcar na reflexão sobre o sentido do processo, a função do Direito e, mais importante, a (ausência de) solidariedade humana. Se em Nineteen-Eighty Four de George Orwell tivéramos a oportunidade de sentir a opressão que um regime político pode exercer, em Kafka fomos mais além e vimos a opressão cometida pelo guardião da justiça: o Tribunal.
O Tribunal, entidade abstracta e fonte de injustiças, é omnipresente e Welles, com grande sageza, transmite a claustrofobia resultante dessa opressão. A sucessão frenética de travellings, picados, contra-picados e planos oblíquos também nos leva a sentir acossados. Quer estejamos perante os planos do escritório de K., quer perante os processos acumulados que serão o leito do romance entre K. e Léni (Romy Schneider), sentimo-nos sempre pequenos e insignificantes. Perante a magnificência de Welles e, mais importante, perante a impossibilidade de combater um inimigo invisível, sobressaindo sempre o absurdo de nunca sabermos o porquê do processo movido contra K. Aliás, talvez o finíssimo jogo de espelhos entre Léni e K. possa funcionar como metáfora de toda a situação: no fundo, tudo se resume a saber se a acusação espelha a culpa do arguido.
Na verdade, é esta sensação de pequenez que leva a que "esqueçamos" as pequenas traições a Der Prozess. K. acaba por explodir em vez de Morrer como um cão. Aqui K. morre bradando contra os inspectores, como que levando a cabo a afirmação da sua teimosia e, simultaneamente, da sua inocência. K. morreu como um mártir, explodindo. Com efeito, tendo em conta o ritmo frenético do filme, não vislumbramos outro modo para finalizar.
Bem vistas as coisas, Welles provou o seu ponto de vista, tal como Kafka: K. morreu em nome de um processo e de uma culpa formada, sem ter tido direito a defender-se. Ou seja, mostrou-nos os perigos de todo e qualquer processo, com o mérito de, através do excesso e do recurso ao surreal, provar que a distância entre a verdade judiciária (aquela que se prova em Tribunal) e a Verdade é abissal.
The trial acaba, pois, por ser mais do que um exercício de puro virtuosismo. É uma obra dotada de coerência, quer com o Universo de Welles, quer com o cerne da obra de Kafka.

À guisa de post scriptum: não deixa ser flagrante o contraste entre a simplicidade do genérico e da humildade com que Welles se apresenta, no final, como realizador do filme, com a magnificência do filme enquanto tal.

Carta aberta a Alfredo de Mónio

Caro Alfredo,
Vi ontem a curta-metragem da sua autoria intitulada "Madrugada". Antes do mais, devo dizer que se aquilo é uma amostra do novo cinema português ou, indo mais longe, o futuro do cinema português, Portugal não tem futuro.
Fazer um filme, mesmo que seja uma curta-metragem, implica um trabalho de conceptualização relativamente profundo. Por isso mesmo, a sucessão de planos banais e inconsequentes com que nos brindou não podem considerar-se como um filme. Fazer Cinema não é nem pode ser limitar-se a filmar a Ponte 25 de Abril, o Cristo Rei ou a folhagem de árvores, com uma voz off (absolutamente maquinal, diga-se de passagem) narrando uma história vulgar. Como certamente saberá, Michelangelo Antonioni, no magistral Blow-up filmou o vento assobiando pela folhagem das árvores. Mas fê-lo num dado contexto, projectando a emoção das suas personagens na Natureza. Em Madrugada não vimos nada disso. Quais as emoções? Quais os sentimentos?
Aliás, convém referir que um filme não se pode limitar a por em off um determinado argumento (já de si banal): uma jovem grávida que a caminho da maternidade tem um acidente e morre. Posteriormente, telefona para o pai da criança, comunicando a morte. Caro De Mónio, entendo que, ao não mostrar o acidente, quis fazer uso da elipse, mas, convenhamos, se a ideia era essa, saiu totalmente falhada. Mas será que, pelo contrário, procurou abstrair emoções através do recurso a imagens estáticas? Também assim falhou redondamente. A única sensação que Madrugada despoleta no espectador é o tédio e, quando muito, simpatia pelo esforço de tentar fazer um filme que nem sequer chega a ser, passe o pleonasmo, esforçado.
A carta já vai relativamente longa e por isso finalizo com duas observações: i) citar um poema de Verlaine, a final, pareceu-me de um pretensiosimo intelectual totalmente dispensável, atendendo à mediocridade do que víramos antes; ii) a falta de meios não é desculpa para se fazerem coisas más.
Com efeito, se tivesse estado presente na Ante-estreia da sua curta-metragem teria podido visionar Le procès de Orson Welles e aprenderia a fazer um filme monumental sem meios. Aliás, neste particular, permito-me sugerir-lhe que veja La maman et la putain de Jean Eustache. É um filme com o qual aprenderá a maximizar a total ausência de meios para construir uma obra fundamental. Reitero: a ausência de meios, per se, não justifica a fraca qualidade de uma obra fílmica.
Caro Alfredo, se Madrugada é a primeira amostra da obra com que nos brindará no futuro, rogo-lhe, encarecidamente, que se abstenha de a partilhar connosco. Filmes pretensiosos e banais são coisas que não faltam nas salas de Cinema. Em qualquer caso, prefiro presumir que Madrugada se limitou a ser um projecto rotundamente falhado e, consequentemente, dou o benefício da dúvida à curta ou longa metragem que se lhe seguir.
Despeço-me, com amizade.
Hugo Alves

quarta-feira, julho 19

O filme perfeito

Marcello Mastroianni e Anita Ekberg em La dolce vita
A Roma do boom económico, o advento da cultura iconográfica, o esvaziamento do Homem. La dolce vita funciona, assim, como o retrato seco e cáustico da sociedade italiana do pós-guerra.
Rectius, Fellini traça o retrato de qualquer sociedade moderna. Num Mundo cada vez mais efémero, onde o que conta é aparecer e ser conhecido, acompanhamos Marcello, o jornalista que deseja ser escritor e que se apaixona por mulheres que não pode alcançar: desde a distante a misteriosa Madalena, passando pela exuberante e voluptuosa Sylvia. Em deambulações constantes pela cidade, limitamo-nos a ver uma sociedade fútil e diletante em que apenas o sexo e o dinheiro contam.
Marcello é, assim, o Homem abandonado. Apesar de ter encontrado um porto seguro no seu mentor, Steiner, acabará por ficar votado à sua sorte quando se apercebe que o pai de família se suicidou e, simultaneamente, matou os seus filhos. Ora, tal como Steiner pôs cobro à vida, também Marcello vai, paulatinamente, aniquilando as résteas de Humanidade que o ligam à felicidade, chegando ao ponto de perder a pureza. Num dos mais belos momentos do Cinema veremos a jovem e inocente amiga de Marcello acenando na praia. Separados por um braço de água, olhares fixos um no outro, veremos a expressão de Marcello alterarar-se, como que tomando consciência da inocência perdida. Marcello deixou de o ser. Foi corrompido. Tal como nós.
Filme intemporal, La dolce vita tem o mérito de fazer a prognose da realidade que hoje impera: jornalistas ávidos por escândalos, as notícias imediatistas e sensacionais (veja-se a sequência do pretenso milagre), a cultura do belo, efémero, do ícone...sempre embalados pela música do mágico Nino Rota, o outro ilusionista, Fellini, o Mestre, dirigiu uma sinfonia moral. Marcello acabou por ser, a final, o figurante a quem tudo acontece. Foi (e é) o exemplo do homem abandonado, quer pelo mentor, quer pelo pai que, numa visita a Roma, demonstra ser realidade bem diferente da imagem construída pelo filho. Será caso para dizer que La dolce vita é o filme que aborda tudo aquilo que não temos e queremos ter? Será o filme das ambições frustradas? Talvez.
Em todo filme perpassa a sensação trágica da incapacidade de alcançar a paz e a harmonia. E esse pathos avoluma-se à medida que se somam as desilusões. Apenas haverá lugar para felicidas aparentes. Talvez por isso vejamos tantas deambulações (não serão peregrinações?) a festas. A festa, que mais não é do que o ponto máximo da decadência, funciona como escape. E após vermos manifestações exuberantes de (falsa) alegria, sobrará apenas lugar para o grande vazio. Todos são solitários e sofrem em silêncio. As festas serão, apenas, a mera panaceia dos males da Alma.
La dolce vita agrega, assim, o que há de melhor no cinema italiano, superando-o. Temos uma análise social digna de Visconti, planos que fazem lembrar Antonioni (tal como o próprio alheamento das personagens), mas, mais importante, temos Fellini. Num Mundo paredes meias entre Sonho e Realidade, vimos o retrato puro e duro da condição humana: esteticamente bela, moralmente reprovável.
La dolce vita é, pois, o filme perfeito.

domingo, julho 16

Cinefilia

Para quem ainda não se deu conta, a Dois vai repor na semana que ora começa My voayge to Italy, documentário de Martin Scorsese onde o realizador americano discorre sobre alguns dos seus filmes italiano favoritos, como é o caso de La dolce vitta ou Otto e mezzo de Fellini, Senso de Visconti, Roma, città aperta, Viaggio in Italia de Rosselini, Ladri di biciclette de De Sica ou L'avventura de Antonioni, aproveitando para, simultaneamente, dar-nos um retrato da evolução do cinema italiano.
Para quem não viu aquando da primeira exibição, eis uma bela sugestão televisiva, já que esta é uma pequena grande encilopédia sobre o Cinema italiano do pós-guerra. Começa esta Segunda-Feira às 0.30.
Prós: excelente documentário com análises profundas de Scorsese; rigor e clareza da exposição.
Contras: ter de acabar.

quarta-feira, julho 12

Lisboa de ontem e de hoje

Mário Viegas e Lima Duarte em Kilas, o mau da fita

“Vivíamos do ar. Do ar, dizia a madrinha, enfurecida com o nosso modo de viver entre o café do bairro, a batota e os cabarets vazios das noitadas lisboetas. Da madrugada! Onde se traficava o nosso pequeno contrabando: tabacos, transístores, antenas, umas miúdas lançadas à vida, postas a render, é claro, e a quem púnhamos nomes de guerra em vez de números: era a Palito LaReine, a Rosa Enfeitada, a Mimi Bocas-Fora, a Lili Bóbó que agora por acaso até é uma senhora…” de Kilas, o mau da fita

(Re)Ver Kilas, o mau da fita equivale a revisitar os escombros de uma Lisboa antiga. A Lisboa dos bairros tradicionais, dos marialvas, dos engatatões, dos malandros que, sob um manto de brumas, cedeu lugar à luz e ao calor, substituídos pela sujidade e pela degradação…
Mas Kilas, obra maior de José Fonseca e Costa, vai para além desse mero retrato da marginalidade. Fonseca e Costa, coadjuvado pela extraordinária banda sonora de Sérgio Godinho e pela parceria na redacção do argumento com o escritor brasileiro Tabajara Ruas*, mostra-nos a Lisboa dos pequenos marginais, dos proxenetas e dos contrabandistas. Uma Lisboa provinciana nos seus hábitos e nos seus tiques, ensimesmada num passado que já não volta e recusando o Futuro que está ao dobrar da esquina.
De certo modo, essa mutação é palpável na própria evolução de Kilas (sensacional Mário Viegas) que de gatuno pilha-galinhas, roubando caracteres da tipografia onde trabalhava, passa a pequeno rei do bairro, um capo do seu pequeno grupo de marginais de bairro. Passámos do Kilas trapalhão e torpe, para toparmos com um Kilas frio, distante e calculista. E à medida que vemos essa transformação, será cada vez mais duro o rosto de Kilas, tal como passará a ser, paulatinamente, um mero espectro cujo rosto não mais veremos totalmente iluminado.
Esta mutação mais não é do que a própria projecção das alterações sofridas pela Urbe. Kilas é, até certo ponto, o arquétipo do típico lisboeta. Todavia, já não lidamos com a Lisboa simpática e alegre popularizada pelas comédias dos anos 30 e 40. Estamos perante a Lisboa suja e degradada, sem identidade nem alma, povoada pelos filhos da noite, pelos marginais. Dir-se-ia que a cidade perdeu as suas virtudes, tal como perdeu os seus habitantes, que sofreram uma mutação irreversível. Para pior. Apenas a Madrinha (Milú) faz a ponte entre presente e passado, mas mesmo ela, amargamente, tem perfeita consciência de ser impossível voltar para trás, tal é a perdição que guia as restantes personagens.
Já não lidamos com o indivíduo alegre e gingão. Sobrou, apenas, o marginal. Aquele que cresceu rodeado por edifícios degradados, cafés sujos e ruas obscuras. O humor deixou de ser um modo de encarar a vida. Tornou-se, tão-somente, na tirada irónica lançada com o fito de espezinhar e ridicularizar o interlocutor. Foi-se a pureza. Ficou a malícia. Tal como apenas ficaram os traços negativos de tempos idos: um sociedade machista, em que o homem tem de ser o chefe de família. Aquele que, mesmo sem razão, grita, refila, espanca, desbarata dinheiro e vive para as aparências. Mais do que um chefe, este é um mísero tiranete que só se sabe impor perante os mais fracos.
Talvez por isso não seja de estranhar que até o Amor seja um mero meio para atingir objectivos pessoais. Kilas obriga Pepsi Rita (Lia Gama) a dedicar-se à vida de alterne. Tal como a amizade. Tereno, o amigo de Kilas, acaba por atraiçoá-lo para também ele ser um rei do bairro. Em Kilas tudo é efémero e serve apenas para satisfazer meros interesses pessoais, Já não lugar para altruísmo. O Leviatã está aí e somos todos lobos do Homem, transformando-nos no nosso pior inimigo.
Fonseca e Costa projectou a sua câmara de forma implacável sobre Lisboa. Apesar dos inúmeros e belíssimos travellings com que somos brindados no decurso do filme, Kilas mais não é do que um plano picado sobre uma Lisboa que ainda hoje subsiste. A câmara nunca estremece, nunca falha e dá-nos, sob uma aparente ficção, um retrato duro e cru do povo português. Em Kilas, os risos iniciais transformam-se, progressivamente, em sorrisos amarelos, para se transformarem numa sensação amarga, própria de um rebate de consciência por vermos muita da realidade envolvente retratada no écran.
É essa a marca de um grande filme: não ficar datado e ser capaz de nos levar à reflexão. Sobretudo porque, apesar de distarem quase 25 anos sobre a data de estreia, Kilas, continua tão actual como então. Talvez por este motivo, não seja desrazoável ter presentes os versos iniciais do Fado do Kilas:

Foi num velho cinema de reprise
que eu revi a minha história
a memória é uma armadilha
quanto mais solta mais se ensarilha
(Sérgio Godinho)

* A talho de foice, saliente-se que muitos dos ambientes deste Kilas, o mau da fita, fazem-nos recordar o genial romance do escritor brasileiro Tabajara Ruas A região submersa, obra onde encontramos um detective muito especial: Cid Espigão, vulgo o Docinho, retrato caricatural de muitos dos detectives com que a literatura policial americana nos brinda. Algo que, entre nós, já Dinis Machado, sob o pseudónimo de Dennis McShade fizera com o tríptico de aventuras de Phylip Maynard: A mão direita do Diabo, Mulher e arma com guitarra espanhola e Requiem para D. Quixote.

domingo, julho 9

Idílio Selvagem

Rober Mitchum, Susan Hayward e Arthur Kennedy em The lusty men

Em virtude de um acidente num rodeo, Jeff McCloud (Robert Mitchum) acaba por desistir da profissão em consequência das lesões sofridas. Num belíssimo plano em que vemos Jeff percorrendo a arena, entre o pó, com um saco às costas, apenas acompanhado pelo uivar do vento, ficamos a saber que Jeff é um solitário.
Desejando visitar a sua antiga casa, Jeff acaba por encontrar num velho esconderijo vestígios da sua infância: uma pistola, um um livro, uma revista de BD e um saco onde tivera guardado dois níqueis. Interrompido neste acto de regresso à infância pelo actual proprietário da casa, Jeff acaba por conhecer Wes (Arthur Kennedy), o cowboy empregado de um rancho e que acalenta o sonho de criança de se tornar uma estrela dos rodeos. E é nesse ir e vir de perspectiva, entre o solitário Jeff que, por momentos procurou reviver a infância, e o sonhador Wes, aspirando a viver os sonhos de criança, sendo astro dos rodeos que nascerá a força motriz de The lusty men. Ambos são fugitivos do passado: um quer esquecer a vida que levou e outro procura mudar a que leva.
Entre a confiança esperançosa de Wes e o realismo cínico de Jeff nascerá uma forte amizade, que levará Jeff a aceder ajudar Wes a atingir o seu sonho. Na verdade, Wes procura o melhor de dois Mundos, aliando a prossecução do seu sonho de criança à satisfação das necessidades do presente, adquirindo uma casa. Ora, Jeff apenas o ajudará por ter ficado encantado com a mulher de Wes, Louise (Susan Hayward), que, detentora de uma lúcida visão da realidade, não quer ver Wes em rodeos, pois dá preferência a uma vida esforçada de trabalho onde não se corram riscos desnecessários.
Apesar disso, os três enveredarão pela vida de saltimbancos, de rodeo em rodeo, sendo Jeff o mestre de Wes. E, se num momento inicial Wes ficava atemorizado sempre que via alguém ferido, desfigurado ou vítima de acidentes com cavalos ou touros, à medida que vai conquistando títulos, soltará o pior que há em si: torna-se alcoólico, mulherengo,... Já Jeff, pelo contrário, mantém-se realista e torna-se um Homem simples, calmo, sempre com o intuito de conquistar Louise. É deste triângulo, onde veremos amizades, inimizades, confianças e desconfianças que surge a outro dos eixos do filme. Será Louise o seu principal eixo, quer por conduzir à mudança de Jeff, quer por não abandonar Wes, pois é ele que a poderá ajudar a satisfazer o seu principal anseio: comprar uma casa.
Ora, este triângulo não é harmónico e acabaremos por ver a crise. E, como estamos perante um western dos tempos modernos, veremos um duelo, se bem que diferente do habitual. Jeff, apesar da incapacidade física, concorre a todas as provas de um rodeo para provar a Wes que consegue ganhar dinheiro sozinho. Tudo corre bem até ao momento em que cai de um cavalo e virá a falecer. E, em momento de puro Cinema, veremos Wes a dizer He is the best, tal como veremos Louise, à beira do leito de morte de Jeff, dizendo que ele é um astro falhado dos rodeos.
Jeff, o Homem renascido, acaba por salvar o casamento de Wes e Louise, já que aquele desiste de uma vida de perigos e de glórias vãs para retornar à velha rotina que conhecera.
Nick Ray apresentou-nos uma relação amor-amizade ambígua. Afinal serão Jeff e Wes apenas amigos? Não teremos visto cenas de ciúme por parte de ambos? O que é certo é que dessa ambiguidade saiu uma obra plena de tensão e vivacidade. A mesma tensão que invadiu todos os rodeos que vimos. Violentos e cruéis, tal como todos os seus intervenientes. Vimos os bastidores desse Mundo de homens e mulheres temerários, onde o medo é escondido através do recurso ao alcoól. Um Mundo de excessos. Mas apesar desse excesso, vimos um Mundo humano. Talvez demasiado humano.
Acima de tudo Ray mostrou que a cobiça cega (citando Camões e o belo Perdigão, podemos dizer que Wes quis voar a uma alta torre mas achou-se desasado), tendo sido necessário que morresse um amigo para que Wes pudesse cair em si, com um murro no estômago. Foi acordado para a realidade da pior forma. Tal como os espectadores, que tomaram conta que tudo se resume a vãs glórias. Tudo é éfemero. Desde a fama à vida. Talvez por isso em Ray é trepidante a pulsão que envolve as suas obras, sempre à beira do abismo, mas sempre humanas.
Nick Ray c'est le cinema
, como dizia Godard.

sábado, julho 8

Os inadaptados

Farley Granger e Cathy O'Donnel em They live by night
"This boy and this girl were never properly introduced to the world we live in"
Dois jovens trocando carícias, beijando-se em pleno idílio amoroso, e é desde logo adiantado ao espectador que os jovens que vê, irradiando felicidade, serão vítimas de tragédia, pois não foram devidamente apresentados ao Mundo em que vivemos. Eis o leit-motif para They live by night de Nicholas Ray.
Bowie é um ingénuo presidiário que se evade com dois cúmplices, Chicamaw e T-Dub. Após um assalto a um banco, os presidiários escondem-se em casa do irmão de Chicamaw, onde somos apresentados a Keechie, pelo que seremos testemunhas do nascimento do amor entre Keechie e Bowie, que apenas desejam levar uma vida normal, como qualquer rapaz e rapariga que estejam apaixonados. Todavia, esse desejo é impedido pelos cúmplices de Bowie, que o levam a participar noutro assalto que sairá malogrado e estará na origem da viagem sem destino do jovem casal.
O que mais surpreende em They live by night é o facto de antecipar muito do que será a obra de Ray. Com efeito, vemos aqui a génese do gosto pelos inadaptados, dos rebeldes sem causa e de todos aqueles que sempre se contradizem. Vagamente inspirado pela história de Bonnie e Clyde, Ray mostra-nos o quão cruel é o Mundo perante aqueles que apenas desejam levar a cabo uma vida normal. Na verdade, o idílio do casal, casado numa capela de casamentos-expresso, apenas durará por breves momentos, em virtude de pairar sobre eles, sempre, a possibilidade de as autoridades deitarem mão a Bowie que, injustamente, é considerado como o cabecilha de um perigoso bando de assaltantes.
Acossados, Bowie e Keechie apenas conseguem viajar de noite, já que se torna mais difícil que estes sejam reconhecidos. Tornam-se os filhos da noite, os que vivem na sombra, sendo que dessa sombra brota, em claro contraste, um amor terno, puro e radioso, tão radioso como os sorrisos embevecidos que vemos quer a Bowie quer a Keechie sempre que trocam olhares. Mas, conforme se adiantava no genérico, ambos não foram devidamente apresentados a este Mundo. Temido por todos em virtude das várias notícias que correm pelos jornais, acabaremos por ver Bowie a ser convidado a sair de uma cidade por um dos líderes dos sindicatos do crime local, dado que Bowie, alegadamente, é sinónimo de sarilhos.
À deriva, tendo apenas o México como destino, o jovem casal acabará por procurar refúgio junto de uma velha conhecida, Mattie. Todavia, esta por amor ao marido que está preso, denunciará o jovem casal. E é nesse momento que vemos Bowie ser fuzilado pelas autoridades, não nos saindo da memória a face lúgubre de Keechie, lendo a carta escrita por Bowie, afirmando que a ama. Amor. Será ele a justificar quer a louca viagem de Keechie e Bowie, quer a traição cometida por Mattie, que apenas queria voltar a viver com o seu marido. Mas, neste caso, mais do que amor, Mattie terá sido influenciada pelo ciúme e pela inveja: também ela terá vivido momentos felizes, também ela deseja o seu idílio com o marido preso. E assim vem a tragédia, culminando na morte de Bowie e no sofrimento de Keechie, apenas atenuado pela leitura da carta.
É este o cerne do cinema de Ray: a intensidade, a emoção e o lirismo. Em Ray vivemos e sentimos o Cinema em velocidade vertiginosa, num verdadeiro turbilhão, prestes a explodir, tal é a tensão latente. Em They live by night vimos um conflito entre a natureza boa do Homem e uma sociedade dura e intolerante, incapaz de o perceber ou deixar que este se apresente confignamente.
They live by night é o filme de homenagem aos inadaptados. É um poema visual em tom lúgubre e melancólico sobre a impossibilidade de atingir a felicidade. Nick Ray sempre privilegiou os pequenos foras-da-lei, os inadaptados e excluídos. Em bom rigor, Ray mais não fez do que fazer Cinema pensando em todos nós. Afinal de contas, a dada altura ou momento todos nós fomos inadaptados. Tal como Keechie e Bowie, nenhum de nós foi devidamente apresentado ao Mundo em que vive.

terça-feira, julho 4

Interpretações memoráveis III

Giulietta Masina em La Strada

O Universo felliniano sempre se pautou pela salutar convivência entre o real e o onírico, entre o Ser e o Sonho. Se há interpretação que expressa lapidarmente a particularidade desse Mundo, ela será, provavelmente, a de Giulietta Masina em La Strada.
Gelsomina, a pobre de espírito que apenas comunica bem com a Natureza e com as crianças, vê-se vendida a Zampanò, que a transforma na sua companheira de estrada na dura vida de saltimbanco. Apesar dos maus tratos e da violência com que é tratada, Gelsomina nunca deixa de comover o espectador, com a sua face expressiva, terna, sonhadora e, de certo modo, alheada. Ante as adversidades com que se depara, Gelsomina responde ora com um sorriso trapalhão ora com um encolher de ombros. E, a final, tal como o espectador, descobre que todas as coisas do Mundo têm um sentido.
Só assim se percebe o porquê de amar Zampanò, apesar da sua truculência. É essa uma das lições de La Strada: o amor e a amizade surgem nos locais mais inesperados. Um amor tão forte que, mesmo, apesar de abandonada à beira da estrada, Gelsomina continuará a tocar, até morrer, a canção outrora ensinada por Il Matto, o guardião do mapa do seu (e do nosso) Universo. Mais do que mero figurante, também Gelsomina teve um papel principal nesta estrada em que todos nos lançamos, lembrando que, o mais da vezes, as coisas simples e puras é que contam.
E, dese modo, não mais sairá da memória do espectador o jeito trapalhão e dócil de Gelsomina, pobre de espírito, mas rica nas emoções e no actuar e sentir verdadeiro...