domingo, abril 30

Função social do Cinema?


Antes do mais, devo começar por lançar um aviso à navegação: penso que tudo deve cumprir uma função social.
Se é certo que Kant dizia que apenas é belo o que é inútil, julgo que mesmo a Arte, maxime o Cinema, deve cumprir um papel social. Precisando um pouco mais, direi que deve estar ideologicamente empenhada ou, melhor ainda, humanamente empenhada. Daí que seja adepto da estética neo-realista, uma vez que, a par de uma marcada conotação ideológica, os seus defensores/sequazes visam, acima de tudo, reflectir sobre a condição humana e é aí que radica o cerne da sua estética.
Trata-se de um aspecto que é desvalorizado, pois é mais fácil criticar o empenhamento político de determinado determinado cineasta (à cabeça, Visconti, passando por Bertolucci, Pasolini ou Rossellini), em vez de olhar com a devida atenção para a mensagem que nos quer transmitir.
Com efeito, os exemplos arquetípicos do neo-realismo (Roma cittá apperta de Rossellini, por exemplo), a par de mostrarem que o Homem é Lobo do Homem (naquilo que mais não é do que a aplicação do Leviathan de Hobbes), também procuram mostrar que é com base na solidariedade e na amizade entre os homens que o futuro poderá ser uma realidade mais "suave".
E é precisamente esta solidariedade que nos permite fazer a ponte para outros autores. Veja-se, por exemplo, a crença constante de Jean Renoir na Humanidade e no Homem, que nem mesmo em tempo de Guerra deixa de nutrir simpatia pelo seu semelhante. Acaso haverá exemplo melhor do que a viúva alemã que dá guarida aos soldados franceses foragidos, no belíssimo La grande ilusion? Aliás, é também esta a crença na Humanidade que nos permitiria chamar à colação a obra do genial François Truffaut...
Bem vistas as coisas, a tão apregoada função social (leia-se, empenhamento político), a par do empenhamento ideológico, lá bem no fundo, mais não é do que a crença no Homem. Rectius, mais não são do que um exemplo de devoção ao Cinema.
Aliás, é comum afirmar-se que a segunda geração italiana (Pasolini, Bertolucci, Irmãos Tavianni) distinguia-se da Nouvelle Vague, devido à falta de empenhamento político desta. Salvo o devido respeito, acho que é um exagero. Ambas as correntes são movidas pelo grande Amor ao Cinema. Acaso será menos "cinéfilo" um filme de Bertolucci, sempre pejado de citações e referências a outros autores, do que um filme de Godard? Julgo que não. Qualquer um dos autores limita-se a utilizar de formas diferentes um meio comunicacional semelhante.
Chegados aqui, cumpre fazer uma conclusão provisória: todo e qualquer filme deve ser movido pelo Amor ao Cinema. Sempre que se procura acentuar o tom político de um filme, oblitera-se algo. Esse algo mais não é do que o facto de o Cinema, no seu cerne, procurar contar histórias de pessoas através de imagens. E, neste particular, todos os filmes tem um radical semelhante.
Há que dar toda a razão a Charlie Chaplin quando dizia que um homem morre quando deixa de amar. Com as devidas alterações, poderemos aplicar o mesmo ao cinema: o cineasta (e o cinéfilo) morrem quando deixam de gostar de Cinema.
E, assim, encontrámos o critério que nos permite colocar, num plano semelhante, La nuit américaine de Truffaut, Le mépris, de Godard, Persona, de Bergman, Otto e mezzo de Fellini ou Nuovo Cinema Paradiso de Tornattore. São declarações de amor ao Cinema e, de certo modo, funcionam como síntese daquilo que o Cinema pode e deve ser: uma ilusão, a verdade 24 vezes por segundo...enfim: o manto diáfano da fantasia que cobre a nudez forte da Verdade e nos leva a interrogar sobre quem somos e para onde vamos.

quinta-feira, abril 27

O captain! My captain!

Robin Williams em Dead Poets Society

Carpe diem.
A máxima horaciana é uma das constantes do pungente Dead poets society. Uma máxima que todos pudemos aprender de forma trágica, pelo que haverá sempre que nos perguntar se tal lição valeu a pena.
Bem vistas as coisas, há que responder pela afirmativa. Graças ao provocador Keating (um sensacional Robin Williams) pudemos fazer sair de nós tudo aquilo que temos de melhor: imaginar, pensar, sentir, viver...enfim, ser Homens, na verdadeira acepção da palavra. E se a tragédia foi necessária para despertar consciências, ela não foi despicienda: alertou-nos para um Mundo duro e cruel, que não oferece grande margem para o romantismo. Mas, mesmo assim, a lição ficou: aproveitar o dia. E qual o melhor modo de aproveitar o dia, se não através dos livros e da poesia, motor universal da comunicação entre os Homens, quiçá a maior e mais bela das artes...
Mas, no fim, Keating acaba por sair triunfante. Tal como todos nós, que partilhámos o despertar para a vida de um grupo de jovens (e não teremos nós, também, despertado?). Háverá experiência mais bela e profunda do que ser testemunhas do despertar do "Eu", tomando consciência da ídentidade própria de cada um?

Cumpre, pois, relembrar o belíssimo texto de Walt Whitman:

O Captain! my Captain! our fearful trip is done;
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

E, uma vez chegados ao fim, há que olhar o Mundo de uma nova forma. Subamos, pois, para cima de uma mesa e tratemos de esquecer estereótipos e ideias pré-concebidas. Só assim daremos cumprimento à lição de Keating. Mais importante, só assim nos descobriremos a nós próprios.
O Captain! my captain!...

terça-feira, abril 25

A primazia do dever

Os Sete Samurais. Em plano de destaque Toshirô Mifune

Ver Shichinin no samurai ("Os sete samurais") de Akira Kurosawa é fazer uma viagem ao mais profundo do Ser Humano.
Tendo como ponto de partida uma aldeia acossada por um grupo de foras-da-lei, teremos a oportunidade de, durante quase 4 horas, ver um verdadeiro tratado sobre a dialéctica honra-dever, qual tese e antítese Hegeliana. Mas Kurosawa, Mestre japonês que nos ofereceu pérolas da Sétima Arte como Rashomon, Yojimbo ou Cão Danado, não esgota a temática do filme no seu leit motiv. Efectivamente, num momento inicial somos apresentados a Kabei (esplendoroso Takashi Shimura), o samurai que, para salvar uma criança, rapará o seu cabelo com o intuito de se disfarçar de padre. E será este o tom sacrificial que marcará todo o filme. Na verdade, Kabei acabará por aceitar a tarefa de recrutar samurais para salvar a aldeia apenas porque os camponeses lhe oferecem a mais valiosa das ofertas: arroz. A mais valiosa, porque é tudo o que têm e ningúém pode ficar alheio a tão sentido sacríficio.
E não deixará de ser curioso verificar o desenvolvimento da empatia entre os habitantes da aldeia e os camponeses. Se, inicialmente, todos se refugiam do grupo de ronin, progressivamente, vão criando laços de amizade com todos os elementos do grupo. Para que tal suceda, é sobremaneira importante a conduta de de Kikuchyio (brilhante Toshirô Mifune), também ele um camponês, que incitará todos os elementos da aldeia a que se rebelem contra os opressores.
Eis-nos, então, subliminarmente, perante um dos temas fortes do filme: a rebelião contra a tradição social. Basta lembrar que Kikuchyio não nasceu samurai. Pelo contrário, também ele é camponês e, a punho, logrou alcançar o seu sonho. E será essa preserverança o motivo que levará a que Kikuchyio, inicialmente, zombe dos camponeses e acabe por simpatizar com eles quando estes decidem revoltar-se.
Cumpre fazer um breve parêntese: boa parte do filme é dominado pela tese de que as classes sociais (leia-se, camponeses e samurais) não se podem misturar. Apesar desta linha de força, veremos os camponeses a acabar por recorrer a samurais, apenas porque não têm como fazer face aos bandidos. De certo modo, temos uma afirmação da parte de Kurosawa que parece apontar para o facto de o Homem, em tempos difíceis, abandonar a mais forte das convicções. Dir-se-ia, portanto, estamos perante uma decisão utilitarista, na linha de Bentham.
Mas esta imutabilidade será sempre posta em causa. Com efeito, confrontamo-nos, por um lado, com a revolta contra a própria natureza (sempre latente em todas as deixas de Kikuchyio), e, também, acabaremos por ver o amor proibido entre Katsuhiro (Isao Kimura) e uma das jovens da aldeia. Pese embora o tom idílico em que esta história se desenvolve, Kurosawa não deixará de nos brindar com a sua fina ironia: afinal, a aldeã que caiu em tentação é a filha do camponês que sempre se preocupou com o facto de os samurais, alegadamente, quererem violentar as mulheres da aldeia...
E se, no fim, os camponeses acabam por vencer, não deixa de ser sintomática a última frase de Kabei, contemplando os camponeses no seu regresso à normalidade: Não fomos nós quem ganhou. Foram os camponeses. Nós perdemos sempre. De facto, todo o filme, mau grado as inúmeras mortes, não é um filme sobre violência. É um filme sobre a noção de dever e sobre a função social de cada um. Aliás, não deixa de ser curioso o facto de Kabei, o Samurai que sempre se mostrou mais distante perante todos os acontecimentos, a fazer tão fria análise da realidade.
Kurosawa, sempre operático, oferece-nos um filme mágico, repleto de momentos inesquecíveis. Um deles será o ritual de enterro dos samurais mortos em combate. Enterrados num monte, isolado e distante, sempre omnipresente na mente dos que vão combater. E será sempre o silêncio de cada visita ao monte que nos lembra, com um verdadeiro murro no estômago, da nossa finitude e, acima de tudo, da desnecessidade do combate e da estupidez da morte. Nem mesmo o mais forte dos deveres é capaz de a justificar.
Uma vez mais, é o tom de sacrifício que regressa. Os samurais, pese embora a morte dos seus companheiros, não se queixam, dado que cumpriram, estoicamente, a sua tarefa. Já os camponeses, uma vez eliminada a opressão, não querem os samurais por perto. Subliminarmente, temos Kurosawa a dar-nos uma crítica velada à sociedade que o envolve, mormente ao seu imutabilismo. Apesar disso, temos um elemento perturbador: Katsuhito. Se, inicialmente, o vemos com os samurais sobreviventes, acabará por se juntar à sua amada, abraçando a vida do campo...
Afinal de contas, estará Kabei certo? Será que nós perdemos sempre ?
Post Scriptum - a influência deste filme foi tante que John Sturges adaptou Os sete samurais num western famoso: The magnificent seven, que conta com Yul Brynner, Steve McQueen, Eli Walach, James Coburn e Charles Bronson no elenco.

sábado, abril 22

Ad provocationem V

Luchino Visconti
Cineasta, filósofo, erudito e pensador problemático-existencial
De todos os grandes autores, Luchino Visconti é, provavelmente, o mais constante.
Explicação de motivos:
Efectivamente, começando por Ossessione, obra-prima considerada por muitos o primeiro filme neo-realista até L'innocente, Visconti sempre nos ofereceu grandes filmes. Uma obra que, numa fase inicial primou pela afirmação da sua ideologia marxista (veja-se o paradigmático La terra trema), evoluindo para o que lhe valeria o epíteto de "esteta de primeira água" (veja-se Senso ou Il Gattopardo), mas que nunca deixou de nos oferecer filmes portentosos. Nem mesmo na sua fase "outonal", que prima por uma decadência sublime e perturbadora (veja-se La cadutta degli dei ou Morte a Venezia). Bem vistas as coisas, resulta extremamente difícil apontar a Visconti um filme menor.
Operático, filosófico, esteta refinado, militante convicto, Luchino Visconti é, assaz provavelmente, o maior dos autores. Tal deve-se quer à sua particular abordagem das temáticas dos seus filmes, mas, também, por ter sido um dos poucos a demonstrar que as relações entre Cinema e Literatura podem ser extremamente profícuas e que nem sempre a adaptação cinematográfica sai a perder.
Três exemplos:
i) A adaptação de Il gattopardo de Tommasi di Lampedusa, em que Mestre Visconti nos brindou com um filme memorável. Certamente um dos melhores de sempre, se não mesmo o melhor. Um filme, de certo modo, autobiográfico (Visconti não deixa de se reflectir no Conde de Salina, interpretado por um genial Burt Lancaster), mas que não deixa de focar temáticas de pendor existencial e sociológico de forma sublime (vejam-se os inúmeros diálogos do Conde de Salina, que prima pela máxima: É preciso mudar algo, para que tudo fique na mesma...)
ii) A adaptação de L'étranger de Albert Camus, no magnífico Lo straniero, com um brilhante Marcello Mastroianni, numa adaptação sublime da obra fundamental do pensamento de Albert Camus, teórico do absurdo existencial.
iii) A adaptação de Noites brancas de Dostoievsky no belíssimo Notte Bianchi, onde vemos, talvez, a melhor performance de sempre de Marcello Mastroianni.
Visconti, o Conde de Modrone, sempre polémico, mas, acima de tudo, um dos poucos que nos demonstrou todo o esplendor do Cinema enquanto Arte.
Da minha parte, salientaria enquanto filme-síntese da sua obra o genial Rocco e i suoi fratelli, onde vemos tudo o que há de melhor na sua obra. Desde o marxista convicto (veja-se o constante dilema capitalismo/exploração, em que a divisão do filme em capítulos, por cada um dos irmãos de Rocco, é o leit motiv para explorar várias temáticas caras ao neo-realismo, mas, também ao existencialismo e, de certa forma, para se assumir como pós-moderno. Bem vistas as coisas, as máquinas e a industrialização não trazem felicidade...), ao operático (o abraço da morte, pela personagem interpretada por Annie Girardot, , nunca nos sairá, jamais, da memória naquele que é o mais belo momento do filme), passando pelo esteta (vejam-se as sequências dos combates, que seriam, certamente, a base para o desenvolvimento estético operado por Martin Scorsese em Raging Bull, ou, entre nós, no fundamental, Belarmino). Mas, acima de tudo isto, sobressai Visconti, o erudito e o filósofo, que não deixa de acentuar a crença num futuro feliz e, de certo modo, telúrico.
Não será o episódio final de Rocco e i suoi fratelli a afirmação de uma problemática não apenas lusa, mas, também, Universal? A belíssima canção O paese mio, a canção de Bari, não será a afirmação de um sentimento universal? (entre nós, sobre a problematica da saudade, vejam-se os escritos do coimbrão Joaquim de Carvalho, passando pelo eterno Leonardo Coimbra ou pelo sempre actual Agostinho da Silva, o Homem que tinha saudades do futuro...) Todos sonhamos com a pátria (leia-se, terra de origem) e apenas nela encontraremos a felicidade.*
Visconti, para além de cineasta, filósofo e erudito, era um telúrico, o que demonstra, para além de qualquer dúvida razoável, que Visconti é o cineasta Universal.
Visconti é, sem margem para dúvidas, o cineasta supremo.
*Dúvida metodológico-existencial: será a "saudade" um sentimento meramente luso, ou terá correspondência noutras línguas? Carolina de Micahäeilis, por exemplo, apontava a raiz, rectius, como congénere da palavra o germânico Sehnsucht...Questão polémica, portanto. Eis uma dúvida que fica em aberto!

terça-feira, abril 18

La vie c'était l'écran

François Truffaut, cineasta e cinéfilo
A vida era o écran e nele François Truffaut habituou-nos a por toda a sua emoção, todo o seu amor, toda a sua grande admiração quer pelo Homem quer pelo Cinema. Com uma subtileza e uma elegância unanimemente reconhecidas, o cinema de Truffaut é o cinema de qualquer um de nós: amores, temores, receios, o medo da solidão, a vertigem da vida...
Um Cinema onde nos podemos encontrar e reencontrar, tal como o próprio Truffaut encontrou o seu caminho e o seu lugar. Após uma infância e uma adolescência agitadas, tendo mesmo abraçado a pequena delinquência, François veio a ser adoptado por André Bazin e pôde dar asas a todo o seu amor pela Vida que é o seu cinema.
Um cinema marcado pela sua profunda humanidade. Desde o inocente Doinel até ao enternecedor Victor, o Menino Selvagem que mais não é do que a metáfora do "Eu" perdido num Mundo estranho e agreste, passando pelo voraz Bertrand, o homem que gostava de mulheres, teremos a oportunidade de ver um desfile de personagens credíveis e, acima de tudo, capazes de se reflectir em todos nós, nos nossos hábitos, nos nossos jeitos...
Um cinema que abre as portas para o Mundo e para todos nós, do mesmo modo que Doinel abre a janela do seu quarto em Paris. Uma janela que nos dá um novo Mundo e toda uma nova perspectiva sobre o Mundo que nos rodeia. E da mesma forma que Paris irrompeu pelo quarto de Doinel, foi toda uma lufada de ar fresco que chegou ao cinema.
Uma obra que, paradoxalmente, prima pela sua geometria inexorável. Mau grado Truffaut ser de uma precisão milimétrica na construção dos seus filmes, será sempre essa crença nos outros a prevalecer. Daí que não seja descabido afirmarmos que estamos perante um cinema poético.
Veja-se, a título de exemplo, o paradigmático La nuit américaine, homenagem maior à arte de fazer cinema e afirmação, sobre a forma de filme, do cinema de Truffaut. Filme-síntese (e filme-manifesto!) onde topamos o rigor de um brilhante mise-en-abyme a par das desventuras pessoais dos vários personagens. Um filme em três dimensões (a vida "real" das personagens, as cenas gravadas do filme e a projecção dessas cenas) que têm como ponto unificador o amor ao Cinema.
Lembre-se que o realizador (protagonizado pelo próprio Truffaut), em criança, furta as imagens de Citizen Kane, fugindo com elas rua fora. E é esse o fascínio que o cinema exerceu sobre Truffaut (agora o autor) e que este, inexoravelmente, faz com que abata sobre os nossos espíritos. Para bem dele e, acima de tudo, para nós, que a cada filme, a cada plano, a cada frame, descobrimos o Cinema em estado puro. Nele veremos as várias perpectivas pelas quais um filme pode ser visto: a do actor, do produtor, dos técnicos, do realizador e do espectador, que não deixa de ser chamado para o enredo.
Truffaut buscou no Cinema e nos seus filmes o seu porto de abrigo, do mesmo modo que todos nós procuramos outros portos e outras paragens nos filmes que vemos e amamos. Um amor levado ao extremo, mas que não obstou a homenagem a outros géneros, desde o policial negro (La mariée était en noir, uma homenagem subliminar a Alfred Hitchcock), passando pela ficção científica (o perturbador Farenheit 451) ou pelo filme de época (Jules et Jim ou Les deux anglaises et le continent). Uma verdadeira lição de humildade, provando que não há géneros maiores ou menores. Apenas filmes.
E, a propósito desta última vertente, saliente-se que uma das regras de ouro da Nouvelle Vague consistia em não fazer filmes de época. Truffaut, deliberada e conscientemente, rompeu o cânone que ajudou a erigir, mostrando que o filme de época pode ser o retrato da contemporaneidade. Afinal de contas, não será Jules et Jim, de certo modo, um retrato (ideal) do modus vivendi da juventude francesa dos anos 60?
Do mesmo modo que a Vida era o écran, ficará sempre a pergunta para o espectador: estará o Cinema acima da Vida? Ou é a vida quem prevalece sobre o Cinema?

quinta-feira, abril 13

O Evangelho segundo Pasolini

Enrique Irazoqui em Il Vangelo secondo Matteo
Pier Paolo Pasolini nunca deixou de afirmar a sua posição política vincada. Na verdade, o cineasta brindou-nos, numa fase inicial da sua filmografia, com a continuação da sua obra literária: em filmes como Accatone ou Mama Roma deparamos com o universo dos borgate e dos ragazzi di vita. Os subúrbios de Roma e os marginais que neles habitam foram o pretexto para Pasolini lançar um libelo acusatório contra toda uma sociedade, fazendo a apologia da ideologia marxista, erguendo o dedo acusador contra toda a sociedade italiana da época.
Perante este cenário, afigura-se algo peculiar, à primeira vista, que tenha enveredado pela adaptação do Evangelho de São Mateus, para nos oferecer aquele que é designado como a mais bela adaptação da vida de Cristo: o belíssimo Il Vangelo secondo Matteo.
Convém não esquecer que estamos a falar de Pasolini e, talvez por isso, o Cristo que nos é apresentado (um enigmático Enrique Irazoqui) surge como uma figura misteriosa, envolta num manto preto que cobre o seu torso. Bem vistas as coisas, este manto mais não é do que um artifício para que sobressaia a sua mensagem. E aí lidaremos com um Cristo que abomina a propriedade, maldiz os ricos e, concomitantemente, assume-se agressivo e tenaz na consecução da sua missão (dir-se-ia que lidamos com uma espécia de revolucionário...). Acima de tudo um Cristo em vestes humanas e não em tons míticos ou divinos como é tipico do filme bíblico.
E não deixa de ser essa a imagem que fica. Na verdade, o recurso a um cenário frugal e despido de opulência, leva a que o espectador se concentre no olhar penetrante e desconcertante de Cristo, o mesmo que disparará de forma seca um "Pai Nosso" e discursará para todos o que o querem ouvir. Mas Il Vangelo é muito mais do que isso. Il Vangelo é poesia em estado puro (veja-se a corrida de Judas ao encontro da Morte ou olhar lancinante de Maria ao ver o filho na Cruz), uma poesia que não prima pela cenografia, mas sim pela palavra (lembre-se que Pasolini era um poeta ilustre).
E é a palavra que sobressai. Fazendo uso dum corpo de actores amadores, Pasolini primou por dar prevalência à mensagem, sendo que a história de Cristo será um mero pretexto para mensagem, rectius, tema do filme. Com a devida vénia cito o próprio Pasolini: "Podereis ter desmistificado a situação histórica real, as relações entre Pilatos e Herodes, poderes ter desmistificado a figura de Cristo do Romantismo e do catolicismos, poderes ter desmistificado tudo, mas, então, como podereis ter desmistificado o problema da Morte? O problema que não posso desmistificar é aquele de profundamente irracional e, de certo modo, religioso, que está no mistério do Mundo. Aquele não é desmistificável..."
Bem vistas as coisas, Il Vangelo secondo Matteo tem no seu cerne o absurdo da existência e o fim último: a Morte. Julgáramos ter visto um filme meridianamente linear e, de repente, é o próprio Pasolini quem nos tira das mãos o mapa da sua compreensão, levando a que o Mito de Sísifo (brilhantemente descrito por Albert Camus) surja nas nossas cabeças, adensando as dúvidas e as incertezas sobre o que vimos no écran e o que vivemos no dia-a-dia.
Pasolini enveredou pelo caminhocerto. Ao não seguir o caminho fácil da encenação operática (veja-se Jesus de Nazaré de Franco Zefirelli) ou da violência gratuita (A paixão de Cristo de Mel Gibson), primando pela simplicidade e seguindo de forma canina o Evangelho de São Mateus. Bem vistas as coisas, Pasolini apenas não seguiu a máxima da simplicidade num único pormenor: a grandeza enquanto filme de Il Vangelo Secondo Matteo.
Post Scriptum - apenas outro filme logrou mostrar esta faceta humana de Cristo: The last temptation of Christ de Martin Scorsese, mas tal deve-se à fiel adaptação da obra homónima do escritor grego Nikos Kazantzakis, que transformou Cristo no Super-Homem de Nietzche.

terça-feira, abril 11

Ad provocationem IV

Sergio Leone e David Lean padeciam de um síndrome similar: o filme seguinte tinha sempre de ser maior e mais espectacular.

Ad provocationem III

Sergio Leone, tal como Luchino Visconti, faz filme operáticos. Acontece que Leone conta melhor uma história, id est com mais ritmo.

sábado, abril 8

Interpretações memoráveis II

Em plano de destaque, Jeanne Moreau em Jules et Jim

Após ver Jules et Jim de François Truffaut, resulta impossível não ficar marcado pela sensacional perormance de Jeanne Moreau (Catherine). Se houvesse que fazer algum resumo desta interpretação (bem como da personagem), certamente seria este, constante da belíssima chanson Le tourbillon de la vie, que faz parte da banda sonora do filme:

"Elle avait des bagues à chaque doigt,
Des tas de bracelets autour des poignets,
Et puis elle chantait avec une voix
Qui, sitôt, m'enjôla.

Elle avait des yeux, des yeux d'opale,
Qui me fascinaient, qui me fascinaient.
Y avait l'ovale de son visage pâle
De femme fatale qui m'fut fatale (...)"
Georges Bassiak
Afinal de contas, foi graças a Catherine que conhecemos a vertigem da vida. Só isso já merece todos os elogios possíveis.

quinta-feira, abril 6

As pequenas grandes coisas

Audrey Tautou em Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain

Falar de Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain não é uma tarefa fácil, pois equivale a falar da vida de todos nós: o medo da solidão, o impulso para ajudar os outros, a beleza da amizade, a alegria do amor...
Amélie Poulain (sensacional Audrey Tautou) é uma jovem empregada de mesa de um café parisiense que, devido a um mero acaso, acaba por decidir ajudar todos aqueles que a rodeiam. Produto de um lar monoparental em que ó único contacto com o pai apenas se dá uma vez por ano (para que o pai faça exames médicos de rotina), desde cedo, Amélie se viu votada a viver num mundo próprio, hermeticamente fechado, onde projecta as suas fantasias e os seus anseios. Uma vez chegada à idade adulta, acaba por decidir ir para a grande Urbe, viver a sua própria vida.
Tendo como base esta história simples, Jean-Pierre Jeunet (co-realizador do delicioso Delicatessen) dá-nos uma fábula da vida moderna, pondo a nu muitos dos problemas da vida em sociedade, tendo como grande mérito lembrar-nos que, lá bem no fundo, apenas as pequenas grandes coisas é que valem a pena (como, por exemplo, atirar pedras num pequeno lago). Num Mundo que paira entre o fantástico, o imaginário e o cru real, convivemos com várias personagens e as suas inúmeras obsessões: o homem de vidro, o namorado ciumento, o merceeiro desonesto e cruel, o empregado trapalhão, o escritor falhado...
Como ponto em comum de todas estas curiosas personagens temos Amélie. A jovem que sob uma aparente veste de anjo (ou, caso prefiram, justiceira) não se coibirá em castigar o merceeiro Collignon. Um castigo que terá o seu toque de sadismo: Amélie tem prazer em castigá-lo. Bem vistas as coisas, nada há de peculiar neste ponto, uma vez que Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain não é um tratado moral nem se assume como tal. Bem pelo contrário, é um tratado sobre a humanidade, com tudo o que esta tem de bom e mau.
Indo mais longe, dir-se-á que esta é uma fábula dos tempos modernos, onde cada uma das personagens mais não é do que um estereótipo de muitas das pessoas com que cada um de nós lida diariamente. Basta ver que, mau grado as inúmeras pessoas que rodeiam cada personagem, cada uma dessas pessoas é uma ilha. Se é certo que nenhum homem é uma ilha, Jeunet parece contradizer essa máxima, mostrando a grande dificuldade que cada um tem em comunicar com o próximo.
E é aí que reside a mestria de Jeunet. Apesar da aparente leveza e ligeireza da obra, Jeunet tem a virtualidade de nos fazer redescobrir uma das mais antigas e importantes máximas: carpe diem. Há que viver. Paralelamente, não deixamos de encontraruma crítica velada à moderna vida em sociedade: a dificuldade de comunicação, a sofreguidão da necessidade de comunicar... basta ver a enorme dificuldade que Amélie terá para, finalmente, chegar à fala, tête-à-tête, com Nino (Mathieu Kassovitz). E, uma vez chegados ao fim, eis o recordar de uma lição quase esquecida: o Amor é a chave da felicidade.
Aliás, não deixa de ser curioso vermos num simples aparelho de TV a projecção da própria vida das personagens. A suprema das ironias: será o aparelho que ocupou o lugar de principal companhia de muitos a lembrar que há vida para além das quatro paredes de uma casa. Bastará, apenas, a coragem de atravessar o umbral da porta.
E tudo isto é feito ao som dolente de uma banda sonora genial, da autoria de Yann Tiersen. Uma banda sonora que se cola na perfeição ao sentir das personagens e à sucessão de planos que passam defronte do espectador. Uma banda sonora que é capaz de nos fazer passar num ápice da alegria à tristeza. E, já que falamos da banda sonora, bem se poderia dizer que o filme se poderia resumir à belíssima La valse d'Amélie.
Na verdade, Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain mais não é do que uma valsa vertiginosa onde convivemos com uma das mais belas demonstrações de humanidade dos últimos anos.

segunda-feira, abril 3

Interpretações memoráveis I


Al Pacino refere-se-lhe como "a mais poética das actrizes" e apenas um filme bastaria para apoiar essa afirmação: "Doctor Zhivago" (1965) de David Lean, onde podemos ver uma Julie Christie simplesmente perfeita no papel de Larissa Fiodorovna, a Lara que apaixonou meio Mundo.
Incarnando brilhantemente o papel de musa de Zhivago, veremos o evoluir de uma inocente liceal até uma mulher adulta, que será enfermeira em tempos de guerra, bem como bibliotecária. O olhar penetrante, a face expressiva e a modulação de voz fazem com que Christie tenha uma performance inesquecível, num papel carregado de sensualidade (contrabalançando com o tom idílico de Zhivago), ocupando, deste modo, o lugar central que Lara tem (e merece!) na obra homónima de Boris Pasternak.
Inesquecível.