domingo, julho 9

Idílio Selvagem

Rober Mitchum, Susan Hayward e Arthur Kennedy em The lusty men

Em virtude de um acidente num rodeo, Jeff McCloud (Robert Mitchum) acaba por desistir da profissão em consequência das lesões sofridas. Num belíssimo plano em que vemos Jeff percorrendo a arena, entre o pó, com um saco às costas, apenas acompanhado pelo uivar do vento, ficamos a saber que Jeff é um solitário.
Desejando visitar a sua antiga casa, Jeff acaba por encontrar num velho esconderijo vestígios da sua infância: uma pistola, um um livro, uma revista de BD e um saco onde tivera guardado dois níqueis. Interrompido neste acto de regresso à infância pelo actual proprietário da casa, Jeff acaba por conhecer Wes (Arthur Kennedy), o cowboy empregado de um rancho e que acalenta o sonho de criança de se tornar uma estrela dos rodeos. E é nesse ir e vir de perspectiva, entre o solitário Jeff que, por momentos procurou reviver a infância, e o sonhador Wes, aspirando a viver os sonhos de criança, sendo astro dos rodeos que nascerá a força motriz de The lusty men. Ambos são fugitivos do passado: um quer esquecer a vida que levou e outro procura mudar a que leva.
Entre a confiança esperançosa de Wes e o realismo cínico de Jeff nascerá uma forte amizade, que levará Jeff a aceder ajudar Wes a atingir o seu sonho. Na verdade, Wes procura o melhor de dois Mundos, aliando a prossecução do seu sonho de criança à satisfação das necessidades do presente, adquirindo uma casa. Ora, Jeff apenas o ajudará por ter ficado encantado com a mulher de Wes, Louise (Susan Hayward), que, detentora de uma lúcida visão da realidade, não quer ver Wes em rodeos, pois dá preferência a uma vida esforçada de trabalho onde não se corram riscos desnecessários.
Apesar disso, os três enveredarão pela vida de saltimbancos, de rodeo em rodeo, sendo Jeff o mestre de Wes. E, se num momento inicial Wes ficava atemorizado sempre que via alguém ferido, desfigurado ou vítima de acidentes com cavalos ou touros, à medida que vai conquistando títulos, soltará o pior que há em si: torna-se alcoólico, mulherengo,... Já Jeff, pelo contrário, mantém-se realista e torna-se um Homem simples, calmo, sempre com o intuito de conquistar Louise. É deste triângulo, onde veremos amizades, inimizades, confianças e desconfianças que surge a outro dos eixos do filme. Será Louise o seu principal eixo, quer por conduzir à mudança de Jeff, quer por não abandonar Wes, pois é ele que a poderá ajudar a satisfazer o seu principal anseio: comprar uma casa.
Ora, este triângulo não é harmónico e acabaremos por ver a crise. E, como estamos perante um western dos tempos modernos, veremos um duelo, se bem que diferente do habitual. Jeff, apesar da incapacidade física, concorre a todas as provas de um rodeo para provar a Wes que consegue ganhar dinheiro sozinho. Tudo corre bem até ao momento em que cai de um cavalo e virá a falecer. E, em momento de puro Cinema, veremos Wes a dizer He is the best, tal como veremos Louise, à beira do leito de morte de Jeff, dizendo que ele é um astro falhado dos rodeos.
Jeff, o Homem renascido, acaba por salvar o casamento de Wes e Louise, já que aquele desiste de uma vida de perigos e de glórias vãs para retornar à velha rotina que conhecera.
Nick Ray apresentou-nos uma relação amor-amizade ambígua. Afinal serão Jeff e Wes apenas amigos? Não teremos visto cenas de ciúme por parte de ambos? O que é certo é que dessa ambiguidade saiu uma obra plena de tensão e vivacidade. A mesma tensão que invadiu todos os rodeos que vimos. Violentos e cruéis, tal como todos os seus intervenientes. Vimos os bastidores desse Mundo de homens e mulheres temerários, onde o medo é escondido através do recurso ao alcoól. Um Mundo de excessos. Mas apesar desse excesso, vimos um Mundo humano. Talvez demasiado humano.
Acima de tudo Ray mostrou que a cobiça cega (citando Camões e o belo Perdigão, podemos dizer que Wes quis voar a uma alta torre mas achou-se desasado), tendo sido necessário que morresse um amigo para que Wes pudesse cair em si, com um murro no estômago. Foi acordado para a realidade da pior forma. Tal como os espectadores, que tomaram conta que tudo se resume a vãs glórias. Tudo é éfemero. Desde a fama à vida. Talvez por isso em Ray é trepidante a pulsão que envolve as suas obras, sempre à beira do abismo, mas sempre humanas.
Nick Ray c'est le cinema
, como dizia Godard.

4 Comments:

Blogger Ricardo said...

Embora não sendo o melhor dos Rays, este é um filme chave para se compreender o espírito e a suprema arte do realizador.

11:26 da manhã  
Blogger dermot said...

Olá Hugo. Desculpa trazer para aqui esta conversa, que em nada tem a ver com o teu post, mas achei pertinente reavivar o diálogo que tivemos há uns meses atrás, acerca de A Última Tentação De Cristo.

Com efeito, acabei a leitura do livro de Kazantzakis (traduzido em português, confirma-se a sua existência, pelo Cicrulo de Leitores e traduzida por Jorge Feio). Obviamente, que fiquei maravilhado com o livro.

No entanto, não concordo quando dizes que o filme de Scorcese é uma excelente adaptação do livro. Penso que todas os filmes que se baseiam em livros deveriam ser assim: uma interpretação da obra, servindo-se dela apenas como apoio. Quer-me parecer que Scorcese apenas interpreta segundo o seu próprio "evangelho", o "evangelho" de Kazantzakis.
Mas isto sou eu...

8:13 da tarde  
Blogger Hugo said...

Olha se eu soubesse da existência dessa tradução. Só fiz essa observação porque, em certos pontos, o Scorsese chega ao ponto de seguir à letra os diálogos da tradução inglesa... :-)

O livro é absolutamente genial, pois é! É vermos o Super-Homem do NIetzche nas vestes de Cristo. O que não é de admirar porque o Kazantzakis foi o tradutor grego do grande filósofo alemão...No romance de Kazantzakis já não vimos Zaratustra o profeta do Super-homem (a tradução não é boa porque o alemão "üÜbermensch" não é exactamente sinónimo de "super" mas de "acima de") mas sim o próprio, tal como é Zorba o grego, quer no filme quer no livro de Kazantzakis que lhe está na base: "Alexis Zorbas", traduzido para português por "o bom demónio" pela Ulisseia nos anos 60.

É daqueles livros que não cansa. Ando sempre com ele por perto, já que as lições que dele se retiram são muitas.

Abraço!

PS - E não há nada a desculpar! Pelo contrário: há que agradecer. Um diálogo salutar é sempre bemvindo!

10:57 da tarde  
Blogger Hugo said...

Eu sou daqueles que a cada re-visionamento de filmes do Ray mais se convence que ele é o Cinema.

Emoção, como dizia o Fuler.

9:34 da tarde  

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