quarta-feira, setembro 20

Da compaixão e da misericórdia

Fotograma de Sansho Dayu
Um homem sem compaixão é como um animal. Ama todos os outros homens qualquer que seja a condição deles, porque todos os homens são iguais

Eis a frase que nunca abandonará a mente de Zushio. A criança raptada e vendida como escrava, que conhecerá o inferno de um campo de escravos às mãos do Intendente Sanshu e dos seus sequazes. Suzhio, o mesmo que esquecerá momentaneamente a regra de ouro da compaixão e acabará por marcar um velho andrajoso com um ferro quente, apesar de, ao pescoço, trazer pendente uma figura do Deus da Misericórdia e da Compaixão. O mesmo Zushio que, preparando-se para lançar uma velha aos abutres, acabará por recordar a máxima que antes lhe tivera sido ensinada, quando revive um momento exactamente igual a outro do passado.

Mizoguchi, o poeta da beleza serena - mesmo nesta viagem infernal de Sansho Dayu - reafirma, assim, a sua crença no Homem puro e impoluto. Se Zushio acaba por se reencontrar consigo próprio, também acabará por ver sobre as suas costas o peso da culpa e a necessidade da desculpa de todos aqueles a quem fez mal. De Diabo a Santo, Zushio, transforma-se e emociona-se. Tal como o espectador, absolutamente incapaz de ficar insensível perante o que se vê desenrolar à sua frente. Sanshu dayu é o filme da compaixão, da misericórdia, o filme onde podemos ver projectada quer a nossa faceta malévola quer aqueloutra boa, imaculada. Em qualquer caso, uma prova de amor. O mesmo amor entre dois seres que levou Zushio a procurar a sua irmã morta e a mãe com que se reencontrará. Já cega, uma mera lembrança do que fôra outrora. Mas isso é o menos. Num Mundo de formas, mais do que os invólucros, apenas o conteúdo conta. E, neste caso, prima tudo aquilo que de mais nobre um Ser Humano pode oferecer. E as suas possibilidades são infinitas, tal como o Mar que a câmara de Mizoguchi nos mostra mesmo no final. Um mar apenas entrecortado por uma ilha. O que é irónico. Porque nenhum Homem é uma ilha.