Finalmente visto!
Não o do título da imagem, esse Santo Graal como lhe chama o Rosenbaum, mas sim a versão curta de cerca de quatro horas e meia. Inenarrável, misterioso, intrigante: Out 1: spectre.
Não o do título da imagem, esse Santo Graal como lhe chama o Rosenbaum, mas sim a versão curta de cerca de quatro horas e meia. Inenarrável, misterioso, intrigante: Out 1: spectre.
Rivette é, já se sabe, um cineasta singular em cujas obras o tempo é um elemento fundamental, furtando-se à economia narrativa convencional. Ne touchez pas la hache não é excepção, já que o constante jogo de sedução e de mal-entendidos fará com que as personagens principais cheguem sempre tarde a algo e, assim, contribuam para gravar a sensação da sua passagem em quem vê. Aliás, será esse próprio tempo a ditar o andamento das várias danças dos bailes onde a Duquesa e Montriveau se passeiam.
Em Ne touchez pas la hache* Rivette põe-se, ainda, perante o clássico problema da adaptação de livros. Todavia, ao invés do que é comum nestes momentos, o cineasta francês opta por uma adaptação fiel, não se coibindo de exibir intertítulos com excertos da obra que, simultaneamente, marcam as fronteiras temporais da acção. Uma mise-en-scène rigorosa, cheia de elementos que nos lembram uma realidade tão cara a Rivette: o teatro (à cabeça, as cortinas que abrem e fecham), cedendo o lugar a outra cena. Acontece que, sendo um filme de época, não somos confrontados com o clássico fausto cénico, já que é dada preferência à intensidade das emoções, já que esta é a história amarga da sedução e confronto de uma duquesa manipuladora e um general obstinado (Jeanne Balibar e Guillaume Dépardieu, respectivamente, que assinam duas interpretações notáveis).
Uma obra belíssima, onde para além de reencontrarmos a magia, a musicalidade e a beleza do francês de Balzac, topamos com a rigorosíssima mise-en-scène de Rivette: veja-se, por exemplo, o contraste da luminosidade que acompanha sempre a Duquesa de Langeais e da sombra rodeando Montriveau, facto que rima com os respectivos discursos. Aliás, e já que até temos intertítulos, poderíamos dizer, de forma redutora claro, que Ne touchez pas la hache é um complexo jogo de luz e sombras, mas tal seria abusivo, já que há muito pormenor que deve ser tido em consideração. Portas, por exemplo.
*espera-se, para bem do público, que tenha direito a distribuição em salas normais. Rivette, do alto dos seus 80 anos, continua em grande forma.
1 - Não há regras: o Cinema é uma forma aberta.
2- Não te deixes apanhar pelos imbecis: as pessoas que financiam os filmes, que os distribuem, que asseguram a sua promoção ou exploração comercial não são cineastas.
3 - A produção deve estar ao serviço do filme
4 - Fazer um filme é um processo colectivo: se não queres colaborar com outras pessoas, vai antes pintar um quadro ou escrever um livro.
5 - Nada é original
Destas regras de outro*, a número 5 é a mais interessante e, simultaneamente, a que melhor define Jarmush, aluno de Ray e adepto confesso de Ozu e Bresson. O seu Cinema é o equílibrio perfeito da modernidade, da tentativa de experimentação e, simultaneamente, o equilíbrio da linguagem formal (clássica?) do Cinema. É algo que se movimenta neste frágil equílibrio, num limbo instável, capaz de conjugar referências óbvias às obras maiores do Cinema e ao movimento punk. Tal como nos filmes do seu Mestre, topamos com vencidos, inadaptados, mas aqui sobressai a quietude, a tristeza e, sobretudo, a complacência. Mais importante, esta regras, formuladas de forma tão seca e simples, tal como o Cinema que corporizam, são depuradas, despidas do excesso. Concentram-se no essencial e, fazendo-o, escondem uma complexidade quase inesgotável, aspecto que distingue um grande realizador de um vulgar tarefeiro ou de um fanfarrão que faça "filmes".
*adaptadas e, sobretudo, simplificadas (cortou-se, propositadamente, a explanação das mesmas, salvo nos casos identificados (regra n.º 1, 2 e 4).
O meu amigo Miguel bem me dizia que o filme de Mungiu era potente, mas, após o visionamento, confesso que as expectativas saíram ultrapassadas em larga medida.
Chamem-lhe Nova Vaga*, mas, acima de tudo, ponham-lhe o substantivo certo: Cinema. Sirva de exemplo 4 luni, 3 saptamani si 2 zile, de Cristian Mungiu, cineasta que neste filme consegue conjugar a austeridade do mise-en-scène com o uso eficaz e inteligente da handycam, permitindo entrar, perdão, sentir a personagem que acompanha. Mais do que um retrato sociológico ou a denúncia de um regime extinto ou mesmo uma tomada de posição sobre a questão do aborto, é um filme sobre a clandestinidade e os seus códigos. Afinal, a saga das duas amigas que se vêm com um aborto nas mãos é uma viagem aos meandros do bas fonds romeno, enquanto, simultaneamente, se vai pondo a tónica nas fracas condições de vida, no mercado negro, et cetera.
Seco. Frontal e directo, não se coibindo, sequer, de nos poupar a ver a prova do aborto que serve de motivo ao filme. Em claro contraste com a secura do estilo, rimando, também, com a austeridade do mundo das amigas Otília e Gabita, fica a intensidade das emoções. Um realismo cru, permeado de momentos a roçar o surreal - como a negociação do preço do aborto - sem nunca cair no exagero. In one word: emotion, como dizia Fuller.
* Será Vaga, porque, cronologicamente, irrompe num período muito próximo, já que, tanto quanto o escriba sabe, não é um movimento dotado de conteúdo programático. Em qualquer caso, uma visão de conjunto de outras obras permitirá avaliar melhor esta faceta