domingo, março 5

Dégueulasse

Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em À Bout de Souffle

Poucos filmes conseguem ser tão trepidantes como À Bout de Souffle de Jean-Luc Godard.
Filme pejado de referências, que não deixa de construir, descontruir e reconstruir, acaba por ser uma grande homenagem a Hollywood. A Hollywood do film noir, da série B, do filme de culto. Em suma, a Hollywood corporizada por Humphrey Bogart, genialmente evocado por Michel (sensacional Jean-Paul Belmondo), um jovem gangster que quer fugir para Itália na companhia de Patricia (inesquecível Jean Seberg).
Com um início verdadeiramente enérgico, tomamos contacto com aquela que será uma das imagens de marca de Godard: a personagem dirigindo-se à audiência. De uma conversa inicial com o retrovisor, Michel corta com a timidez e dialoga com o ecrã. Herói e vilão, acabará por apaixonar-se por uma jovem americana, Patricia, que deambula por uma Paris vibrante e excitante, enchendo-o de glamour e sedução.
Filme militante e capítulo inicial daquela que será a filosofia de cinema de Godard, não deixamos, desde já, de ver algumas daquelas que serão as constantes do seu cinema: militância política, inúmeras referências directas (e também veladas) a escritores, pintores ou compositores, prova de que o próprio Godard nunca deixou de se considerar um escritor cujas letras são os fotogramas...afinal, Cinema é verdade 24 vezes por segundo...
Fechando o parêntese e regressando ao leit motiv, diga-se que somos brindados com um filme de pendor existencialista que, paradoxalmente, funcionará através de slogans (o exemplo paradigmático desta faceta será Masculin Féminin: 15 faits précis, o filme dos filhos de Marx e da Coca-Cola, também de Godard). Na verdade, será esse tom existencialista que permitirá fazer o corte com o enredo que, a certa altura, passa a ser meramente secundário. E, deste modo, À bout de soufle primará por ser um retrato sobre a liberdade, sobre o amor, sobre a rebeldia e sobre uma certa Paris.
Verdadeiro Grito do Ipiranga, assinalou de forma indelével a presença da Nouvelle Vague e dos seus principais postulados: a negação do herói (herói pícaro?), mulheres traiçoeiras (mulheres fatais?), a celebração dos espaços abertos, da luz natural, dos pequenos grandes pormenores da vida de todos nós... (e não deixa de ser curioso que alguns movimentos hodiernos, maxime o Dogme 95, recuperem alguns desses postulados). Postulados esses que, no caso de Godard, atingirão a perfeição suprema no genial Pierrot le fou.
Carpe diem, eis o mote desta obra. As motivações das personagens não contam, dado que o espectador é levado a absorver ao máximo os planos, os gestos das personagens (o inesquecível Ah..Bogey! de Belmondo é só um exemplo)... É só isso que conta, mas a mensagem está lá, como não podia deixar de ser: "viver perigosamente até ao fim". O fim...mas qual fim?
No que concerne a À Bout de Souffle, excepção feita à morte de Michel Poiccard, não há fim possível, tendo em consideração as regras quebradas (jump-cuts interpolados com longos diálogos, som captado ao vivo, handy camera, por exemplo) e a influência que ainda hoje tem no cinema contemporâneo.

4 Comments:

Blogger Ricardo said...

Belo texto. Como alguém da Cinemateca afirmou: "A Bout de Souffle" não só planeava uma mudança radical no cinema, como também ameaçava literalmente destruir tudo o que para traz fora feito na Sétima Arte".

9:34 da manhã  
Blogger Juom said...

Uma maravilha de filme, o meu Godard favorito e um portento cinematográfico. Belo texto, belo blog . Parabéns :-)

12:06 da manhã  
Blogger Hugo said...

Muito obrigado pelos elogios, muito gentis. :)

Ricardo: Godard, nesta primeira fase, construi e desconstrui o Cinema. Chamem-lhe fase anárquica se quiserem, mas o que é certo é que estamos perante filmes fundamentais e fundadores.

Paulo: devo confessar que o meu Godard favorito será, provavelmente, Pierrot le fou ou, então, Masculin Féminin: 15 faits précis.

A propósito deste filme, eis um curioso exercício: já compararam a performance de Jean-Pierre Léaud com a direcção de Truffaut e de Godard? Em Truffaut, temos um Léaud infantil, solitário e idealista romântico. Em Godard um Léaud idealista ideologicamente, dogmático e empenhado (politicamente). Definitivamente, algo só ao alcance de um grande actor!

12:19 da manhã  
Blogger Hugo said...

H. ela está, de facto, perfeita no filme. :)

Relativamente ao Godard, se ainda não viste, permito-me sugerir:
- "Pierrot le fou", que é o verdadeiro compêndio Godardiano sobre como fazer um filme genial (o Belmondo está absolutamente inesquecível)
- "masculin féminin: 15 faits précis", que tem o brinde de vermos o grande Jean-Pierre Léaud na sua outra vertente idealista: a, chamemmos-lhe assim para simplificar, "dogmática e empenhada". Afinal, é o filme dos filhos de Marx e da Coca-Cola...

Cumprimentos cinéfilos!

5:07 da tarde  

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