sábado, dezembro 8

O Reino Maravilhoso*


Serras ao longe, uma voz ecoando pelos cumes. Vemos um travelling pelas rochas escarpadas, finalizando nuns sinais antigos, pré-históricos e, de súbito, uma criança acariciada pela câmara de António Reis e Margarida Cordeiro, enquanto conduz um rebanho. Eis o início de Trás-os-Montes. Será esta paisagem que vemos que, lentamente, será apresentada de forma profunda ao longo de quase duas horas. Sera esta, passe a expressão, a viagem ao princípio do Mundo, visto pelos olhos de uma criança
Mais do que uma evocação nostálgica das serranias e das suas gentes, mais do que um retrato da vida no reino maravilhoso, Trás-os-Montes funciona como uma recolha de histórias, fragmentos de narrativas que se vão encadeando, misturando real e ficção num objecto de catalogação impossível, onde o real parece transformar-se num sonho. Efectivamente, o carinho com que os cineastas retratam as gentes transmontanas e o facto de sermos conduzidos por crianças, acabam por nos sugerir que estamos perante uma uma fábula sobre a vida em sociedade e as relações humanas.
Mas não só: Trás-os-Montes é também a evocação dos tempos idos em que todo o saber é transmitido oralmente e se vai aprendendo por mimetismo. Talvez seja este o único fio condutor da obra, a par da paisagem rude e agreste, que esculpe rostos e hábitos quotidianos. Em Trás-os-Montes não há tristeza nem sequer conformismo. Apenas o quotidiano e o prazer no desempenho de tarefas domésticas. Daí o seu sensualismo e, também, a evocação nostálgica de um modo de vida verdadeiro, isto é, puro, onde apenas há lugar para companheirismo e solidariedade: o reino dos Homens Bons, os mesmo que se reunem da Domus de Bragança e vão contemplando a paisagem que os rodeia e modela.
Um grito solto pelo silvar de um combóio. Eis o fim deste sonho. Algures pelo amanhecer, as nuvens de fumo do combóio confudem-se com o nevoeiro e as próprias nuvens que habitam os céus. Mais do que um fim, a continuação do sonho, da vontade de resistir a um modo de vida comandado pela desconfiança e pela velocidade vertiginosa. Carpe diem.
Venham os adjectivos (poético, mágico, sensual...), a catalogação (documentário, estudo antropológico, ficção surrealizante...), venha tudo isso, que Trás-os-Montes continuará impassível enquanto obra única e singular, pronta a enfeitiçar o espectador: é um objecto resistente, que luta contra o esquecimento de valores fundamentais, enquanto pugna igualmente por uma forma "pura" de fazer Cinema.
* o facto de gostar de Miguel Torga e ser transmontano de gema não têm muito a ver com estas linhas. Sobre António Reis, é favor consultar o essencial blogue: António Reis