domingo, maio 28

A cobardia em exame

Richard Burton e Curd Jurgens em Bitter Victory

O Cinema de Nicholas Ray é um cinema pleno de confrontos e oposições.
Bitter Victory poderá ser um desses exemplos, dado que tem como pano de fundo o conflito entre oficiais britânicos em pleno deserto, enquanto levam a cabo uma missão de importância vital. Esse conflito mais não é do que a projecção de um diálogo havido em momento prévio na messe dos oficiais: o Major Brand (Curd Jurgens) vê o Capitão Leigh (extraordinário Richard Burton) a falar com a sua mulher. Eis o início do conflito e a força motriz de toda a película. Desconhecendo o porquê dessa conversação, Brand não mais tolerará a presença de Leigh. Sente-se inseguro, com medo e, consequentemente, tudo fará para o eliminar.
E será no deserto, o grande desconhecido, que o conflito se intensificará. A Guerra que decorre lá longe e na qual os soldados de Leigh e Brand estão envolvidos será sempre secundária, como que transformada numa abstracção. Veremos, apenas, a guerra pessoal entre Leigh e Brand. Apenas ela interessa e será ela que nos permitirá ver duas personagens absolutamente díspares: Leigh, um absoluto nihilista com um quê de anacrónico (O século X é moderno de mais para mim) e Brand, major de secretária, à procura da glória, como meio de tornar o seu nome duradouro.
Esse sonho de glória (efémera?), aliado à insegurança, leva a que procure eliminar Leigh: abandona-o junto dos feridos, não o avisa que irá ser picado por um escorpião, decide deixá-lo só para abraçar a Morte. E, assim, os típicos conflitos de Ray ganham um elemento novo: o principal leit motiv deste é motivado pela cobardia de Brand, que fará sempre uso dos golpes mais baixos para tirar Leigh de cena.
E será em todos esses momentos em que Leigh fica abandonado à sua sorte que o vento do deserto assumirá o protagonimo. Não temos o deserto poético de David Lean, mas sim um deserto duro e cruel. Aqui o vento mais não é do que o elemento que o procura limpar, fazendo com que recupere a sua pureza, não deixando marcas dos que por ele passaram (The desert is clean como nos diria El Aurens).
O mesmo vento que trará a Morte e a suprema das ironias: Leigh, em pleno estertor e já moribundo, protege Brand do Ghibli, naquele que é um dos mais belos momentos de sempre do Cinema: Leigh protege Brand clamando I always contradict myself!
E são estas contradições que fazem de Ray e dos seus personagens algo inesquecível, tal como são as suas alterações imprevísiveis do rumo do enredo. Brand recebeu a sua medalha, mas num acto peculiar, acaba por condecorar um manequim. Os mesmos manequins suspensos, à imagem de enforcados, que serviram de pano de fundo ao genérico e que recuperam o protagonismo no fim.
Quase que se diria que é Ray a relembrar-nos que mais não somos do fantoches nas mãos de um qualquer sistema, da guerra ou, talvez, do destino.

2 Comments:

Blogger Ricardo said...

Um texto bem escrito como este, que fale do meu amigo Nick Ray, incita-me a sair brevemente do meu caixão (e tu sabes as razões porque eu não tenho escrito nada)

Escrever sobre este filme, poderá significar entrar num buraco negro de que talvez nunca mais consiga sair. Acho que este é um dos filmes mais actuais de sempre. Mais não digo.

12:22 da tarde  
Blogger Hugo said...

Cara Helena,

é mesmo caso para dizer "quel pecatto!". O filme de Ray é magistral (mais um!), tal como o são as interpretações. E devo confessar que se voltar a passar num futuro vindouro, correrei a rever uma vez mais.

Ray é daqueles cujos filmes não nos cansam nunca.

Saudações cinéfilas!

11:34 da tarde  

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