domingo, março 19

Otto e mezzo, a bela confusão

Marcello Mastroianni em Otto e mezzo
Otto e mezzo é um filme fundamental.
Após o aclamação obtida com La dolce vita, retrato agridoce da sociedade italiana do pós-guerra, Fellini não conseguia arranjar tema para um novo filme. E assim se dava o pontapé de saída para Otto e mezzo, viagem ao universo criativo de Fellini e, simultaneamente, homenagem intemporal ao cinema e à arte de fazer cinema (neste particular, apenas La nuit américaine de François Truffaut será outra homenagem digna de realce).
Uma viagem aos dramas da criação. Eis o mote para conhecermos Guido Anselmi (genial e sublime Marcello Mastroianni), um realizador de sucesso em plena crise de inspiração, no centro das atenções de todos aqueles que o rodeiam, em virtude de desejarem que este faça mais um filme genial. E aqui começa a ponte entre a ilusão do cinema e a realidade da crise criativa de Fellini. Trata-se de uma ponte que, à partida, é indiciada pelo título: "oito e meio" que aponta, claramente, para o facto de lidarmos com um realizador incapaz de concluir um filme...
Refira-se que, em bom rigor, não topamos com uma verdadeira narrativa. Pelo contrário, o filme desenrola-se de forma fluida (à imagem do roman flauve de que Marcel Proust é o exemplo paradigmático), tendo como centro gravitacional Guido e os seus fantasmas. E aqui começa o toque de génio: não lidamos com as típicas analepses, mas sim com a inserção de realidades paralelas ao lado do protagonista, num enorme plano subjectivo de 133 minutos. Desde recordações de infância, passando pela projecção mental dos pensamentos de Guido, lidamos com cenas verdadeiramente oníricas, no limbo entre sonho e realidade.
Neste particular, avultará a visão de Claudia (inesquecível Claudia Cardinale), musa inspiradora de Guido, sempre envolta numa aura de beleza, glamour e sensualidade. Uma visão derivada do desejo e que, mau grado essa nuvem de irrealidade, terá o discernimento suficiente para, cara a cara, dizer a Guido o que pensa dele: que não é capaz de amar e que é um mentiroso, pois não há filme nenhum...
Tendo como ponto de partida essas realidades alternativas, Fellini põe a nu todo o seu processo criativo diante do espectador. Aliás, não deixa de ser curioso que, a par desse desnudar (cínico? sincero?), nos deparemos com uma visão irónica de uma certa intelectualidade, corporizada no escritor Carini, o mesmo que critica o filme pela falta de profundidade filosófica e, posteriormente, saúda Guido por decidir não fazer o filme. Refira-se também que, em simultâneo, Fellini não deixa de lançar farpas à indústria cinematográfica (veja-se a luta constante entre um produtor ávido pela rodagem de um filme e um Guido hesitante), bem como não deixa de retratar uma certa preponderância do pensamento tipicamente católico (cujo exemplo máximo será as visitas de Guido ao Cardeal)...
Ora, acontece que Guido não é um Super-Homem ou um ser totalmente omnisciente, mas alguém como nós, com os seus problemas conjugais, com a sua amante e com os inúmeros fantasmas que o perseguem. Um Guido que lida mal com a pressão e com o facto de ser o centro das atenções, tendo os holofotes virados para si. O mesmo Guido que, após se suicidar simbolicamente, recupera o dom, qual Fénix renascida, e começa a dirigir um filme, dando ordens a todas os aqueles que se cruzaram com ele em todo o filme e que desfilam numa passerela final. E, mesmo aí, reside a dúvida: projecção mental ou realização efectiva? Uma coisa é certa: sem pressão Guido foi capaz de criar algo...tal como foi Fellini, que concebeu e realizou este filme fundamental, que celebra a vida, a arte e, acima de tudo, o cinema, num verdadeiro bailado de planos de beleza suprema, que por vezes trazem reminiscências de alguns elementos da tragédia grega: veja-se o coro de "inquisidores" com que Guido se depara na Conferência de Imprensa ou a revolta no seu Harém.
Nunca será demais dizê-lo: Otto e mezzo é um filme fundamental a ver, rever e voltar a ver.
À guisa de post scriptum: a genialidade de Fellini também se vê no facto de o trailer de Otto e mezzo não ser o típico somatório de imagens retiradas do filme, mas, pelo contrário, ser uma "curta-metragem" realizada pelo próprio Fellini, onde é antecipada a passarela final e onde é destapada a ponta do véu sobre os fantasmas de Guido.

3 Comments:

Blogger Daniel Pereira said...

Estava com algum receio de vir aqui deixar um comentário menos positivo, principalmente a um Fellini "expert", mas não gosto de ver os comentários a 0.

A verdade é que eu e o Fellini não nos damos mal, mas também não nos damos bem. Em dois dos três filmes que vi dele (e dois porque o "Roma" não vai mesmo...), "Amarcord" e este "8 1/2", eu reconheço-lhe um enorme talento e originalidade, principalmente no "8 1/2". O problema que tenho com ele é que não vou com o "espectáculo" Fellini, aquilo que, creio eu, originou o adjectivo de felliniano. São essas extravagâncias que, a meu ver, impedem o total sentir da desordem emocional de Guido em "8 1/2" (e aqui vão dizer que é precisamente isso que faz com que se sinta) e impedem, também, que a melancolia e a nostalgia que há em "Amarcord" extravase (como acontece, por exemplo, na sequência mais calma que é a do paquete, essa, sim, sublime).

E é isto. Espanca à vontade.

7:39 da tarde  
Blogger Hugo said...

Espanco nada! :) E confesso que o Fellini que mais me comove é aqueloutro inicial: o de I vitelloni, la strada ou de Notte di Cabiria, onde vemos o embrião do "felliniano", mas onde não deixamos de encontrar uma poesia tremenda (la Strada, nesse particular, é brilhante) a par de uma mundividência irónica, que chega a ser sublime (veja-se "i vitelloni").

Quanto ao "otto e mezzo", convenhamos que o problema do Guido Anselmi é exactamente o mesmo qur todos temos quando começamos (ou queremos começar) algo: como fazer? quando? por que ordem? O drama criativo não é um reduto das Artes...e essa é uma das chaves de leitura do filme (mais até do que o tom autobiográfico ou pseudo-confessional. Fellini tem imaginação podre como diria Luiz Pacheco, ma non troppo...). "Otto e mezzo" é cinema, fazer cinema, mas, mais do que tudo, é uma viagem ao drama da criação, que é algo universal. Acho eu...

:)

12:22 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Belo texto, Hugo. Entendo (e semi-concordo) com o que disse o Daniel também.
8 e 1/2, mais que um filme para ser visto, é para ser visto e revisto e revitso mais uma vez, para aí, sim, tirarmos conclusões adequadas, me parece.
Há sequencias absurdamente perfeitas nesse filme,e que, a meu ver, "valem o ingresso". Mastroianni diz a que veio, atuação mais que genial.
Comparo 8 e 1/2 àquela música que é necessário ouvir duas, tres, 10 vezes para, aí sim ela parar de te pressionar, tamanho o peso da imersão de Guido na resignação.

Enfim, era só para parabenizar os textos, acabei me excedendo.

abraços

4:15 da manhã  

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