Todos aspiramos a 2046
Wong Kar-Wai fechou a trilogia iniciada com Days of being wild e In the mood for love com chave de ouro. Se estas duas obras nos tinham deixado assoberbados pela sua estética refinada, assombrosa e hipnotizante, sempre matizada por uma poesia quase indescritível, sublime, e etérea, 2046 demonstra de forma cabal as qualidades que já havam elevado Kar-Wai ao Olimpo da cinefilia.
Através desta proposta que roça a megalomania, Kar-Wai oferece-nos um filme desdobrado em três níveis distintos: o real, vivenciado pelas personagens, a ficção, projectada nos romances ficcionados de Chow, 2o46 e 2047, bem como a memória, que se imiscui entre estes dois níveis, enleando-nos, seduzindo-nos e, também, deixando-nos perplexos, quer pela interpenetração destas três realidades tão díspares, quer pelos contrastes flagrantes das experiências que nos são dadas a vislumbrar. Em qualquer caso, cumpre salientar que nesta tensão entre presente e futuro, será sempre a memória a comandar, porque, através de várias coincidências (Chow passou uma noite com o amor da sua vida no quarto 2046, o mesmo que passará a espiolhar; será o reencontro com uma Li Zehn que fará despontar, de novo, a chama da paixão...), acabará por fazer avançar o enredo.
No seu âmago, 2046 mais não é do que a história de Chow (sensacional Tony Leung), escritor e jornalista que habita num quarto de hotel. Solitário, sedutor, egoísta e insensível, Chow passa boa parte do seu tempo a preparar o seu romance 2046, aproveitando, igualmente, para rememorar boa parte das suas relações passadas. Chow é, assim, o leit motiv utilizado para Wong Kar-Wai lançar várias interrogações sobre as relações humanas. Mais do que personagens concretas e definidas, 2046 apresenta-nos náufragos à deriva, seres acossados, dominados por dilemas existenciais profundos, exponenciados por um décor que, apesar da sua frugalidade - e pensamos sobretudo no Hotel - transmite lúxuria e desejo, imbuindo o espectador de desejo e paixão. Kar-Wai, sempre fiel quer à utilização do slow motion para amplificar o pathos vivido pelas suas personagens, quer por sensacionais grandes planos, oferece-nos uma história onde a par de algum aparente irrealismo, o mistério domina.
2046, filme de extremos que se tocam, sem jamais entrar em conflito, oferece-nos assim o contraste entre o tom por vezes visceral de um presente, cheio de sombras e curvas sinuosas e um futuro, rectius, um imaginário onírico, onde todos são apresentados em tons quase celestiais, mesmo os andróides com reacções retardadas, metáforas do Homem Massa - para usar a expressão de Ortega y Gasset - com que Chow convive e que também ele é.
Assim, temos a oportunidade de, durante cerca de duas horas, ver um retrato duro de personagens alienadas, que se projectam no outro à espera de atingir o amor, sempre brindados por uma banda sonora que, mais do que ser um mero adorno, acaba por funcionar como peça narrativa, contribuindo, assim, para adensar o labirinto com que somos confrontados. No fim, sobrará o imenso vazio, quer a aridez de sentimentos de Chow, quer o deserto amoroso de Bai Ling (Ziyi Zang) ou a incapacidade de Li Zehn (Li Gong) fugir ao seu passado. Tudo isto para acentuar a que todos aspiramos ao nosso Mundo dos Sonhos, ao nosso 2046, lugar onde podemos amar e ser amados, expressão máxima do sentir, cúmulo da perfeição. O local onde poderemos ser unos, completos.
E tudo isto porque, se a realidade pesa, o largo espectro da memória nunca deixa de nos perseguir, censurando-nos por termos ou não termos feito. No caso de Chow, vingou a sua incapacidade de fugir ao passado e de superar a sua ironia e frieza para com as mulheres. Como que se Kar-Wai nos relembrasse que há que abrir espaço para o Amor. Para dar e receber. Com carinho e emoção, de molde a que não haja espaço nem para ambições frustradas, nem para sentimentos dominados pela sensação de vazio.
Wong Kar-Wai é, assim, o poeta do amor, o pintor das emoções e o escultor de ambientes. Em suma, um cineasta para conhecer, apreciar e estimar.
6 Comments:
Vi a sinopse e já tinha ficado interessada mas depois de te ler, tenho mesmo de ver!
Ando pouco cinéfila, ultimamente...mas vou aproveitar o meu desconto de estudante:-)
Wong Kar-wai é igualmente o poeta da Perda, seja amorosa ou de identidade. Numa inspiração assente no cinema de Resnais, de Godard e até de Kieslowski, vasculha a areia do tempo e o labirintos da memória, numa percepção temporal cíclica, que sob a refulgente camada estética, é sobretudo filosoficamente oriental: ZEN, entre outras vertentes.
Aguardemos pela conclusão do seu primeiro filme em língua inglesa...
Lis: sim, de facto, o filme é excepcional, tal como já o "disponível para amar o era". É um filme dilacerante, poético, em suma, belo.
Francisco: sim, poeta Perda também. Aliás, neste particular, às vezes as personagens de Kar-Wai lembram Antonioni, graças à (quase) total alienação. Mesmo no modo de passear a câmara...Se bem que a influência de Resnais e de Kieslowski é mais notória. E sim, também espero ansiosamente esse filme em inglês
Visualmente é muito estimulante, mas tirando isso pouco me diz, confesso.
2046 foi para mim uma experiêcia acima de tudo sensorial. é raro um filme que contenha tanta consistência visual e sonora- é um filme que se pode analisar claro mas que sobretudo se deve apreender num modo quase extatico e fusional
de todas as formas, é um dos meus grandes filmes
Caro Paulo Lobo, sensorial, sim. Muito. Mas ao nível psicológico também: a forma como vemos as personagens deambular na imaginação, na memória, pelas ruas, pelos sentimentos, sempre sem rumo, é algo que me deixa muito, mas muito tocado. Filme para contemplar, saborear, para nos deixarmos levar, como um tronco segue na corrente de um rio.
Wong Kar-Wai não só ao nível estético, mas também psicológico é magistral. Este 2046, a par de Chungking Express e, claro, Disponível para amar, são dos poucos filmes relativamente recentes capazesa de me emplogar. Kar-Wai é um mestre. Na linha de Antonioni e, também, Resnais, como bem salientava o Francisco.
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