ou Uma fabulação tonta provocada pelas insónias:
Mark é sádico, perverso e voyeur, mas é, também, a vítima de um passado obscuro. Se, noutras encarnações, a câmara era o
prolongamento da personalidade, em
Peeping Tom ela surge como testemunha insensível e cruel do pânico e do terror. Mais do que um órgão corporal, ela é o mero instrumento de tortura que tenta captar reacções básicas: o medo das vítimas. Mais do que uma apologia do voyeurismo (tendência que, aliás, o cinema não tem descurado. Pense-se em
Rear Window, por exemplo), o filme de Michael Powell procura ser um tratado psicanalítico que parte da tutelar figura do pai, instrumentalizando o voyeurismo de Mark
para funcionar como síntese do próprio Cinema.
Efectivamente, em Peeping Tom vemos tudo através de filtros, sejam eles a emulação da câmara de Mark, espelhos ou janela. Talvez por isso, o aspirante a realizador Mark é o retrato (extremado, claro está) de uma das funções do Cinema: construir realidades, através de filtros - que, em última análise, mais não são do que a câmara que capta o que se atravessa na sua objectiva. Ao fazê-lo, Powell transforma Mark no espectador dilacerado pelas imagens que capta. Dir-se-ia que que o seu intuito é fazer-nos rever no papel de espectador, projectados nesta criatura sádica, mas capaz de suscitar ternura.
Peeping Tom é um acto de amor e de ternura. Quer para com Mark, ou não fosse ele vítima dos maus tratos paternos, quer para o espectador, já que, por vias travessas, reflecte no écran algumas das sensações típicas que se experimentam nas cadeiras de uma qualquer sala. Salientemos o óbvio: o Cinema depende, sobretudo, do olhar. Certamente não será à toa que o filme comece pelo grande plano de um olho. Mais do que olhar petrificado das vítimas, será, provavelmente, a emulação/reminiscência do olhar do espectador. Com isto voltamos ao ponto inicial: Peeping Tom é um acto de amor perverso.