Se há coisa que deixa qualquer cinéfilo intelectualmente honesto à beira de um ataque de nervos, é uma situação relativamente comum que se resume, no essencial, ao seguinte:
Caio, rapaz minimamente interessado pela causa, afirma conhecer a obra dos clássicos de Hollywood, John Ford incluído. Acto contínuo, Tício que, por sinal, gosta muito de Ford, animado pelas perspectivas de uma conversa interessante, larga perguntas em catadupa sobre obras-charneira, como The Searchers ou Stagecoach. Silêncio. Caio, o neófito interessado, não viu nada de Ford. Confundiu ver com a leitura catálogos, rectius Folhas da Cinemateca dedicadas ao realizador de My darling Clementine sem sequer ter curado de ver os filmes em questão.
Entendamo-nos fazendo uso de simples tópicos:
i) O Cinema, rectius o cultivo do seu gosto e da vontade de descobrir o que se faz à luz do que se fez, valorizando a dimensão histórica da Arte em si, é, no fundo, um acto contínuo de educação do olhar, de molde a criar uma mundividência própria, projectada no real, tendo por base as imagens projectadas no écran*;
ii) O Cinema assenta, principalmente, nas imagens projectadas. Um exemplo extremo: até uma obra em tons de cinzento (César Monteiro dixit) como Branca de Neve obriga à projecção de imagens. No caso, obriga à associação mental das palavras que ouvimos e que acabam por nos obrigar a construir o nosso filme mentalmente;
iii) Acontece que neste fenómeno, contrariamente ao da simples leitura de apreciações críticas sobre a obra de determinados cineastas ou de alguns filmes em particular, processa-se aquando da própria projecção do filme. É um exercício do e para o próprio espectador.
iv) Não se nega aqui a leitura de textos sobre Cinema. Pelo contrário, critica-se apenas a leitura antecipada dos mesmos, já que, inelutavelmente, tal conduta vicia o espectador e, sobretudo, leva a que já vá com uma ideia pré-formada do filme que vai ver (o clássico problema da Vorverständnis, vulgo pré-compreensão). Logo, não vê, necessariamente, pelos seus olhos, mas sim pelos olhos de quem escreveu o texto lido.
v) Um comportamento salutar e mentalmente honesto implica ler depois de ver. Só assim nasce a possibilidade de divergência/concordância pura com a opinião alheia. De preferência fazendo uso de um discurso articulado e com a fundamentação mínima (leia-se, racionalmente defensável, apesar de, em último grau, poder não se concordar com a opinião expendida).
vi) Curiosamente, o ponto v) supra tem inerente a recusa do modelo de Bazin (apresentação-visionamento-discussão), em nome da construção de uma opinião própria (e o mais livre possível) a propósito da interpretação de um filme visto.
* não criticar, por favor, esta absolutização do Cinema ínsita no último período. O escriba de serviço preza-a muito.