quinta-feira, abril 6

As pequenas grandes coisas

Audrey Tautou em Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain

Falar de Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain não é uma tarefa fácil, pois equivale a falar da vida de todos nós: o medo da solidão, o impulso para ajudar os outros, a beleza da amizade, a alegria do amor...
Amélie Poulain (sensacional Audrey Tautou) é uma jovem empregada de mesa de um café parisiense que, devido a um mero acaso, acaba por decidir ajudar todos aqueles que a rodeiam. Produto de um lar monoparental em que ó único contacto com o pai apenas se dá uma vez por ano (para que o pai faça exames médicos de rotina), desde cedo, Amélie se viu votada a viver num mundo próprio, hermeticamente fechado, onde projecta as suas fantasias e os seus anseios. Uma vez chegada à idade adulta, acaba por decidir ir para a grande Urbe, viver a sua própria vida.
Tendo como base esta história simples, Jean-Pierre Jeunet (co-realizador do delicioso Delicatessen) dá-nos uma fábula da vida moderna, pondo a nu muitos dos problemas da vida em sociedade, tendo como grande mérito lembrar-nos que, lá bem no fundo, apenas as pequenas grandes coisas é que valem a pena (como, por exemplo, atirar pedras num pequeno lago). Num Mundo que paira entre o fantástico, o imaginário e o cru real, convivemos com várias personagens e as suas inúmeras obsessões: o homem de vidro, o namorado ciumento, o merceeiro desonesto e cruel, o empregado trapalhão, o escritor falhado...
Como ponto em comum de todas estas curiosas personagens temos Amélie. A jovem que sob uma aparente veste de anjo (ou, caso prefiram, justiceira) não se coibirá em castigar o merceeiro Collignon. Um castigo que terá o seu toque de sadismo: Amélie tem prazer em castigá-lo. Bem vistas as coisas, nada há de peculiar neste ponto, uma vez que Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain não é um tratado moral nem se assume como tal. Bem pelo contrário, é um tratado sobre a humanidade, com tudo o que esta tem de bom e mau.
Indo mais longe, dir-se-á que esta é uma fábula dos tempos modernos, onde cada uma das personagens mais não é do que um estereótipo de muitas das pessoas com que cada um de nós lida diariamente. Basta ver que, mau grado as inúmeras pessoas que rodeiam cada personagem, cada uma dessas pessoas é uma ilha. Se é certo que nenhum homem é uma ilha, Jeunet parece contradizer essa máxima, mostrando a grande dificuldade que cada um tem em comunicar com o próximo.
E é aí que reside a mestria de Jeunet. Apesar da aparente leveza e ligeireza da obra, Jeunet tem a virtualidade de nos fazer redescobrir uma das mais antigas e importantes máximas: carpe diem. Há que viver. Paralelamente, não deixamos de encontraruma crítica velada à moderna vida em sociedade: a dificuldade de comunicação, a sofreguidão da necessidade de comunicar... basta ver a enorme dificuldade que Amélie terá para, finalmente, chegar à fala, tête-à-tête, com Nino (Mathieu Kassovitz). E, uma vez chegados ao fim, eis o recordar de uma lição quase esquecida: o Amor é a chave da felicidade.
Aliás, não deixa de ser curioso vermos num simples aparelho de TV a projecção da própria vida das personagens. A suprema das ironias: será o aparelho que ocupou o lugar de principal companhia de muitos a lembrar que há vida para além das quatro paredes de uma casa. Bastará, apenas, a coragem de atravessar o umbral da porta.
E tudo isto é feito ao som dolente de uma banda sonora genial, da autoria de Yann Tiersen. Uma banda sonora que se cola na perfeição ao sentir das personagens e à sucessão de planos que passam defronte do espectador. Uma banda sonora que é capaz de nos fazer passar num ápice da alegria à tristeza. E, já que falamos da banda sonora, bem se poderia dizer que o filme se poderia resumir à belíssima La valse d'Amélie.
Na verdade, Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain mais não é do que uma valsa vertiginosa onde convivemos com uma das mais belas demonstrações de humanidade dos últimos anos.

2 Comments:

Blogger Tiago Barra said...

Um filme que me agradou particularmente.
Esta surpresa com que Jean Pierre Jeunet nos brindou na 2ª metade do ano de 2001 serviu de válvula de escape para os meses tensos do pós 11 de Setembro.
Contra muito do que se tem dito sobre "Le Fabuleux Destin D'Amélie Poulain", não creio que a tagline tenha um necessário resvalamento para o sentimental e o patético. Pelo contrário, é um conto de fadas fantástico e idealizado que nos afasta dos horrores do Mundo real.
Por vezes, é mais importante o modo como as pessoas se afectam umas às outras do que propriamente o Mundo em que elas vivem...

Saudações cinéfilas,
TB

6:42 da tarde  
Blogger Hugo said...

Salvo o devido respeito, acho que ligar Amélie ao 11 de Setembro é algo assaz rebuscado. Acresce, também, que mais do que conto de fadas, "le fabulex destin d'Amélie Poulain" é uma fábula sobre a vida moderna e, conforme foi devidamente assinalado, nada tem de patético. Bem pelo contrário, é estranhante real e isso sim é perturbador.

Bela, tocante, cómica, triste...mas uma fábula onde até nos esquecemos, rectius, passamos por cima de pormenores algo surreais, como é o caso das cores fortes da casa da própria Amélie. Nesta obra ficam bem. Noutra qualquer seriam alvo de crítica severa.

Saudações!

6:52 da tarde  

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