segunda-feira, outubro 2

Duelo nos pântanos

Burl Ives e Christopher Plummer em Wind across the everglades

O Cinema de Nick Ray é o Cinema do(s) conflito(s) e de todos aqueles que, por algum motivo, vivem à margem da sociedade - veja-se, aqui, o retrato doce dos índios seminole, corporizados em Cory Osceola.
Sem fugir a esta trave mestra, Nicholas Ray assinou em 1958 uma das mais curiosas obras-primas da sua filmografia: Wind across the everglades. Com efeito, tendo como pano de fundo a Miami do princípio do século XX, Ray, sob as vestes de um filme ecologista avant la lettre, aproveita para delinear um breve estudo sobre as contradições da natureza humana. Colocando como contendores um caçador de aves (Burl Ives) e um jovem professor de Biologia (Christopher Plummer), teremos a oportunidade de ver o duelo surdo destes dois homens que, paradoxalmente, se odeiam e se admiram. Tendo como pano de fundo os sempre belos e perigosos Everglades, Nick Ray mostra-nos um caçador fero e temerário que sobrevive à custa da caça ilegal. Perante o seu pragmatismo, teremos todo o idealismo do jovem Professor que apenas quer aplicar a Lei a todo o custo.
Num Mundo em que não há lugar para um ente abstracto - como sucede com o comando geral e abstracto que a Lei é - veremos uma escalada progressiva da hostilidade, até chegarmos ao duelo final em que o caçador decide acompanhar o Professor até à cidade para ser julgado. Apenas imporá uma condição: remará, mas não indicará qual o caminho a seguir. Neste frente-a-frente obstinado, a teimosia do Professor, tal como a do Caçador, custará a vida a este útlimo. Será nessa altura que poderá contemplar as aves a voar, verificando, finalmente, toda a beleza que matava. Paralelamente, o Professor ficara triste, pois admirava este rival feroz.
Uma vez mais, Nicholas Ray dá-nos uma obra pejada de reviravoltas inesperadas e, simultaneamente, não temos um herói com que nos identifiquemos de imediato. Na verdade, se o idealismo do Professor merece simpatia, a sua obstinação que, em último grau, conduz à morte de muitos dos que o auxiliam, levam-nos a franzir o sobrolho. Em qualquer caso, salta à vista toda a mestria de Ray enquanto cineasta. Tal como em The lusty men, ficção e documentário interligam-se na perfeição, servindo o documentário para simbolizar tudo aquilo que vemos. Seja uma ave a levantar voo, seja uma víbora a aniquilar uma presa, seja uma luta entre crocodilos, tudo contribui para, mau grado partirmos do concreto, sermos conduzidos à abstracção do que se vê. Filme essencialmente simbólico, Wind across the everglades é (mais uma) obra-prima de Nicholas Ray. Como sempre o écran vibra de emoção e hipnotiza o espectador, sendo de salientar, também, o recurso à música tradicional para acentuar o tom documental do filme.
Mais importante, é flagrante o contraste entre o tom vivo das imagens documentais com o tom mais, digamos, apagado, da caracterização das personagens - maxime do caçador Cottonmouth. Um mero indício que a Morte pairava sobre elas e que acabaria por vingar. Convém não esquecer que no Cinema de Nicholas Ray, regra geral, todo o filme é um intenso pathos que culmina com a morte de alguém. Desta feita, que o vilão quer o aparente herói estão irmanados nesse pathos. O de Cottonmouth acaba com a Morte. O de Murdock continuará, com os remorsos por estar na origem da morte de Cottonmouth.

5 Comments:

Blogger Lis said...

Bom texto.

10:12 da manhã  
Blogger Ricardo said...

Um filme estranhíssimo. Não sei até que ponto o produtor (Schulberg) teve mão na montagem, de qualquer forma, o filme como está é mediano e claramente dos menos conseguidos de Nick Ray. O desenho das personagens é indefinido (o pai da rapariga confunde-se muitas vezes com o amigo); existem cenas insólitas/desnecessárias, como a da apresentação dos dois foragidos no acampamento de Cottonmouth; locais como os do bar não são aproveitados como podiam ter sido; e a falta de orçamento também se evidencia a todo o tempo. Demora algum tempo para vislumbrarmos as grandes cenas Rayanas, que chegam finalmente no último terço, rematadas com aquele gigantesco final do veneno no pulso que, por momentos, quase nos faz crer que este se poderia ter tornado um Bitter Victory ainda melhor.

10:26 da manhã  
Blogger C. said...

Também descobri este filme na cinemateca há uns anos. Achei-o muito estranho, longe dos Ray que conhecia na altura.

8:26 da tarde  
Blogger Hugo said...

Longe do típico Ray, mas muito perto do seu Universo. Para não variar, gostei. Muito.

8:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

eu até me sinto mal por verbalizar este pensamento mas foi o único filme do Ray que vi até hoje e que não me envolveu por inteiro... não é que não tenha gostado, mas falta lá qualquer coisa...

12:26 da manhã  

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