Juventude em Marcha, uma obra-prima
Em Juventude em Marcha Pedro Costa regressa uma vez mais ao seu local de eleição: o Bairro das Fontainhas, verdadeiro Monument Valley do cineasta. Costa, como é seu timbre, oferece aos espectadores um filme denso e absorvente. Por vezes sufocante, tal é a sua obsessão por captar a realidade tal como ela é.
Estamos perante o narrar das deseventuras de Ventura, o Homem que ao longo do filme vai construindo e desconstruindo uma belíssima carta. Desde logo, temos o contraste entre essa corpus etéreo que vai sendo construindo e a realidade que envolve e aprisiona os seus personagens: um bairro que vai sendo demolido. E se digo aprisionar, é tão-somente porque Ventura e os seus filhos são reféns de um Mundo que não conseguem abandonar. São vultos fantasmagóricos que deambulam pelos estilhaços dos casebres, tal como são também eles estilhaços de um Mundo familiar que se quebrou.
Pedro Costa foi ao extremo. Da mesma forma que todos são prisioneiros de uma realidade a que não podem fugir - nem querem. Veja-se Ventura recusando entrar na nova casa por ter teias de aranha -, Costa acaba por aprisioná-los, em grandes planos onde impera o seu rosto duro e empedernido. Rostos moldados pelas agruras da Vida, do Tempo e do Espaço que os rodeia. Pedro Costa, um pouco à imagem de um Nick Ray, filma vencidos da vida. Mas, contrariamente ao Mestre Americano, em Costa todos acabam por se conformar tragicamente com o que o destino lhes oferece.
Juventude em Marcha é lento e arrastado. Essa é a intenção de Costa. Fazer com que o espectador tenha a noção do Tempo, sentindo os seus efeitos. É nesse ritmo que vamos saboreando os prazeres desta obra singular, que, na sua obsessão por captar a realidade, acaba por exagerá-la. E se esse Mundo é de uma dureza extrema, a Humanidade de Ventura não o é. Ventura, tal como a sua Carta, é lírico, tem sentimento e marca. Ventura é, pois, uma personagem de extremos: por vezes é apresentada em tons divinos, pairando sobre as Fontainhas, tal como por vezes nos surge como Homem que é, com os seus esplendores e misérias. Mas será sempre um Ventura desgarrado de tudo e todos, perdido no meio de nenhures, procurando agarrar-se à Vida através dos seus instintos paternais. Talvez seja, por isso mesmo, o sonâmbulo que refere Luís Miguel Oliveira.
Tal como Yasujiro Ozu, Pedro Costa filma com pormenor e domina a elipse. A Carta de Ventura é, talvez, a maior delas. Porque explica quem é Ventrura e para onde vai. Porque nos ensina que o Amor é tudo. Acima de tudo, convém não esquecer que é de uma Carta que falamos. Tem de ter um destinatário. É a mulher de Ventura, símbolo máximo do seu telurismo, da Cabo Verde natal. É, assim, também um indício de que Ventura não pertence a este Mundo. Pertence, pelo contrário, a outro abandonou.
Juventude em Marcha, apesar do seu aparente simplismo formal, esconde todo um Mundo de complexidade plástica, bem como de inspirações. Pedro Costa é Cinema e Juventude em Marcha - nunca é demais dizê-lo - é uma lição de como fazer Cinema. Mas é também um filme sobre a Palavra. Costa procurou absorver a tradição oral de uma Comunidade. É o filme do crioulo e do seu belo Nha cretcheu. Tal como é o filme onde cada diálogo contém uma reflexão sobre muita da História recente de Portugal. Não é à toa que vemos monólogos sobre o 25 de Abril, a febre da construção ou a vida no Bairro. Sinais de um tempo que já não existe, mas que ficam gravados para a posteridade na saga de Ventura e dos seus filhos.
Para uma análise competentíssima, vide os textos de Andy Rector, bem como o belo texto do Domingos Miguel.
20 Comments:
Belo texto, que transforma em palavras o que não conseguiria exprimir acerca deste filme...
Um filme como há muito não se via.
«Juventude em Marcha é lento e arrastado»
Finalmente estamos de acordo, Hugo. ;))))
Que filme mau, pá! Como é que podes gostar de uma coisa destas?! Ah claro, es culto! lolololol
Flávio: certamente só estamos de acordo nesse particular.
damula russa: antes de lançar uma frase manifestamente infeliz convém justificá-la. Quanto ao "culto", cabe dizer que não sou. Tento ser, cultivando-me
Não sabia que "culto" tinha passado a ser pejorativo. Mas há sempre alguns (ou muitos) que preferem a ignorância e a mediocridade...
agora vai ter que aguentá-los...
Tristes são os tempos em que ser culto se tornou sinónimo de diferente. O que é bem visto/aceite é ser igual a toda a gente, bem misturadinho nas multidões, sem personalidade própria...
CJ: diz-me coisas que eu não soubesse. eheh :-)
Wasted: Hugo Alves aplaudindo de pé!
«Mas há sempre alguns (ou muitos) que preferem a ignorância e a mediocridade... »
Acho curioso quando as pessoas falam da mediocridade como se fosse uma coisa reprovável ou suja. Não é. A mediocridade pode até ser muito útil. Quando se convive ou trabalha em certos ambientes (tropa, função pública, algumas grandes empresas), a mediocridade é não apenas útil, como essencial.
O Eurípides escreveu sobre isso, a propósito da Medeia.
Flávio: completamente de acordo. Aliás, isso lembra uma lei de Murphy, alterada e trabalhada por Carlo Cipolla: quanto mais alto se sobe numa hierarquia, maior é a probabilidade de encontrar um estúpido.
Aliás, conforme dizia Cipolla, "As pessoas que não são estúpidas subestimam sempre o potencial lesivo das pessoas estúpidas. Os não estúpidos, em especial, esquecem sempre que, em qualquer momento e lugar, e em qualquer circunstância tratar e/ou associar-se com estúpidos implica invitavelmente um enorme e incalculável erro."
Se trocarmos "estúpida" por medíocre, o resultado não sairá beliscado. Acho eu.
É triste ver pessoas tão novas como tu, a fazer figuras de parvo como estas respostinhas-cínicas-prontas,não te leves tão a sério rapaz...faz mal para a pele
Vou passar por cima da discussão premente, que, na sua essência, só mostra o nível a que Portugal chegou. E andamos (alguns de nós) a tentar fugir da mediocridade como o diabo da cruz... Lamento, mas só quero tentar ser culto. Aliás, não lamento mesmo nada.
Não sei como consegues, Hugo. Já vi isto, sei que é uma obra que me acompanhará sempre, mas não consigo exprimir uma palavra, tal foi o impacto.Tenho de ver uma segunda vez. Mas sei que há mais cinema nisto do que, sejamos optimistas, em 99,9% do que por aí se vê. Para já, opto por referir um aspecto muito interessante: as cenas nas antigas Fontaínhas, sempre de acordo com a estética do expressionismo alemão.
A ver, muitas e muitas vezes.
Take Care,
Miguel Domingues
Miguel: tento (e só escrevia à 2ª vez que vi...). Sempre é uma forma abstrair da realidade que me envolve...
Abraço
giro. Agora também vais dizer que o mourinha não percebe nada de cinema, porque falou negativamente dos longos planos do pedro costa?
João D.: é curiosa a tendência para tirar coisas daquilo que digo (não é o único)
Apenas duas notas: (i) há mais dinâmica nesses planos "longos e demorados" de Juventude em Marcha do que em muitos travelings que se vão fazendo por aí, (ii) cada um desses planos é um microcosmos de Cinema. Uma verdadeira lição. Só não vê ou quem não quer, ou quem não conhece...
Ponto de vista interessante o teu, mas pessoalmente considero-o um péssimo filme. Escrevi um comentário alargado no meu blog. http://cineclaquete.blogspot.com
"Apenas duas notas: (i) há mais dinâmica nesses planos "longos e demorados" de Juventude em Marcha do que em muitos travelings que se vão fazendo por aí, (ii) cada um desses planos é um microcosmos de Cinema. Uma verdadeira lição. Só não vê ou quem não quer, ou quem não conhece... "
Acho que comentários como este que transcrevi agora apenas servem para degradar o nível de debates sobre Cinema que, presumo, querem-se sérios. Além de revelar uma extrema falta de humildade e de ser profundamente deselegante, impede que a troca de ideias prossiga com normalidade e na salutar diferença de pontos de vista que se lhe exige. É um comentário anti-debate, já que tenta invalidar a opinião de quem não gosta do filme através do exaltar da suposta superioridade de quem aprecia o filme. Neste teu proclamar de superioridade (cinéfila) em relação a quem não gostou do filme, concluis que quem, como eu, não apreciou o Juventude em Marcha foi porque ou não quis ver a sua genialidade ou porque não percebe nada de cinema. Pergunto-te com que autoridade fazes juízos desses sobre opiniões ou, no limite, formas de sentir alheias? Por que motivo consideras a tua opinião mais válida do que as de quem não gostou? Quem é que decretou que estás do lado da razão ou da verdade? Foi o consenso crítico ou a tua certeza de que possuis mais conhecimentos cinéfilos do que quem não gosta?
Em todo o caso, mesmo sabendo que não respeitas pontos de vista contrários ao teu, fica a referência para a crítica que elaborei no meu blog.
Segundo Tiago Costa, e passo a citar "Não obstante as evidentes boas intenções do projecto, todo este potencial de humanismo é desbaratado por um realizador sem visão cinematográfica." Eis uma bela frase disparatada sobre juventude em marcha.
Ora, uma frase estas diz tudo do conhecimento cinematográfico do seu autor. Eu permito-me concluir que se deve a lapso do autor. Com efeito, vendo umas quantas coisas (conhecer Ozu, Ford, Murnau e restantes expressionistas, e Straub-Huillet) percebem-se os horizontes e conhecimentos cinematográficos de Pedro Costa. Daí que a aparente simplicidade dos seus planos esconda muito.
Só mais uma coisa, eu respeito todas as opiniões. Quando elas roçam o disparate só tento chamar à razão.
Mais três notas: (i) saber de Cinema é ver filmes (Bertolucci). E só vê Ozu e os restantes em "juventude em marcha" quem conhece um pouco da sua obra (leia-se, viu "filmes de"). (ii)o que degrada o debate sobre Cinema é ver as milhentas opiniões sobre filmes de Hollywood que são maus. Sinceramente, acho que há uma geração perdida para o Cinema em Portugal. Porque, por via de regra, não se conhece nada para além da má Hollywood. (isto é uma generalização e, como tal, há excepções) e (iii) no fundo, tudo se resume a uma questão de gosto. Admito que não se goste de "juventude em marcha". Dá jeito é perceber o porquê de não se gostar.
Fantástico!
http://brownrickenbacker.blogspot.com
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