domingo, junho 10

Peeping tom, um acto de amor

ou Uma fabulação tonta provocada pelas insónias:
Mark é sádico, perverso e voyeur, mas é, também, a vítima de um passado obscuro. Se, noutras encarnações, a câmara era o prolongamento da personalidade, em Peeping Tom ela surge como testemunha insensível e cruel do pânico e do terror. Mais do que um órgão corporal, ela é o mero instrumento de tortura que tenta captar reacções básicas: o medo das vítimas. Mais do que uma apologia do voyeurismo (tendência que, aliás, o cinema não tem descurado. Pense-se em Rear Window, por exemplo), o filme de Michael Powell procura ser um tratado psicanalítico que parte da tutelar figura do pai, instrumentalizando o voyeurismo de Mark para funcionar como síntese do próprio Cinema.
Efectivamente, em Peeping Tom vemos tudo através de filtros, sejam eles a emulação da câmara de Mark, espelhos ou janela. Talvez por isso, o aspirante a realizador Mark é o retrato (extremado, claro está) de uma das funções do Cinema: construir realidades, através de filtros - que, em última análise, mais não são do que a câmara que capta o que se atravessa na sua objectiva. Ao fazê-lo, Powell transforma Mark no espectador dilacerado pelas imagens que capta. Dir-se-ia que que o seu intuito é fazer-nos rever no papel de espectador, projectados nesta criatura sádica, mas capaz de suscitar ternura.
Peeping Tom é um acto de amor e de ternura. Quer para com Mark, ou não fosse ele vítima dos maus tratos paternos, quer para o espectador, já que, por vias travessas, reflecte no écran algumas das sensações típicas que se experimentam nas cadeiras de uma qualquer sala. Salientemos o óbvio: o Cinema depende, sobretudo, do olhar. Certamente não será à toa que o filme comece pelo grande plano de um olho. Mais do que olhar petrificado das vítimas, será, provavelmente, a emulação/reminiscência do olhar do espectador. Com isto voltamos ao ponto inicial: Peeping Tom é um acto de amor perverso.

8 Comments:

Blogger Juom said...

"Peeping Tom é um acto de amor perverso." -- sem dúvida. E, já agora, um dos filmes da vida aqui do je. Brutal!

11:58 da tarde  
Blogger Capitão Napalm said...

Apesar do nick, não é o meu filme preferido, nem sequer o que mais gosto do Powell, mas aprecio-o imenso; deve ser a par do "Psycho" e do "Oito 1/2" a maior imersão no que significa o "cinema". "O cinema é uma questão de olhar": certíssimo, e nem sei como é que não há mais gente a escrever isso.

12:13 da manhã  
Blogger Hugo said...

Pois. Às vezes é fácil esquecer coisas óbvias...

8:18 da tarde  
Blogger cineclube de faro said...

sim e não, deixem-me polemizar um pouco (olá):

é tb, e sempre foi desde o início, uma questão do ouvir. (o silêncio só foi conquistado para o cinema quando este se tornou sonoro; mas mesmo esse, o silêncio do cinema sonoro, é para ouvir).

claro que é também uma questão do olhar...

eu não sei se é o amor é que é perverso, se é o acto que é perverso, no caso deste filme. inclino-me para esta segunda hipótese... :-)

anabela moutinho

12:47 da tarde  
Blogger Hugo said...

É curioso falar do silêncio. Lembro-me sempre de "Bande À part" quando, a dada altura, se tenta filmar um minuto de silêncio e...não se consegue. Tem toda a razão :-)

10:56 da manhã  
Blogger anabela moutinho said...

:-)

10:55 da tarde  
Blogger Cataclismo Cerebral said...

Este comentário foi removido pelo autor.

8:14 da tarde  
Blogger Cataclismo Cerebral said...

Um grande filme. Um dos melhores a abordar a questão do voyeurismo e as raízes do medo.

Abraço

8:16 da tarde  

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