terça-feira, abril 18

La vie c'était l'écran

François Truffaut, cineasta e cinéfilo
A vida era o écran e nele François Truffaut habituou-nos a por toda a sua emoção, todo o seu amor, toda a sua grande admiração quer pelo Homem quer pelo Cinema. Com uma subtileza e uma elegância unanimemente reconhecidas, o cinema de Truffaut é o cinema de qualquer um de nós: amores, temores, receios, o medo da solidão, a vertigem da vida...
Um Cinema onde nos podemos encontrar e reencontrar, tal como o próprio Truffaut encontrou o seu caminho e o seu lugar. Após uma infância e uma adolescência agitadas, tendo mesmo abraçado a pequena delinquência, François veio a ser adoptado por André Bazin e pôde dar asas a todo o seu amor pela Vida que é o seu cinema.
Um cinema marcado pela sua profunda humanidade. Desde o inocente Doinel até ao enternecedor Victor, o Menino Selvagem que mais não é do que a metáfora do "Eu" perdido num Mundo estranho e agreste, passando pelo voraz Bertrand, o homem que gostava de mulheres, teremos a oportunidade de ver um desfile de personagens credíveis e, acima de tudo, capazes de se reflectir em todos nós, nos nossos hábitos, nos nossos jeitos...
Um cinema que abre as portas para o Mundo e para todos nós, do mesmo modo que Doinel abre a janela do seu quarto em Paris. Uma janela que nos dá um novo Mundo e toda uma nova perspectiva sobre o Mundo que nos rodeia. E da mesma forma que Paris irrompeu pelo quarto de Doinel, foi toda uma lufada de ar fresco que chegou ao cinema.
Uma obra que, paradoxalmente, prima pela sua geometria inexorável. Mau grado Truffaut ser de uma precisão milimétrica na construção dos seus filmes, será sempre essa crença nos outros a prevalecer. Daí que não seja descabido afirmarmos que estamos perante um cinema poético.
Veja-se, a título de exemplo, o paradigmático La nuit américaine, homenagem maior à arte de fazer cinema e afirmação, sobre a forma de filme, do cinema de Truffaut. Filme-síntese (e filme-manifesto!) onde topamos o rigor de um brilhante mise-en-abyme a par das desventuras pessoais dos vários personagens. Um filme em três dimensões (a vida "real" das personagens, as cenas gravadas do filme e a projecção dessas cenas) que têm como ponto unificador o amor ao Cinema.
Lembre-se que o realizador (protagonizado pelo próprio Truffaut), em criança, furta as imagens de Citizen Kane, fugindo com elas rua fora. E é esse o fascínio que o cinema exerceu sobre Truffaut (agora o autor) e que este, inexoravelmente, faz com que abata sobre os nossos espíritos. Para bem dele e, acima de tudo, para nós, que a cada filme, a cada plano, a cada frame, descobrimos o Cinema em estado puro. Nele veremos as várias perpectivas pelas quais um filme pode ser visto: a do actor, do produtor, dos técnicos, do realizador e do espectador, que não deixa de ser chamado para o enredo.
Truffaut buscou no Cinema e nos seus filmes o seu porto de abrigo, do mesmo modo que todos nós procuramos outros portos e outras paragens nos filmes que vemos e amamos. Um amor levado ao extremo, mas que não obstou a homenagem a outros géneros, desde o policial negro (La mariée était en noir, uma homenagem subliminar a Alfred Hitchcock), passando pela ficção científica (o perturbador Farenheit 451) ou pelo filme de época (Jules et Jim ou Les deux anglaises et le continent). Uma verdadeira lição de humildade, provando que não há géneros maiores ou menores. Apenas filmes.
E, a propósito desta última vertente, saliente-se que uma das regras de ouro da Nouvelle Vague consistia em não fazer filmes de época. Truffaut, deliberada e conscientemente, rompeu o cânone que ajudou a erigir, mostrando que o filme de época pode ser o retrato da contemporaneidade. Afinal de contas, não será Jules et Jim, de certo modo, um retrato (ideal) do modus vivendi da juventude francesa dos anos 60?
Do mesmo modo que a Vida era o écran, ficará sempre a pergunta para o espectador: estará o Cinema acima da Vida? Ou é a vida quem prevalece sobre o Cinema?

4 Comments:

Blogger Ricardo said...

A beleza descomplexada deste texto incita-me a sair momentaneamente do meu "retiro", para escrever umas parcas palavras. O Truffaut era assim mesmo como disseste, sem tirar nem por. Duvido que haja muitas pessoas que escrevam sobre ele, tão bem como tu.

Em relação ao último parágrafo, podiamos ficar horas a discutir, ainda hoje não cheguei a uma resposta concludente. Nestes últimos tempos, tenho andado "zangado" com o cinema, mas também, já não é a primeira vez que tal me acontece.

Um grande abraço Alves e continua a dar-lhe forte.

12:05 da manhã  
Blogger Hugo said...

Ricardo, é sempre bom ver que abandonaste (provisoriamente?) o teu retiro. :)

E sim, a última frase dá pano para mangas. Acho que a síntese/solução/caminho a seguir estará, uma vez mais, no Truffaut: "la vie c'était l'écran". A vida é o écran. Acrescento eu: o écran é a vida...de certo modo, é a outra face da moeda da máxima do Jean-Luc Godard: "Cinema é a verdade 24 vezes por segundo".

Aquele abraço!

12:10 da manhã  
Blogger Miguel Domingues said...

Oi, pesoal:

Tejo, quando quiseres Truffaut, e se ainda usares cassetes, diz, que eu não tolero que alguém que trabalha comigo não conheça tão grande cineasta. :) LOL

Tão grande cineasta que, a meu ver, não foi assim tão uniforme quanto isso, devido precisamente à sua uniformidade.

Passo a explicar:

a teoria autoral pressupõe um universo constante, que se aprofunda a cada filme. Mas, no caso de Truffaut, esse aprofundar conduziu, nos filmes finais, a um progressivo afastamento da vitalidade e da relevãncia que caracterizou todo o inicio da sua obra. Por outras palavras, quem disser mal de toda a tetralogia de Antoine Doinel, de Jules et Jim, de La Peu Douce, de La Marièe Était en Noir, de Fahrenheit 451,de La Nuit Americaine e de La Femme d'à coté (isto dos que eu vi), será decerto parvo ou ignorante (é mesmo assim, são obras-primas ou, na pior das hipóteses, grandes filmes de imensa pulsão humana). No meu caso pessoal, é-me dificil ver grandes méritos em Le Dernier Metro, Une Belle Fille Comme Moi ou Vivement Dimanche, filmes de alguém preso em si mesmo e que, pior de tudo, não tenta sequer sair. Estarei a ser parvo?

Cumprimentos,
Miguel Domingues

1:34 da manhã  
Blogger Hugo said...

Eu também tenho essa dificuldade Miguel.

O único elemento unificador, para mim, será o tom humano e poético (nisto Truffaut é ímpar e só mesmo Renoir estará a este nível). De qualquer modo, tal como qualquer grande realizador (excepção feita a Visconti, que foi de uma constância assombrosa) teve os seus pontos menos conseguidos.

Apesar disso, será sempre o "meu" Truffaut, protótipo do cineasta e do cinéfilo, bem como do Ser Humano inexcedível.

Abraço!

3:21 da manhã  

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