E se ler fosse proibido?
François Truffaut em Farenheit 451, ao adaptar o romance homónimo de Ray Bradburry, deu-nos a resposta. Numa sociedade em que ler é pecado, onde ser um livre-pensador equivale a ser um fora-da-lei, onde ter opinião é sinónimo de perseguição pelas autoridades, até a simples tarefa de destruir livros pode ser posta em causa a partir do momento em que se acede ao fruto proibido. Como diria José Afonso Vejam bem,/que não há só gaivotas em terra/quando um homem se põe a pensar.
Neste filme perturbante, vimos um retrato cru, verdadeiramente paradigmático, da sociedade do Homem Massa. Uma sociedade homogeneizada onde as regras foram feitas para ser cumpridas fielmente e onde até o ser-se delator merece prémio. É esta, também, a sociedade do Leviatã, cabendo ao Homem a tarefa de ser seu próprio Lobo até se projectar no infinito do vazio de conhecimento próprio. Tudo se resume a ver o Mundo pelos olhos dos outros, a sermos hipnotizados pela propaganda difundida pela TV. Nesta Sociedade vazia, tudo se resume, pois, a uma simples luta, a luta entre agir mecanicamente e pensar. Só pensando poderemos desenvolver a nossa personalidade. E só assim poderemos ser livres - les hommes libres sont les hommes-livres como se dizia no guião original em francês.
Porque, cada vez mais, vivemos num Mundo de padrões homogeneizados e onde a consciência crítica parece cair em desuso (e, por vezes, olhada de soslaio), é sempre bom ver que o Cinema é capaz de nos dar uma resposta ágil e hábil para o problema. E como é de Truffaut que falamos, tal resposta assenta os seus alicerces num Humanismo e numa Humanidade a toda a prova. Em Farenheit 451, obra que para além de convidar à reflexão, é, também, a homenagem a Hitchcock - basta atentar nos planos tirados a papel químico das escadas de Vertigo ou no recurso ao soberbo Bernard Herrman para a banda sonora - bem como a afirmação do Amor de Truffaut pelos livros. Truffaut, L'homme qui aimait les femmes, cinéfio doente (porque La vie était l'écran), era também um ávido consumidor de livros. Esta é, pois, mais uma das suas muitas provas de amor.
Ora, fazendo a ponte entre filme e a realidade envolvente, surge a dúvida - parafraseando um célebre título de Ortega y Gasset - para quando a Rebelião das Massas?
3 Comments:
Eu diria que continuamos a viver num fascismo, mais subtil é verdade, mas não menos implacável. Que é esta sociedade da imagem standardizada, em que as pessoas diferentes são marginalizadas, e a publicidade exerce sobre todos nós os padrões do que se deve seguir, a nível físico/comportamental; senão uma sociedade totalitária em busca de massificação e da eliminação da dúvida? Tudo se rege pelo dinheiro, como se isso fosse o mais importante, e todos aspiram a ser os melhores, nem que para isso se destrua o próximo. O mundo Ocidental pode ser o melhor e mais estável, mas continuamos a ter um longo caminho a percorrer.
Em relação ao filme, não há dúvidas que é dos mais assustadores da história do cinema, e tem quadros que se me alojaram na mente: A cena do começo ao som da trilha sonora arrepiante/futurista de Herrmann agarra-nos pelos colarinhos, a rapariga no monocarril a beijar o próprio reflexo com as outras pessoas cabisbaixas e com olheiras, aquela Julie Christie sonâmbula e o seu duplo humano, aquela TV com apresentadores que nos olham nos olhos e exigem uma resposta em directo, a cena da caixa do correio, o chefe de Montag, aquela velha mártir que acorda Montag da sua apatia, e o fogo, símbolo máximo do filme (e eu nem gosto de símbolos) que é o único elemento capaz de purificar (literalmente) o ser humano…
É realmente um filme inquietante, baseado num belo romance de Bradbury, com um título fabuloso que se refere à temperatura em que o papel de um livro entra em combustão. A vertente temática mais apaixonante (para mim) prende-se com a metáfora das vivências que brotam das páginas de um bom livro, não só as vivências do autor, mas também as do leitor, que proporcionam a absorção supra-pessoal de uma Obra.
É um filme impreterível para qualquer amante da Sétima Arte, repleto de brindes simbólicos, como a fotografia deslumbrante, utilizando de forma sublime o Zoom in Staccato, técnica de filmagem de uma cena dramática com um progressivo close-up aos pulos.
O que me deixa altamente perturbado, confesso, é ver a actualidade deste filme. Tal como no genial romance "brave New world" do Aldous Huxley, deram-me uma visão do futuro que eu dispensava...
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