domingo, outubro 8

Na guerra não se chora nem se adormece

Ana Moreira em Transe

Teresa Villaverde já nos tinha habituado a um realismo cru, onde não há lugar para filtros de qualquer espécie. Se Os mutantes fora uma pedrada no charco onde se afirmou a pedra-de-toque do cinema da realizadora: a capacidade de pegar numa dada matéria social, nos seus habitantes e de colocá-la no écran, Transe acaba por ser o retomar dessa premissa, superando-a.
Em Transe, viagem demencial ao Inferno da prostituição e ao lado mais negro e vil do ser humano, Teresa Villaverde dá um passo em frente, apesar de retomar o estilo de Os mutantes. Está lá toda a violência, o mais das vezes tornada abstracta, seja no rosto petrificado e lívido de Sonia (uma sensacional Ana Moreira), seja na projecção num qualquer objecto, também lidamos com uma personagem que mais não é do que um estrangeiro na sua própria terra: Sonia. É nessa incapacidade de fixação, na falência da possibilidade de se considerar pertencente a um grupo que começa o caminho para a perdição, com o abandono da Rússia natal.
Cada vez mais despojada de si e do seu eu, Sonia acabará por guardar apenas o nome, não o revelando aos acompanhantes de ocasião. O nome é, pois, o último reduto da dignidade, começo da personalidade, funcionando como o último refúgio de uma criatura que fez uma viagem ao fim da noite. Com efeito, tal como nas obras de Céline, Sonia vê-se no centro de uma realidade demencial, abjecta, suja e ladeada pela malvadez.
Esta é a história de Sonia. De mais ninguém. O título já o indiciava: transe, ou seja, o estado em que um indivíduo, privado da sua personalidade, actua como se um espírito estranho se tivesse substituído a ele. Teresa Villaverde conduz, assim, um brilhante exercício de depuração: à medida que Sonia vai cedendo e perdendo as marcas do seu eu, também o espaço fica mais reduzido. Até se chegar ao barracão, a última morada, onde Sonia acabará prostrada na cama. Fechada num espaço exíguo, o que não impede a quase fusão com a alucinação que nos acompanha desde o início. A final, apenas sobram ruínas e escombros.
Entre o real e o sonhado, Transe é uma experiência ímpar, onde a violência carnal do inferno de Sonia está em contraste perfeito com os belos planos onde a Natureza é chamada a desempenhar papel preponderante. Entre o real e o sonhado, eis o estado intermédio em que Transe coloca o espectador, que se vê num mundo de trevas, onde os corpos que se vão movimentando mais não são do que espectros do que foram outrora.
De certa forma, é algo paralelo ao que se passa em Der Letzte Mann, onde o confiante porteiro acabou por perecer, esquecido, numa casa-de-banho. Também Sonia caiu esquecida, longe de tudo e de todos.

12 Comments:

Blogger José Oliveira said...

...supera "os mutantes", passo em frente?...estou cada vez mais curioso, e a ligação a Murnau é deveras corajosa...estou também interessado em ver como é que a teresa captou um certo espirito do cinema russo, entre a rudeza e o sonho, o abstrato, já que ela tambem tem formação russa, etc...o Manuel barros falou-me de um espirito Tarkovsky no filme...não sei se queres comentar...

12:16 da manhã  
Blogger Hugo said...

Posso tentar: sim, há ambiência russa por lá (e não é, só, por se falar russo). Dá ares de Tarkovsky e de Sokurov. Na forma como faz a ponte entre aquele inferno que se vai abatendo, progressivamente sobre Sonia, despojando-a, até culminar no barracão em que ela apenas tem o seu nome que guarda para si. É o tempo que vai passando nesse hiato e deixa marcas bem vivas.

E pelo meio há toda a capacidade de Villaverde para colocar os planos mais abstractos - sobretudo aqueles em que vemos árvores e um, impressionante, onde vemos o quebrar do gelo à passagem de um barco - que, para além de sintetizarem na perfeição estados de espírito, projectam-nos na natureza, fazendo a tal ponte entre real e onírico, tal como o faz aquele rapazola que abre e fecha o filme (sabes o que é um iceberg?, pergunta ele. É curioso como esse bloco de gelo pode definir, a dada altura, a Sonia). Mais, a própria noção de tempo faz-se sentir de forma intensa. É um filme contemplativo, a mesma contemplação de Sonia que fita o horizonte gelado à margem de um rio. E ela contempla tudo, incapaz de fazer frente àquilo que lida...se em Tarkovsky vemos muitas casas em ruínas, aqui essas ruínas são humanas e chega a ser confrangedora a forma como se movimentam e contemplam tudo com olhar vítreo. É de causar calafrios e suores frios.

Mas isto digo eu que, confesso, fiquei sedento de outro visionamento para assentar um bocado melhor as ideias. Mas que é bom, lá isso não há dúvidas.

O Murnau é só porque, tal como no Der letzte Mann, há alguém que acaba sozinho, longe de tudo (para mim, o "epílogo" que plantaram no Murnau nunca contou).

Quanto ao superar "os mutantes", é afirmação de puro gosto pessoal. Talvez seja porque a maturidade da Ana Moreira enquanto actriz vem ao de cima e enche a tela do princípio ao fim. Soberba! Ou talvez seja porque faz esquecer um filme menos conseguido: "água e sal"...

Desculpa as ideias mais ou menos soltas. É do adiantado da hora. Sou insomne, mas a idade começa a não perdoar :-)

2:12 da manhã  
Blogger gonn1000 said...

Não sendo um mau filme, creio que poderia ter sido bem melhor. Ana Moreira é excelente (mais uma vez), mas o filme é menos conseguido no argumento, cujas sequências oníricas não me convenceram muito (sobretudo as do desenlace). Também dispensava certas cenas demasiado longas que apenas fazem com que o ritmo nem sempre envolva.

3:32 da tarde  
Blogger Hugo said...

Gonn1000: "apesar de não ser um mau filme"?? Depois de teres enfiado como "Saraband" como um dos piores de 2005, esta frase faz-me pensar sobre a tua cinefilia...

Por acaso não viste a influência russa (tarkovsky, sokurov) que vai pelo filme? Se calhar esses planos longos que referes até têm uma explicação aí...

4:14 da tarde  
Blogger gonn1000 said...

Hum, então agora há um modelo de cinefilia a seguir?? Claro, que horror admitir a subjectividade na arte...

Não vi, uma vez que não conheço a obra de um nem do outro, mas e então? Esses planos foram lá colocados só para a realizadora comprovar que viu os filmes deles?

5:15 da tarde  
Blogger gonn1000 said...

Ah, e se eu estivesse preocupado com o que pensam acerca da minha "cinefilia", teria sido muito mais fácil colocar "Saraband" na minha lista de melhores do ano passado, mesmo não tendo gostado do filme, não te parece (e se calhar nem seria o primeiro a fazê-lo)?

5:23 da tarde  
Blogger Hugo said...

Não. Mas o fenómeno tem um nome: influência, citação cinéfila, et cetera...

É óbvio que não há um modelo de cinefilia a seguir. Mas, sabes, às vezes, antes de atirar com frases tão afirmativas, convém conhecer bastante bem a entourage que envolveu a obra, bem como as influências do autor... Mas isto é o que eu vou pregando por cá há uns meses: o Cinema é um produto histórico e, assim, acaba por recriar e reinventar momentos do passado...uma espécia de eterno retorno, à la Nietzsche, ou, se preferires, nos termos da recepção crítica de Jorge Luís Borges.

Tanto não há modelo de cinefilia a seguir, que já há quem advogue a morte da cinefilia. Digamos, pelo menos, que já não há cinefilia nos termos em havia aquando da explosão dos turcos dos Cahiers. Sinais dos tempos...

5:23 da tarde  
Blogger MPB said...

Não arrisco Murnau, mas sinto que repira Tarkovsky e Sokurov, isso sem duvida. De qualquer maneira é uma obra impressionante, embora por vezes me custe que se fale unicamente de realismo ou hiper-realismo, quando ele existe por si só, e possivelmente não há nada mais onirico que esta realidade em que a europa e a Russia vive. O novo filme de Villaverde até pode ser visto com algum realismo, mas este realismo não nasce por si só, nasce de uma observação metafísica. É complicado eu sinto, mas não é só realismo, porque isso existe desde o nascimento do cinema.

Cumps

6:01 da tarde  
Blogger Gustavo Jesus said...

"Influências aparte (das quais, por demérito cinéfilo meu, apenas reconheço em Villaverde, Tarkovsky), a verdade é que Transe abusa dos planos demorados e prolongados, como em geral todo o cinema português de autor.

E embora pessoalmente isso, na maioria dos casos, me agrade, é uma das principais causas para o público português andar de costas voltadas para o seu próprio cinema. Convém esquecer que esta obra estética é um filme, e não apenas um poema.

Quanto ao filme em si, de novo, concordo com a (boa) análise que fazes do mesmo, quer aqui quer no teu blog, mas permite-me apenas discordar quando dizes que Villaverde nos apresenta um filme "sem filtros". Se há coisa que Villaverde não faz é dar-nos algo puro, à Gus Van Sant, para que o digeramos nós. Apresenta-nos algo cujas impurezas poéticas foram retiradas, deixando-nos a sua realidade onírica e, perdoa-me o pleonasmo, poética, onde o que passou pela peneira foi, acima de tudo, a dor de Sónia." em http://criticaartistica.blogspot.com/2006/10/transe.html

Obrigado pelo comentário.

10:23 da tarde  
Blogger Hugo said...

Sem filtro, ou seja, não se coibindo de nos mostrar a faceta mais suja da Humanidade. Obviamente a violência - que tem uma fortíssima carga psicológica - sente-se e pressente-se. Muitas vezes não se vê.. :-)

Planos demorados. Pois. Eu também gosto. E muito. Mas, acho, o que importa não é o tempo, mas sim a capacidade de transmitir algo. E, nisso, Transe está muito bem.

Obrigado pela visita.

10:30 da tarde  
Blogger Daniel Pereira said...

Ainda venho a tempo?

Creio tratar-se de um filme desigual. Muitos, aqui, falaram do tempo - e muito bem - com que o filme se vai construindo. Porém, esse mesmo tempo não tem o trabalho devido, e que vimos durante os primeiros 90 minutos, no desenlace do filme - apressado e excessivamente demonstrativo do título quando já não era preciso.

Posto isto, estou apaixonado por Sonia.

12:59 da manhã  
Blogger Hugo said...

Mas quem não está apaixonado por Sonia? :-)

1:16 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home