terça-feira, abril 25

A primazia do dever

Os Sete Samurais. Em plano de destaque Toshirô Mifune

Ver Shichinin no samurai ("Os sete samurais") de Akira Kurosawa é fazer uma viagem ao mais profundo do Ser Humano.
Tendo como ponto de partida uma aldeia acossada por um grupo de foras-da-lei, teremos a oportunidade de, durante quase 4 horas, ver um verdadeiro tratado sobre a dialéctica honra-dever, qual tese e antítese Hegeliana. Mas Kurosawa, Mestre japonês que nos ofereceu pérolas da Sétima Arte como Rashomon, Yojimbo ou Cão Danado, não esgota a temática do filme no seu leit motiv. Efectivamente, num momento inicial somos apresentados a Kabei (esplendoroso Takashi Shimura), o samurai que, para salvar uma criança, rapará o seu cabelo com o intuito de se disfarçar de padre. E será este o tom sacrificial que marcará todo o filme. Na verdade, Kabei acabará por aceitar a tarefa de recrutar samurais para salvar a aldeia apenas porque os camponeses lhe oferecem a mais valiosa das ofertas: arroz. A mais valiosa, porque é tudo o que têm e ningúém pode ficar alheio a tão sentido sacríficio.
E não deixará de ser curioso verificar o desenvolvimento da empatia entre os habitantes da aldeia e os camponeses. Se, inicialmente, todos se refugiam do grupo de ronin, progressivamente, vão criando laços de amizade com todos os elementos do grupo. Para que tal suceda, é sobremaneira importante a conduta de de Kikuchyio (brilhante Toshirô Mifune), também ele um camponês, que incitará todos os elementos da aldeia a que se rebelem contra os opressores.
Eis-nos, então, subliminarmente, perante um dos temas fortes do filme: a rebelião contra a tradição social. Basta lembrar que Kikuchyio não nasceu samurai. Pelo contrário, também ele é camponês e, a punho, logrou alcançar o seu sonho. E será essa preserverança o motivo que levará a que Kikuchyio, inicialmente, zombe dos camponeses e acabe por simpatizar com eles quando estes decidem revoltar-se.
Cumpre fazer um breve parêntese: boa parte do filme é dominado pela tese de que as classes sociais (leia-se, camponeses e samurais) não se podem misturar. Apesar desta linha de força, veremos os camponeses a acabar por recorrer a samurais, apenas porque não têm como fazer face aos bandidos. De certo modo, temos uma afirmação da parte de Kurosawa que parece apontar para o facto de o Homem, em tempos difíceis, abandonar a mais forte das convicções. Dir-se-ia, portanto, estamos perante uma decisão utilitarista, na linha de Bentham.
Mas esta imutabilidade será sempre posta em causa. Com efeito, confrontamo-nos, por um lado, com a revolta contra a própria natureza (sempre latente em todas as deixas de Kikuchyio), e, também, acabaremos por ver o amor proibido entre Katsuhiro (Isao Kimura) e uma das jovens da aldeia. Pese embora o tom idílico em que esta história se desenvolve, Kurosawa não deixará de nos brindar com a sua fina ironia: afinal, a aldeã que caiu em tentação é a filha do camponês que sempre se preocupou com o facto de os samurais, alegadamente, quererem violentar as mulheres da aldeia...
E se, no fim, os camponeses acabam por vencer, não deixa de ser sintomática a última frase de Kabei, contemplando os camponeses no seu regresso à normalidade: Não fomos nós quem ganhou. Foram os camponeses. Nós perdemos sempre. De facto, todo o filme, mau grado as inúmeras mortes, não é um filme sobre violência. É um filme sobre a noção de dever e sobre a função social de cada um. Aliás, não deixa de ser curioso o facto de Kabei, o Samurai que sempre se mostrou mais distante perante todos os acontecimentos, a fazer tão fria análise da realidade.
Kurosawa, sempre operático, oferece-nos um filme mágico, repleto de momentos inesquecíveis. Um deles será o ritual de enterro dos samurais mortos em combate. Enterrados num monte, isolado e distante, sempre omnipresente na mente dos que vão combater. E será sempre o silêncio de cada visita ao monte que nos lembra, com um verdadeiro murro no estômago, da nossa finitude e, acima de tudo, da desnecessidade do combate e da estupidez da morte. Nem mesmo o mais forte dos deveres é capaz de a justificar.
Uma vez mais, é o tom de sacrifício que regressa. Os samurais, pese embora a morte dos seus companheiros, não se queixam, dado que cumpriram, estoicamente, a sua tarefa. Já os camponeses, uma vez eliminada a opressão, não querem os samurais por perto. Subliminarmente, temos Kurosawa a dar-nos uma crítica velada à sociedade que o envolve, mormente ao seu imutabilismo. Apesar disso, temos um elemento perturbador: Katsuhito. Se, inicialmente, o vemos com os samurais sobreviventes, acabará por se juntar à sua amada, abraçando a vida do campo...
Afinal de contas, estará Kabei certo? Será que nós perdemos sempre ?
Post Scriptum - a influência deste filme foi tante que John Sturges adaptou Os sete samurais num western famoso: The magnificent seven, que conta com Yul Brynner, Steve McQueen, Eli Walach, James Coburn e Charles Bronson no elenco.

2 Comments:

Blogger Francisco Mendes said...

É um dos primeiros filmes que a minha memória cinéfila evoca. A sua premissa pode ser reduzido a uma simples frase, mas a execução magistral de realização e envolvência cinematográfica é memorável. A composição de Kurosawa é sublime utilizando a técnica de "Profunda Focagem", captando a atenção do espectador para este Épico Emocional e Humano.

Tal como muito bem indicas, este filme teve um remake de John Sturges, mas há outros exemplos na filmografia de Kurosawa: "The Outrage" de Martin Ritt é baseado em "Rashomon" e principalmente "Per un pugno di dollari", no qual o talento incontornável de Sergio Leone reinventa "Yojimbo".

8:51 da tarde  
Blogger Hugo said...

Sim, o grande Sergio Leone a adaptar "Yojimbo" é absolutamente magistral.

O que me deixa sempre decepcionado com o remake do Sturges é tom hollywoodiano. Um elenco daqueles tinha de ser muito melhor aproveitado. Ok. O enredo não ajuda muito (Kikuchyio é diluído pelos 7 magníficos...)

Mas Kurosawa é, deveras, inigualável. Tudo o que é emoção humana está no filme, tal como tudo o que é cinema: desde a profunda focagem, como alguns belíssimos close-ups ou um belíssimo slow motion (quando Kabei, disfarçado de padre, mata o raptor da criança), que viria a ser adaptado inúmeras vezes por inúmeros autores orientais. Takeshi Kitano por exemplo...

E é essa capacidade de servir como fonte de inspiração que marca a genialidade do cineasta. Acho eu!

Saudações cinéfilas!

9:01 da tarde  

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