A persistência da memória
Do mesmo modo que os relógios em Dalí têm formas fluidas e disformes, também neste brilhante filme de Bergman o tempo joga um papel decisivo. Um relógio sem ponteiros que aparece e inquieta Isak (fantástico Victor Sjöström) num pesadelo, o relógio que, a final, era de seu pai e lhe ficara gravado na memória. Os ponteiros que, apesar da ausência, lembramo a desnecessidade de marcar o tempo, da sua fluidez e da sua relatividade...e, simultaneamente, insinuam a passagem do tempo, num exercício de comunicação verdadeiramente paradoxal e demoníaco.
E tudo isto a propósito de um velho professor em vias de receber o jubileu. O mesmo professor que, no caminho para a cerimónia final reencontrará todas as suas memórias. Idoso de aspecto afável, vimos a descobrir, graças aos seus desconcertantes sonhos, que é exactamente o contrário do que faz crer ser. Com efeito, Isak é um rotando falhanço, quer humano, quer profissional: desde o esquecimento do juramento de Hipócrates, passando pela recordação da morte cirúrgica da mulher. E o castigo foi impiedoso: a solidão.
A mesma solidão que motiva os inúmeros sonhos e recordações. Sonhos estranhos, onde a morte é omnipresente e Isak nunca será jovem: será sempre o Isak de hoje, em contraste fero com a magnificência de Sara (sensacional Bibi Andersson), plena de vida e beleza. Tivemos a oportunidade de ver o correr célere do tempo de mãos dadas com a morte. E, como se fosse preciso, Bergman relembrou-nos algo que por vezes esquecemos: a solidão é o princípio da morte.
Prova disso mesmo é a tentativa gorada de aproximação ao filho e à nora (uma serena e deslumbrante Ingri Thulin). Isak já não é nada excepto o cadáver adiado que procria...e todo o ritual do jubileu mais não foi do que um funeral de corpo presente, tal como o tivera sido o sonho atroz em que Isak, vivo, agarrava o Isak morto. Surreal, fantasmagórico, inverosímil, mas, acima de tudo, certeiro. Bergman, sempre com a precisão de um Miguel Ângelo, soube dar-nos (mais) um exercício filosófico-existencial desconcertante.
Morangos Silvestres é sinónimo de enterro do Espírito, da Alma. Não há lugar a cenários verdadeiramente oníricos, uma vez que estes são puros pesadelos. Na verdade, nada do que parece é: Isak não saboreará a doçura dos morangos, tal como não soboreou os prazeres da vida. Tal como não foi Isak aquele que vimos projectado no espelho: foi o seu fantasma.
Um fantasma acossado pela memória. E será essa persistência do nosso consciente, lembrando-nos da celeridade da vida e da necessidade de a viver vertiginosamente que leva a que não desejemos dizer (como Isak):
Estou morto, apesar de vivo
1 Comments:
Caríssima Helena,
Espero que o possas apreciar a breve trecho. Este um dos raros filmes que fica insistentemente a remoer a nossa cabeça desde a primeira vez que é visto (tal como o Persona ou o Sétimo Selo. Bergman, neste particular como em tantos outros, é um verdadeiro génio. Cada filme é um convite para viajarmos ao mais profundo do nosso "Eu").
:)
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