A beleza do anacronismo aparente
Entre Jules et Jim e Les deux anglaises et le continent distam, apenas, 9 anos. Onde o primeiro foi uma obra marcante na afirmação da estética da nouvelle vague - onde, como sempre, a fotografia de Raoul Coutard faz maravilhas -, o segundo foi considerado, à época, como um filme absolutamente menor. Tendo em conta que ambas as obras mergulham no universo de Henri-Pierre Roché e, formalmente, se adoptou a leitura do texto (tal como em Jules et Jim), num belo exercício de cinema "literário", causa alguma estranheza o fracasso.
Ora, o passar dos tempos tem destas coisas e permite uma avaliação mais clara das coisas. Se em Jules et Jim teremos, porventura, o ocaso da audácia criativa de François Truffaut, Les deux anglaises et le continent marca a entrada numa nova fase da carreira do cineasta: a do Homem-Cinema, onde Truffaut quer transformar cada filme num espéctáculo grandioso.
Neste particular, Les deux anglaises et le continent é, talvez, a mais pictórica e gráfica das obras de Truffaut, fazendo com que cada plano, para além de recriar a ambiência de quadros impressionistas, é, também ele, uma súmula vertiginosa de sensações e de impressões. Mas esta é também uma obra gráfica. Do mesmo modo que a câmara vai descobrindo a forma dos corpos esculpidos por Rodin, será também a descoberta do corpo e do prazer. Ora, numa obra intimista e interiorizada, onde se destaca a sublime interpretação de Jean-Pierre Léaud, será essa descoberta o romper do colete de forças que dominam a mentalidade puritana da sociedade inglesa do princípio de século.
Este é o filme da distância, da aproximação e, consequentemente, do desejo e da sensualidade. Deste modo, é o contraponto perfeito de Jules et Jim. O turbilhão da vida e o elogio da amizade que conferiam uma certa ligeireza ao filme (apesar do tragédia que se antevia) é substituído aqui pela vitalidade e pela interiorização. Com efeito, por vezes tem-se a noção que as três personagens principais - Claude, Anne e Muriel - vivem com o ritmo de um livro. Ora, eis uma falsa pista: é esse tom de certo modo distanciado que permite que também o espectador possa colocar-se em condições de sopesar os vários contrastes que pululam no filme.
Trata-se, pois, de um filme de grande elaboração e, mais importante, um filme de total maturidade. Assim, não é por acaso que a última fala do filme seja a de um Claude, olhando para a sua imagem reflectida num vidro, exclamando: J'ai l'air vieux aujourd'hui. Uma obra-prima a descobrir.
Agora a explicação do fracasso comercial: por via de regra, os críticos concentraram-se no romantismo exacerbado da obra, bem como na fiel reconstrução de época, o que obnubilou aspectos essenciais, como a homenagem ao Cinema mudo e, também, a reflexão profunda sobre duas tradições diferentes: a insular e a continental. Mas, de certa forma, nada a que não se esteja habituado. É bem mais fácil criticar aspectos superficiais, em vez de procurar ir mais longe na análise da obra. Eis um tópico de reflexão...
4 Comments:
"É bem mais fácil criticar aspectos superficiais, em vez de procurar ir mais longe na análise da obra." - é bem verdade, é o que dá na maioria dos casos valer-se por uma mera sinopse, ou por simples valores figurativos...passou-se um bocadinho assim no ultimo filme do Shyamalan...olha-se para a superficie, ignora-se as camadas e a densidade, o âmago...
Quanto aos filmes em questão, são belos, absolutamente belos, Jules et Jim é um dos cumes do lírismo em cinema, colocando Truffaut no raro grupo de cineastas líricos - "ternura e a sensualidade" - do século anterior ao lado de um Rossellini, um Renoir, um Ophuls, Becker ou Garrel, segundo Carlos Melo Ferreira no seu livro dedicado a Truffaut...
Les deux anglaises et le continent é tudo o que tu disseste, mas acima de tudo cinema em estado fervilhante...
...e depois o facto do famoso triângulo amoroso que Truffaut inverte do 1º filme para 2º filme...
Grande Truffaut!
Exacto. Para mim foi ainda mais fervilhante porque vinha directo de Une femme douce do Bresson. Dois grandes filmes!
é uma obra-prima, na minha opinião só comparável na obra de Truffaut a 'os 400 golpes', 'Atirem sobre o pianista', 'Jule e Jim' e a 'Noite Americana'
Harry madox: ora nem mais. Mas há quem não pense assim: não estavam mais de 20-30 espectadores de mim na Cinemateca :(
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