sexta-feira, outubro 6

A Dália Negra, o revisitar do Noir

Fotograma de The Black Dahlia
Antes do mais, cumpre salientar que, para tecer qualquer apreciação crítica acerca do valor de The Black Dahlia enquanto filme, urge pôr de lado quer os méritos do romance homónimo de James Ellroy quer a fidelidade desta adaptação ao romance em que se baseia.

Brian De Palma é um profundo conhecedor do sub-mundo do crime e admirador confesso do noir. Obras como Scarface, The untouchables ou Carlito’s way comprovam-no à saciedade. À partida, De Palma depara-se com uma tarefa de monta: adaptar um celebrado romance policial e revisitar uma das maiores lendas de Hollywood, o infame homicídio da Dália Negra. Pode-se dizer que De Palma logrou alcançar a empresa a que se propôs. E fê-lo com distinção.
Em The Black Dahlia, o espectador, ingressando nos bastidores da Hollywood da década de 1940, regressa, também, à ambiência do noir. Com efeito, De Palma, evoca imagens que povoam a nossa memória, como sejam a de vários indivíduos fechados numa sala com um cigarro nos lábios ou um grupo de polícias envoltos no vapor das ruas contemplando um cadáver, bem como dos clubes de jazz ou sessões de cinema em grandes salas.
Mais importante, De Palma, ao longo de cerca de duas horas, graças ao seu tradicional recurso a um narrador em off, vai-nos fazendo coleccionar os vários pormenores que permitirão deslindar a autoria do homicídio macabro. E, neste particular, o recurso à câmara subjectiva e à analepse revela-se sobremaneira eficaz, fazendo-nos atentar nos pormenores essenciais para resolver o mistério. Pelo meio, sempre com um ritmo apreciável e com a acção minuciosamente doseada, julgamos ter reencontrado uma arte em extinção nos tempos que correm: o travelling. Na verdade, ao longo de todo o filme, a câmara de De Palma parece pairar sobre Hollywood, fazendo-nos deslizar entre cenas, de plano para plano, graças a movimentos de câmara graciosos, preciosos e milimétricos.
Temos, assim, o contraste perfeito com a violência da jovem degolada, ou do fero combate entre o Senhor Fogo e o Senhor Gelo ou mesmo dos motins pelas ruas de Los Angeles. Fogo e Gelo. Duas personagens, mas também, duas marcas indeléveis desta obra, que corre entre o gelo, isto é, a precisão e mestria de De Palma e o fogo, a emoção que vai guiando Bleichert, seja na admiração por Blanchard, seja na atracção por Madeleine ou na paixão por Kay.
Obsessão. Eis uma palavra que resume na perfeição este filme. Quer porque permite descrever a importância da Dália Negra na vida dos detectives Blanchard e Bleichert, quer porque permite descrever a busca de perfeição a que De Palma se lançou. A mesma obsessão que permitirá um (quase) mise en abyme, graças à projecção dos filmes em que a Dália Negra entrou. Um espectro, um fantasma, a Dália Negra é, assim, uma densa névoa que se abate sobre todos, projectando-se no infinito e perpetuando-se na memória. Uma Dália negra, projectada no écran, evocada na memória colectiva e objecto de filme.
The Black Dahlia, filme visualmente esplendoroso, graficamente violento e assustadoramente hipnótico. São obras destas que mostram a vitalidade do Cinema e nos fazem acreditar quer no seu passado, quer no seu futuro. Porque revisita o noir, prestando-lhe homenagem, mas sem cair na subserviência.
E, desligando-nos da obra de Ellroy - e com isto volto ao princípio - podemos concluir que estamos perante uma obra ímpar, mau grado os pecados na adaptação do clássico moderno de Ellroy. Também este The Black Dahlia é um clássico moderno.

13 Comments:

Blogger Nuno Pires said...

Estás-me a dar muita vontade de o ver. Já estava curioso de ver a adaptação feita a partir Ellroy, mas agora estou ansioso por ver o que parece um grande De Palma (já ouve muitos, mas há muito tempo...).

12:49 da manhã  
Blogger Ricardo said...

Um grande filme! Desde Munique, de Spielberg que não via nada assim no cinema comercial. Um filme que puxa pela nossa cabeça, violento, gótico, e ao mesmo tempo uma crítica lacerante a Hollywood.

É chocante que a crítica americana perca tempo a desconsiderar a complexidade da história e as interpretações de Harnett e Johansson. Sempre houve dezenas de respeitáveis comentadores que declararam não terem entendido tudo em “The Big Sleep” e hoje consideram-na uma inquestionável obra-prima, quando toca a este não hesitam em fixá-lo como um simples "far-fetched nonsense" e passam adiante. Em relação a Johansson e Harnett, eles têm algumas limitações, é verdade, mas como diria o outro "não é uma grande interpretação que nos atinge, é apenas o cinema puro".

Não vão haver muitos críticos tugas que vão entender esta obra-prima low-key.

1:30 da manhã  
Blogger Lis said...

Amanhã vê-lo-ei.Já estava agendado.

3:44 da tarde  
Blogger MPB said...

Muito bem dito. Ainda estou em extase pelo que vi. Ja lancei algumas palavra muito a quente, mas espero para revisão para digerir o indigerível.

cumprimentos

8:33 da tarde  
Blogger Hugo said...

Muito obrigado. Em qualquer caso, acho que vai passar ao lado de muita gente. Motivos:

i) Incapacidade para separar A dália negra filme e a Dália negra livro;

ii) Ignorância da história. Quem não conhecer obras como Maltese falcon, the big sleep ou mesmo out of the past, não perceberá a revisitação que ali está.

iii) Desconhecimento da obra de De Palma. Tirando filmes charneira como The Untouchables, poucos conhecem a obra. E Carlito's way foi votado como o melhor filme da década de 1990 pelos Cahiers... OS Cahiers já não são o que eram, mas, mesmo assim...

Ne-to: aqui vai um desafio - extensível a todos, bem entendido - que tal começar a denunciar os generalistas especializados do Cinema?

9:45 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

o que tu escreves é o que eu gostaria de ter sentido ao ver o filme. infelizmente, notei-lhe uma falta de fogo e de paixão nesse noir que se queria total. é verdade que não li o livro, é verdade que conheço poucos filmes de De Palma. mas basta olhar para LA Confidential para ver Black Dahlia como um filme apenas bom e não como a obra-prima que podia ter sido...

12:29 da manhã  
Blogger José Oliveira said...

Muito bem dito: um livro é um livro, um filme é um filme, e De Palma é De Palma.

A Obsessão sempre moldou o universo De Palma...assim como o de Elroy, e se juntarmos tortura ao bolo o resultado teria de ser algo bastante forte.

Assim como o noir e os sinais que tu mencionas-te...de resto o pastiche e a revisitação nunca se deixaram cair na mumificação com De Palma, apesar das tangentes/homenagens ao universo Hitchcock, ou mesmo Lang (a ilusão das imagens, etc.), Kubrick, etc(cineasta cerebral)...De Palma sempre esteve envolto pela transcendência , pela reversão, ao seu universo, ao seu fetichismo...uma imagem desenbocava sempre noutra imagem...

E é isso que muita da critica americana não consegui ainda compreender...

O Travelling, sempre o travelling...é por isso que eu sempre penso que por um lado Godard é o oposto de De Palma, mas por outro não.

Amanhã, espero, digo o que penso deste Black dalia...

Cumprimentos

12:41 da manhã  
Blogger Hugo said...

Isto não é só concordar, Helena.

Sendo assim, cá vai:

i) Ao LA Confidential falta a cinefilia deste Black Dahlia. Falta a lisura dos movimentos de câmara, a boa ligação do enredo (o desdobramento feito pelas várias personagens não é tão eficaz no grande écran como o é no livro). Neste filme de De Palma, os grandes clássicos estão lá. Basta ver bem.

ii) Mais, não é preciso ler o livro para apreciar o objecto filme. Eu, para o fazer, tive de por de lado o livro.

iii) No LA Confidential foi cortada a obsessão freudiana que está latente no romance. Aqui não, e isso ajudou a guiar o enredo.

iv) É normal o De Palma ser criticado. Mas, com o passar do tempo, as obras ganham consistência crítica. Carlito's way, esse grande filme, é um exemplo.

v) O Ricardo Martins tem razão. Pouca gente vai perceber a maravilha que este filme é

vi) E com isto acabo: o filme enquanto objecto é tão bom, que até nos esquecemos dos actores. Haverá sequências tão boas como a inicial ou como a do homícidio do Blanchard? Ou planos tão belos como a câmara subjectiva de Bleichert ou a câmara que fita os detectives na perspectiva do cadáver? Tudo isto são reinvenções de planos típicos do noir. Daí que este seja um clássico moderno.

12:48 da manhã  
Blogger Hugo said...

Caro Joseo, ora nem mais. Na mouche!

12:50 da manhã  
Blogger MPB said...

E aos poucos, por muito que se tente escrever algo de novo, vai ficando tudo dito em relação ao filme. Prontos já falaste em Freud, o travelling... ok fico sempre com o enquadramento e toda a complexidade icónica do filme.

Quanto ao desafio, não deixei de achar alguma piada, mas sou uma paz de alma... e embora conheça alguns (dentro e fora da internet) logo que não me aborreçam tudo bem.
Ok, existem alguns que me aborrecem, mas ainda existem alguns que me dão gosto de seguir. Por isso é tudo um mundo em simbiose, como o cinema, é preciso existir de tudo, felizmente ou infelizmente essa é a questao ;)

Cumprimentos

3:30 da manhã  
Blogger Hugo said...

Nunca fica tudo dito :-)

10:51 da manhã  
Blogger Joana C. said...

Gostei do muito do teu texto pois, mais uma vez, revela a tua enorme paixão pelo cinema.
Para ser sincera também não consegui ver neste filme muitas das coisas que tu viste. Achei um bom filme, sem dúvida, com interpretações à altura. Mas fiquei um pouco decepcionada, talvez por esperar muitíssimo mais do filme.

10:32 da tarde  
Blogger Hugo said...

Obrigado! :-)

Para dissipar dúvidas: se eu desse estrelas, este filme levava 4 (as 5 merecem muita ponderação). "esperavas mais". Aí é que está. Para analisar algo, tal como eu me desliguei do livro, também me desliguei de tudo o que foi dito antes acerca do filme e de De Palma. Mais do que paixão, o texto até saiu mais objectivo do que o normal.

Um senhor alemão (Gadamer, de seu nome, que seria secundado por Esser, no mundo do Direito) cunhou o conceito pré-compreensão (vorverständnis), ou seja, a ideia que já se leva aquando da interpretação de algo e que, consequentemente, a condiciona. O ideal é não ter nenhuma. Como isso é difícil, há que limitá-lo ao máximo. Foi o que tentei fazer. E sim. Este é mesmo um grande filme, independentemente do que se diga pelos EUA e do que digam muitos dos críticos de cá, que importaram o discurso...

Acho eu.

10:42 da tarde  

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