sábado, fevereiro 16

O machado de Rivette

Rivette é, já se sabe, um cineasta singular em cujas obras o tempo é um elemento fundamental, furtando-se à economia narrativa convencional. Ne touchez pas la hache não é excepção, já que o constante jogo de sedução e de mal-entendidos fará com que as personagens principais cheguem sempre tarde a algo e, assim, contribuam para gravar a sensação da sua passagem em quem vê. Aliás, será esse próprio tempo a ditar o andamento das várias danças dos bailes onde a Duquesa e Montriveau se passeiam.

Em Ne touchez pas la hache* Rivette põe-se, ainda, perante o clássico problema da adaptação de livros. Todavia, ao invés do que é comum nestes momentos, o cineasta francês opta por uma adaptação fiel, não se coibindo de exibir intertítulos com excertos da obra que, simultaneamente, marcam as fronteiras temporais da acção. Uma mise-en-scène rigorosa, cheia de elementos que nos lembram uma realidade tão cara a Rivette: o teatro (à cabeça, as cortinas que abrem e fecham), cedendo o lugar a outra cena. Acontece que, sendo um filme de época, não somos confrontados com o clássico fausto cénico, já que é dada preferência à intensidade das emoções, já que esta é a história amarga da sedução e confronto de uma duquesa manipuladora e um general obstinado (Jeanne Balibar e Guillaume Dépardieu, respectivamente, que assinam duas interpretações notáveis).

Uma obra belíssima, onde para além de reencontrarmos a magia, a musicalidade e a beleza do francês de Balzac, topamos com a rigorosíssima mise-en-scène de Rivette: veja-se, por exemplo, o contraste da luminosidade que acompanha sempre a Duquesa de Langeais e da sombra rodeando Montriveau, facto que rima com os respectivos discursos. Aliás, e já que até temos intertítulos, poderíamos dizer, de forma redutora claro, que Ne touchez pas la hache é um complexo jogo de luz e sombras, mas tal seria abusivo, já que há muito pormenor que deve ser tido em consideração. Portas, por exemplo.

*espera-se, para bem do público, que tenha direito a distribuição em salas normais. Rivette, do alto dos seus 80 anos, continua em grande forma.