terça-feira, setembro 26

O último homem

Emil Jannings em Der letzte Mann
F.W. Murnau terá assinado um dos filmes mais venturosos de sempre com Sunrise, a song for two humans. Todavia, alguns anos antes, com o esplendoroso Der lezte Mann (literalmente, O último homem) de 1924 terá rubricado uma das obras mais pessimistas de que há memória.
Na verdade, ao retratar o porteiro confiante (brilhante Emil Jannings) de um Hotel luxuoso que acabará os seus dias a estender toalhas aos clientes que utilizam a casa-de-banho de um Hotel, Murnau acaba por mostrar, de forma crua, que toda e qualquer pessoa, a partir do momento em que a sua utilidade cessa, deve ser encostada a um canto, posta na prateleira. Enfim, deve ser afastada.
Obviamente, há muito mais para além desta mensagem básica, como é o caso da importância atribuída ao uniforme. O porteiro que, confiantemente passeava num bairro decrépito o seu uniforme luminoso e resplandecente, com a despromoção tudo fará para manter a farsa. O uniforme, símbolo de falsas aparências e convenções sociais fúteis acabará, assim, por ser o elo que manterá o decorrer da acção. Num Mundo agitado e célere como o do Hotel não há lugar para velhos ou menos ágeis. Dir-se-ia que Murnau retrata uma das aplicações da lei do mais forte nas sociedades modernas (o que, de certa forma, seria uma antevisão da triste realidade que a Alemanha viveria na década de 30 até 1945). Talvez, mas vai para além disso. Murnau, traça um retrato sarcástico do Homem cruel e insensível, mas, também, dos tontos que se fiam num qualquer símbolo de poder ou distinção, por mais insignificante que seja.
E, por isso, este último homem, morrendo sozinho numa casa-de-banho escura e abjecta representa, também, a morte do Mundo tal como existia à época. Basta ver que este porteiro pode ser considerado como uma das primeiras vítimas dos loucos anos 20. Onde havia felicidade, vida boémia e loucuras, passou a haver solidão, melancolia e morte.
Para além disto, até o facto de estarmos perante um filme mudo que não faz uso de intertítulos ou em que o jogo da câmara (lembre-se que o Kammerspiel reinava na Alemanha á época) faz maravilhas, poderiam passar-nos, ligeiramente, ao lado. Mas não devem. Sem se deixar acantonar em escolas ou correntes, Murnau assinou uma obra única e singular, onde o Kammerspiel, o expressionismo e a inovação tiveram a sua quota-parte.
Efectivamente, Der letzte Mann é (mais) uma demonstração da magnificência de Murnau enquanto cineasta. Obra menos conhecida, Der lezte Mann, contém, talvez, o primeiro plano da História do Cinema filmado de forma não estática (rezam as crónicas que a camâra foi colocada numa bicicleta que se passeou pelo Hotel). Trata-se da cena inicial, em que a câmara desce o elevador do Hotel e se faz passear pelos seus corredores. E assim tinhamos um indício que nos permite sondar os propósitos de Der letzte Mann: trata-se de um filme que aborda uma realidade que cai, que está moribunda e cujas feridas demorariam muitos anos a sarar.
O único intertítulo do filme - que cito de memória - dizia tudo: Hoje general, Primeiro-Ministro..E amanhã? Sabes o que farás amanhã? Der letzte Mann, mais do que um filme que nos dê certezas, é um filme que semeia a incerteza e a dúvida. Em nós, nos outros e no Mundo. Certezas, apenas uma: a Morte.