sexta-feira, março 31

A vastidão do deserto

Peter O'Toole em Lawrence of Arabia

O deserto. O grande desconhecido. A vastidão do espaço e o vazio da alma.
T.E.Lawrence (sublime Peter O'Toole) sentiu-se atraído pelo deserto porque este é limpo. Na verdade, no deserto não damos de caras com jogos de bastidores vis, com as pequenas grandes mentiras. Apenas a vastidão do espaço, pronta a ser explorada através do mergulho no desconhecido. Um horizonte longínquo e vasto, que apenas é perturbado pelas pegadas deixadas na areia e que o vento prontamente se dispõe a apagar.
É com este pano de fundo que veremos Lawrence prosseguir na tentativa de descoberta do seu "eu", vendo-se envolvido na liderança da revolta árabe, rodeado por políticos com segundas intenções (Princípe Feisal, um eficiente Alec Guiness), por amigos verdadeiros (Xerife Ali, brilhante Omar Sharif) e por homens à procura de fama e glória (Auda Abu-Tay, genial Anthony Quinn). Apesar de se transformar no centro da revolta, na consciência da nação árabe, Lawrence permanece envolto na aura do mistério, sem identidade definida. Basta lembrar que à pergunta "who are you?", Lawrence não responderá, prova maior da sua (ligeira) alienação. Deserto é morte, é a metáfora de Lawrence, qual corpo mumificado a fitar o vazio, com olhar distante, e não dizendo quem é.
Eis o ponto de partida para esta viagem belíssima: um homem sem identidade, que contraria todas as regras e vai contra tudo e todos obstinadamente: atravessa o deserto inultrapassável (o Nefud), salva a vida de um companheiro de viagem, para lha tirar em nome da destruiçao de Acquaba. Um homem comum transformado num Deus ou, caso prefiram, um quási-Deus. Imponente, sábio, erudito e, com o passar do tempo, vingativo. Se antes pensáramos ver um jovem idealista no destacamento do Cairo, acabaremos por ver o mal inerente a qualquer Ser Humano sobressair. Terá prazer em matar, tal como tivera prazer em desafiar o destino. Mas, no fim, negará a fama e apenas quererá voltar para a terra natal, a verde Inglaterra, sinónimo de paz e de descanso. E é aí que encontrará o seu fim. Não no deserto, não na guera, mas na estrada. Sobressaindo os seus óculos pendurados num ramo, quais lentes que nos tiram, para podermos recuar no tempo e ver a evolução da revolta árabe pelos olhos de el Aurens, rectius, Lawrence.
E o que resta depois de 222 minutos de filme? Um espectador estarrecido pela grandiosidade e imponência do deserto, aliada à belíssima banda sonora de Maurice Jarre. Mas, acima de tudo, sobressai o toque de génio de David Lean, que soube captar a essência de Seven Pillars of Wisdom, mostrando que por trás de grandes feitos, basta um homem comum, mesmo que seja incapaz de se definir a ele próprio. Um homem inadaptado a toda e qualquer circunstância: desde o fato militar que lhe cai mal, às roupas berberes que provocam o riso de Auda, passando pela negação dos seus feitos e vitórias.
Todavia, mais do que sete pilares de sabedoria, mais do que um homem, sobressai o deserto, a sua magnificência, a sua beleza e o misterioso poder de atracção que nos impele a ir até ele. A mesma sedução que atraiu Lawrence, o mesmo vazio e vastidão, que mais não são do que a metáfora da sua alma, um profundo buraco negro de sentimentos. Nós não vimos o retrato de Lawrence. Pelo contrário, vimos o retrato da revolta árabe, da opressão dos turcos e da beleza do deserto, através do olhar do oficial inglês que se apaixonou pelo Deserto, Lawrence, que também será "el Aurens" (um pequeno indício dos problemas de identidade?). Um deserto que é a metáfora deste Laurence: vazio e limpo.
O deserto não foi mero figurante. Foi o actor principal, o encenador, o palco da verdade. Vimos a verdade, nua e crua, mas envolta pela poesia e pelo olhar sensível do grande David Lean. Uma poesia que tem como exemplo maior a espantosa miragem de onde surge Ali. De qualquer modo, ficará sempre a pergunta: teremos visto a Verdade ou terá sido esta uma longa miragem de 222 minutos, onde o cinema deu provas de enorme vitalidade?
Post Scriptum - A intensidade e beleza do filme são tantas, que nem ligamos ao pormenor de, lá bem no fundo, ser um filme sobre beduínos a lutar no deserto, onde não vemos mulheres, onde não há lugar para o romance, nem a típica história de Amor. Algo apenas ao alcance de um realizador magistral: David Lean.

2 Comments:

Blogger Hugo said...

Mais do que Magnificência, começo a achar que a palavra certa é "imponência": visual, sonora, enfim, tudo.

Vendo Lawrence é impossível não nos sentirmos pequenos: perante o deserto, perante a tenacidade de el Aurens...

Tal como nos sentimos pequenos com a mestria de David Lean: quase não de sá por ela, mas já se vislumbram técnicas "nouvelle vague", maxime o "jump-cut". Ex: Lawrence apaga um fósforo e já estamos com uma belíssima imagem do deserto, com um céu vermelho. Lean, um homem do seu tempo portanto.

É a imponência com que Lean viria a brindar-nos no seu filme seguinte: "Doctor Zhivago", adaptação do livro homónimo (livro brilhante e belíssimo!) de Boris Pasternak. Aqui não primou, apenas, a imponência visual, mas, sobretudo, a sentimental. O filme é, no mínimo arrebatador, mas isso são outras núpcias...

:)

1:02 da tarde  
Blogger Hugo said...

Sim, em Doctor Zhivago temos imponência e, acima de tudo, uma Julie Christie assombrosa :)

Quanto a "il gattopardo", isso equivaleria a entrarmos numa outra dimensão, porque é daqueles filmes que, per se, permite discutir durante dias e dias consecutivos. Não é à toa que é uma das obra supremas do Cinema.

:)

3:01 da tarde  

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