sexta-feira, maio 5

O deserto da Alma

Harry Dean Stanton em Paris, Texas

Perturbador, perturbante e obsessivo.
Paris, Texas é uma das mais desconcertantes viagens às profundezas da Alma Humana, espelho de memórias, oceano de incertezas e vazio de afectos. Algo que, logo desde o início se pode antever com as belíssimas panorâmicas do deserto texano, em perfeita simbiose com a simples e pungente banda sonora de Ry Cooder, fazem a ponte entre o verdadeiro deserto e a total ausência de memórias de Travis, viajante do deserto, fugitivo e peregrino à procura do seu Ser.
Incapaz de falar, Travis (sensacional Harry Dean Stanton), mau grado ser "redescoberto" pela família, procurará sempre a fuga em frente. A Humanidade perturba-o e, como tal, apenas lhe resta a estrada para o vazio.
De forma magistral, Wim Wenders, naquele que poderá ser definido como um excepcional exercício psicanalítico, fornece-nos, gradualmente, as chaves para o deslindar desse mistério. Um exercício em que a alienação será personagem principal. Desde o deserto do Texas, passando pela vastidão da paisagem durante as inúmeras viagens, teremos um dos mais perfeitos retratos da alienação social e emocional. Algo que é feito através da desconstrução do road movie clássico (de que Easy Rider também tinha sido exemplo de desconstrução) e do progressivo desenvolver de relacionamento humano de Travis.
A mesma alienação que, em paralelo com os sentimentos de Travis, veremos reflectida quer na paisagem, quer nos inúmeros planos de Houston onde podemos ver o deserto urbano: grafitis, grandes prédios, num ambiente que oprime e obsta ao relacionamento.

Natassja Kinski e Harry Dean Stanton em Paris, Texas

E aí temos um momento de verdadeira catarse. Travis encontra a ex-mulher, agora a trabalhar num peep show, e num momento agridoce explica o porquê do abandono do lar: amor obsessivo. Um amor que o levou a abandonar todos os empregos para estar com a mulher, que o levou a algemá-la, acorrentá-la, a ter ciúmes...até ter atingido a total ausência de sentimentos, momento em que abandona o lar, à procura do grande desconhecido, irmão gémeo da sua Alma.
Um relacionamento temporário, já que após a reencontro entre mãe (uma enigmática Natassja Kinski) e filho, Travis regressa ao grande vazio. E nunca deixará de ser curioso o facto de o pomo da discórdia e motivo para a separação (o filho do casal), anos mais tarde, ter impelido Travis a procurar a mulher, para a voltar a ligar ao filho.
Apenas ele, homem alienado e desprovido de sentimentos não terá lugar nesse quadro. E a consciência de que não tem lugar numa familia feliz é a mais dura das sentenças que alguém se pode auto-impor.
Travis não foi votado ao ostracismo. Ele próprio é que se desligou de tudo e de todos.

1 Comments:

Blogger Hugo said...

Sim! Um grande filme e um tratado sobre a alienação humana. Mesmo assim, continuo a gostar mais do "Der Himmel über Berlin"

11:58 da manhã  

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