quinta-feira, abril 13

O Evangelho segundo Pasolini

Enrique Irazoqui em Il Vangelo secondo Matteo
Pier Paolo Pasolini nunca deixou de afirmar a sua posição política vincada. Na verdade, o cineasta brindou-nos, numa fase inicial da sua filmografia, com a continuação da sua obra literária: em filmes como Accatone ou Mama Roma deparamos com o universo dos borgate e dos ragazzi di vita. Os subúrbios de Roma e os marginais que neles habitam foram o pretexto para Pasolini lançar um libelo acusatório contra toda uma sociedade, fazendo a apologia da ideologia marxista, erguendo o dedo acusador contra toda a sociedade italiana da época.
Perante este cenário, afigura-se algo peculiar, à primeira vista, que tenha enveredado pela adaptação do Evangelho de São Mateus, para nos oferecer aquele que é designado como a mais bela adaptação da vida de Cristo: o belíssimo Il Vangelo secondo Matteo.
Convém não esquecer que estamos a falar de Pasolini e, talvez por isso, o Cristo que nos é apresentado (um enigmático Enrique Irazoqui) surge como uma figura misteriosa, envolta num manto preto que cobre o seu torso. Bem vistas as coisas, este manto mais não é do que um artifício para que sobressaia a sua mensagem. E aí lidaremos com um Cristo que abomina a propriedade, maldiz os ricos e, concomitantemente, assume-se agressivo e tenaz na consecução da sua missão (dir-se-ia que lidamos com uma espécia de revolucionário...). Acima de tudo um Cristo em vestes humanas e não em tons míticos ou divinos como é tipico do filme bíblico.
E não deixa de ser essa a imagem que fica. Na verdade, o recurso a um cenário frugal e despido de opulência, leva a que o espectador se concentre no olhar penetrante e desconcertante de Cristo, o mesmo que disparará de forma seca um "Pai Nosso" e discursará para todos o que o querem ouvir. Mas Il Vangelo é muito mais do que isso. Il Vangelo é poesia em estado puro (veja-se a corrida de Judas ao encontro da Morte ou olhar lancinante de Maria ao ver o filho na Cruz), uma poesia que não prima pela cenografia, mas sim pela palavra (lembre-se que Pasolini era um poeta ilustre).
E é a palavra que sobressai. Fazendo uso dum corpo de actores amadores, Pasolini primou por dar prevalência à mensagem, sendo que a história de Cristo será um mero pretexto para mensagem, rectius, tema do filme. Com a devida vénia cito o próprio Pasolini: "Podereis ter desmistificado a situação histórica real, as relações entre Pilatos e Herodes, poderes ter desmistificado a figura de Cristo do Romantismo e do catolicismos, poderes ter desmistificado tudo, mas, então, como podereis ter desmistificado o problema da Morte? O problema que não posso desmistificar é aquele de profundamente irracional e, de certo modo, religioso, que está no mistério do Mundo. Aquele não é desmistificável..."
Bem vistas as coisas, Il Vangelo secondo Matteo tem no seu cerne o absurdo da existência e o fim último: a Morte. Julgáramos ter visto um filme meridianamente linear e, de repente, é o próprio Pasolini quem nos tira das mãos o mapa da sua compreensão, levando a que o Mito de Sísifo (brilhantemente descrito por Albert Camus) surja nas nossas cabeças, adensando as dúvidas e as incertezas sobre o que vimos no écran e o que vivemos no dia-a-dia.
Pasolini enveredou pelo caminhocerto. Ao não seguir o caminho fácil da encenação operática (veja-se Jesus de Nazaré de Franco Zefirelli) ou da violência gratuita (A paixão de Cristo de Mel Gibson), primando pela simplicidade e seguindo de forma canina o Evangelho de São Mateus. Bem vistas as coisas, Pasolini apenas não seguiu a máxima da simplicidade num único pormenor: a grandeza enquanto filme de Il Vangelo Secondo Matteo.
Post Scriptum - apenas outro filme logrou mostrar esta faceta humana de Cristo: The last temptation of Christ de Martin Scorsese, mas tal deve-se à fiel adaptação da obra homónima do escritor grego Nikos Kazantzakis, que transformou Cristo no Super-Homem de Nietzche.

2 Comments:

Blogger o terceiro homem said...

É mesmo poesia em estado puro. Do melhor que Pasolini nos deu.

4:47 da tarde  
Blogger Hugo said...

É mesmo. Eu devo confessar que sou um grande adepto do Pasolini "inicial": "Accatone", "Mama Roma" estão nas minhas predilecções a par do (alegadamente!) vulnerável "Uccellacci e uccellini" :)
Il Vangelo é dos poucos filmes que me trazem paz espiritual. A esse nível, apenas outro filme é capaz de me deixar nesse estado: "The river" de Jean Renoir.

Saudações cinéfilas!

10:09 da tarde  

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