sexta-feira, fevereiro 17

The deer hunter

Robert De Niro em The deer hunter

O canto do cisne da política autoral versão Hollywood*.
Os vietnamitas detestam-no, pois entendem que Michael Cimino simplificou em demasia a Guerra do Vietname, tal como o detestam os activistas anti-guerra (lembre-se Jane Fonda, apelidando The deer hunter como uma versão racista da guerra). Perante este cenário, é mister ter bem presentes na memória as palavras do realizador: trata-se de um filme sobre pessoas.
Tendo como ponto de partida uma grupo de trabalhadores do aço, vemo-nos confrontados com um bando de verdadeiros inúteis (até fazem lembrar, vagamente, os vitelloni de Fellini), que roçam a idiotice (veja-se o episódio da ultrapassagem do camião). Apesar, disso topamos com uma forte união entre todos, sobressaindo Michael (um impressionante e inesquecível Robert De Niro), que dará o mote para todo o filme com a sua máxima "one shot". Desejando um ritual de caça puro, Michael entende que basta um único tiro para se matar a presa. Só assim se estará à altura no animal nobre que é o veado e só assim se caça de forma limpa.
Previamente, ao ritual da caça, somos brindados com um longo, arrastado e desmesurado casamento. Como contraponto à alegria dos convivas, deparamos com um soldado desconhecido que Michael e companhia brindam. Eis uma breve mostra do efeito da guerra nos homens. Se o grupo de amigos se gaba com a ida para o Vietname, desejando travar bons combates, o soldado apenas riposta com um seco, mas significativo "Fuck it!", exemplificativo do total alheamento em que vive.
Subitamente, vemo-nos transportados para o cenário de guerra. Trata-se da mesma mudança brusca que as próprias personagens sofrem e é aí que reencontraremos, de novo, a máxima one shot. Desta feita não lidamos com a pureza da caça. Pelo contrário, é um único tiro que traçará a fronteira entre a vida e a morte. Em jogos de roleta russa, Cimino mostra o quão baixo pode ir a natureza humana: apostando a vida dos prisioneiros, os vietnamitas divertem-se tentando adivinhar quem morrerá pelas próprias mãos.
Após uma bem sucedida evasão, com a chegada ao Hospital de Saigão, Nick (um portentoso Christopher Walken) começa, progressivamente, a ficar distante. Se o mote é dado com um olhar frio e gélido para os caixões enviados para os EUA, após uma tentativa infrutífera de chegar à fala com Linda (Angelical Meryl Streep), acaba por decidir vaguear por Saigão, em virtude de crer ter perdido o seu único elo de ligação para com o Mundo.
Nesse preciso momento, atingimos o grau zero de humanidade: vemos uma prostituta vender-se à frente do berço onde está o seu filho e, acto contínuo, um oportunista francês vê em Nick uma excelente oportunidade de negócio, levando-o a alinhar em sessões organizadas de roleta russa. Nick, mau grado o olhar vazio, adere para ganhar dinheiro. O mesmo dinheiro que enviará a Steven (eficientíssimo John Savage) e que permite questionar se Nick se alheou (ou não) por completo do Mundo.
Não deixa de ser curioso que a adesão seja feita sob o olhar de Michael. Será o avolumar do complexo de culpa que o levará tentar fazer com que Nick regresse. Falando de regresso, Michael retorna aos EUA. Mas volta diferente: angustiado e incapaz de encarar os amigos, apenas encontrará um porto de abrigo em Linda. O contacto com a violência da guerra conduzem à impossibilidade de matar, e, consequentemente, o próprio ritual da caça deixa de ter sentido, tal como a sua própria vida deixou de ter um rumo. Este só voltará a aparecer quando se propõe fazer regressar Nick. Novamente, num momento tocante, regressa a máxima one shot. Um único tiro matará Nick, o que não deixa de ser tragicamente irónico após este se ter lembrado do ideal da pureza da caça: one shot.
E que melhor fim do que um brinde a Nick, após um sentido God bless America ? A mesma América que mandou os seus filhos para a morte no campo de batalha, a mesma América que destruiu inúmeras famílias, acima de tudo, a mesma América a quem todo o grupo de Michael não deixou de fazer uma vénia. Patriótica ou não, eis a questão.
Filme-manifesto, The deer hunter permanecerá como o ponto máximo de um realizador maldito. Maldito porque levou conceito de cinema de autor ao máximo (veja-se a saga da rodagem de Heaven's Gate) e maldito porque teve a coragem de por o dedo na ferida, mostrando de forma crua os efeitos da Guerra no ser humano e não se coibindo de mostrar os despojos de guerra, maxime os veteranos de guerra, corporizados em Steven, abrindo a porta para Born on the 4th of July de Oliver Stone.
Cimino, volta. Estás perdoado.
*em bom rigor, o canto do cisne terá sido Heaven's Gate, também de Michael Cimino.

5 Comments:

Blogger Ricardo said...

Este filme é uma obra-prima dos 70's. Não é o filme definitivo sobre o Vietnam (penso que todo o pessoal concordará comigo que essa honra pertence a Apocalypse Now), mas é O FILME de Cimino que deve ser visto. Duvido que ele volte, e talvez isso seja mesmo o melhor, para as nossas carteiras.

11:32 da manhã  
Blogger Hugo said...

Confesso que a grande ambição dele, que consiste em adaptar "A condição humana" de André Malraux, me faria correr para as salas de cinema...

12:20 da tarde  
Blogger Daniel Pereira said...

No outro dia estava a pensar se esta vaga de filmes políticos que por aí anda vai desencadear num movimento que recordaremos, daqui a 30 ou 40 anos, como este dos anos 70. Para já, e excluindo "Munique", a qualidade é insuficiente, mas veremos o que os anos vindouros nos trazem.

E "The Deer Hunter" é mesmo genial...

12:45 da tarde  
Blogger Hugo said...

É verdade Daniel, mas acho que, actualmente, faltam duas coisas que existiam nessa geração americana de 70:

(i) realizadores geniais ou coelhos tirados da cartola;
(ii) verdadeiro empenho (engagement) político

Chamem-me saudosista, mas...

Uma nota: não deixa de ser curioso que Cimino tenha sido "purificado" na Europa (os périplos por Cinematecas europeias são um indício disso mesmo)...será que ele anda a colher simpatias de modo a conseguir financiar a adaptação de "A Condição Humana"?

9:45 da tarde  
Blogger Luís A. said...

Filme maior de um cineasta muito esquecido e que não deram opurtunidades suficientes (sim apesar de Heavens Gate que considero um dos mais belos filmes alguma vez feitos nos EUA).
Belíssima análise a tua Hugo

1:30 da tarde  

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