domingo, abril 30

Função social do Cinema?


Antes do mais, devo começar por lançar um aviso à navegação: penso que tudo deve cumprir uma função social.
Se é certo que Kant dizia que apenas é belo o que é inútil, julgo que mesmo a Arte, maxime o Cinema, deve cumprir um papel social. Precisando um pouco mais, direi que deve estar ideologicamente empenhada ou, melhor ainda, humanamente empenhada. Daí que seja adepto da estética neo-realista, uma vez que, a par de uma marcada conotação ideológica, os seus defensores/sequazes visam, acima de tudo, reflectir sobre a condição humana e é aí que radica o cerne da sua estética.
Trata-se de um aspecto que é desvalorizado, pois é mais fácil criticar o empenhamento político de determinado determinado cineasta (à cabeça, Visconti, passando por Bertolucci, Pasolini ou Rossellini), em vez de olhar com a devida atenção para a mensagem que nos quer transmitir.
Com efeito, os exemplos arquetípicos do neo-realismo (Roma cittá apperta de Rossellini, por exemplo), a par de mostrarem que o Homem é Lobo do Homem (naquilo que mais não é do que a aplicação do Leviathan de Hobbes), também procuram mostrar que é com base na solidariedade e na amizade entre os homens que o futuro poderá ser uma realidade mais "suave".
E é precisamente esta solidariedade que nos permite fazer a ponte para outros autores. Veja-se, por exemplo, a crença constante de Jean Renoir na Humanidade e no Homem, que nem mesmo em tempo de Guerra deixa de nutrir simpatia pelo seu semelhante. Acaso haverá exemplo melhor do que a viúva alemã que dá guarida aos soldados franceses foragidos, no belíssimo La grande ilusion? Aliás, é também esta a crença na Humanidade que nos permitiria chamar à colação a obra do genial François Truffaut...
Bem vistas as coisas, a tão apregoada função social (leia-se, empenhamento político), a par do empenhamento ideológico, lá bem no fundo, mais não é do que a crença no Homem. Rectius, mais não são do que um exemplo de devoção ao Cinema.
Aliás, é comum afirmar-se que a segunda geração italiana (Pasolini, Bertolucci, Irmãos Tavianni) distinguia-se da Nouvelle Vague, devido à falta de empenhamento político desta. Salvo o devido respeito, acho que é um exagero. Ambas as correntes são movidas pelo grande Amor ao Cinema. Acaso será menos "cinéfilo" um filme de Bertolucci, sempre pejado de citações e referências a outros autores, do que um filme de Godard? Julgo que não. Qualquer um dos autores limita-se a utilizar de formas diferentes um meio comunicacional semelhante.
Chegados aqui, cumpre fazer uma conclusão provisória: todo e qualquer filme deve ser movido pelo Amor ao Cinema. Sempre que se procura acentuar o tom político de um filme, oblitera-se algo. Esse algo mais não é do que o facto de o Cinema, no seu cerne, procurar contar histórias de pessoas através de imagens. E, neste particular, todos os filmes tem um radical semelhante.
Há que dar toda a razão a Charlie Chaplin quando dizia que um homem morre quando deixa de amar. Com as devidas alterações, poderemos aplicar o mesmo ao cinema: o cineasta (e o cinéfilo) morrem quando deixam de gostar de Cinema.
E, assim, encontrámos o critério que nos permite colocar, num plano semelhante, La nuit américaine de Truffaut, Le mépris, de Godard, Persona, de Bergman, Otto e mezzo de Fellini ou Nuovo Cinema Paradiso de Tornattore. São declarações de amor ao Cinema e, de certo modo, funcionam como síntese daquilo que o Cinema pode e deve ser: uma ilusão, a verdade 24 vezes por segundo...enfim: o manto diáfano da fantasia que cobre a nudez forte da Verdade e nos leva a interrogar sobre quem somos e para onde vamos.

10 Comments:

Blogger Portalegrense said...

É um gosto ler os seus textos. Subscrevo inteiramente o seu ponto de vista.Abraço

12:16 da manhã  
Blogger Hugo said...

Ora, por quem sois. Muito obrigado pelas palavras tão simpáticas :)

Abraço!

12:27 da manhã  
Blogger Tiago Barra said...

Mais um excelente texto colocado no melhor blog de Cinema português !
O Cinema tem um desiderato coloquial, o de particularizarmos, o mais das vezes, impulsos próprios(por vezes até mesmo os obscenos - salvé «Salò o le centoventi giornate di sodoma» - Pasolini).

Concluiria, concordando com a função sociabilizante que o cinema desempenha, sem embargo de considerar mais forte a sua produção na esfera pessoal de cada um dos indíviduos que amam a 7ª arte...

2:45 da manhã  
Blogger Hugo said...

Melhor blog de Cinema português? Agradeço tão elogiosas palavras, declinando-as. Chega a ser caso para dizer: "olhe que não! olhe que não!"

Aquele abraço!

12:06 da manhã  
Blogger Apolo said...

Pode até nem ser o melhor, mas figura certamente nos melhores.

Grande abraço!

3:26 da tarde  
Blogger Hugo said...

Conforme se diria num célebre poema: "Caminente, hazte al camino, caminando"...

Falta tanto para que este estaminé figure onde o insistem em incluir.. ;)

3:32 da tarde  
Blogger Carolina Amaral said...

Imagino com função social do cinema algo que envolva de forma mais participativa a sociedade, sempre penso nesse tema. Acredito que o cinema possa dar novos rumos, como tem aqui no Brasil o nós no cinema, do Morro do Vidigal, que leva moradores da comunidade para fazer cinema.
Acredito nessa função mais que social, quiçá socializadora do cinema, e realmente me emociono com isso.
Mas ver Truffaut também deixa qualquer pessoa mais humana, e por isso bons filmes sempre desempenham uma função social.

2:17 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

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12:37 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

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8:50 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

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5:16 da tarde  

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