A Ilha dos Amores
Paulo Rocha, autor do imortal Verdes Anos, é um nome incontornável do Cinema Portugês, tal como o é este A Ilha dos Amores.
Obra de fôlego e extremamente ambiciosa, A Ilha dos amores está construído em termos em tudo iguais aos de uma epopeia. Com efeito o espectador toma contacto como uma proposição, uma invocação e uma narração para chegar, cremos, a um epílogo. O tom ambicioso é manifesto, desde logo, se se tiverem em conta os pontos de contacto com Os Lusíadas, obra sempre presente, tal como o seu autor, Luís Vaz de Camões, erigido por Paulo Rocha como figura inimitável e arquétipo de todo o português. Todavia, contrariamente ao poema épico camoniano, não topámos com a sublimação do povo português. Pelo contrário, Paulo Rocha, recorrendo à figura de Wenceslau de Moraes, acaba por traçar uma profunda análise ao modo de ser português e ao sentir lusitano.
Wenceslau de Moraes (soberbo Luís Miguel Cintra) que, inicialmente, surge como alguém titubeante, receoso de embarcar no desconhecido, o Oriente longínquo, acaba por transformar-se, gradualmente, num ser romântico e, à medida que aumentam os anos da estadia pelo Oriente, vê a sua Saudade crescer, ensimesmando-se, até acabar sozinho, sempre deambulando por cemitérios. Vimos um Wenceslau momentaneamente exacerbado, perdido de amores, para acabar só e amargurado. Sem ninguém. Apenas acompanhado pelo seu gato e pelos seus livros. Um verdadeiro militante da cultura que tudo teve e tudo perdeu, tal como a sua pátria. Este é o único fim digno desse nome que o espectador vislumbra.
A Ilha dos Amores, filme formalmente dividido em nove cantos, é um filme de espelhos e reflexos. Não é à toa que a câmara de Paulo Rocha filma espelhos amiudadas vezes. O espectador não toma contacto directo com a realidade. Vê-a reflectida. E vê uma alma em crise, rarefeita, sempre ofuscada pela sombra paterna e monumental de Camões. Aliás, não é à toa que veremos Pessanha (Paulo Rocha, lui-même) dizer que, no Oriente, ele e Moraes são os típicos lusitanos, com sua mulher nativa, a prole mestiça, sobre a protecção da estátua de Camões. A Ilha dos Amores acaba, também, por ser a sublimação e apologia do passado, em contraste com um pressente povoado de despojos, farrapos e imundície. Isso mesmo é corroborado pelos longos monólogos de Vénus, sempre rodeada por peças de artilharia, demonstrando a fragilidade das ligações entre presente e passado e, mais importante, mostrando uma alma em crise, em luta, em permanente desconstrução.
Obra de uma beleza a toda a prova, A Ilha dos Amores é um marco no Cinema Português. Wenceslau de Moraes acabou por ser apenas, passe o exagero, um mero pretexto, para podermos tomar contacto com uma obra ríquíssima, em que contrasta a sensualidade e exuberância da paisagem oriental, com a frieza, pedantismo e snobismo de uma Lisboa virada sobre si mesma. Neste particular, são assombrosos os raccords entre Oriente e Lisboa - sobretudo os seus telhados - apesar do flagrante contraste entre ambos os espaços. Os mesmos telhados onde os actores receberam as suas personagens e, simbolicamente, as queimaram no fogo.
Esta é A Ilha dos amores, um filme labírintico, aberto, pleno de interpretações e trilhos a serem explorados. Filme de tom grave e de ritmo lento, A Ilha dos Amores visa semear a dúvida, a reflexão, tal como toda a sua beleza deve ser contemplada e saboreada, sem quaisquer pressas. Desde o tom ligeiramente colonialista, passando pela incapacidade de adaptação a um qualquer ligar, os amores exacerbados, a honra, ao longo de três horas o espectador vê enleado numa delicada e imbricada teia de relações e de questões. Talvez por este motivo se possa dizer que vimos um filme pomposo e altivo. Nada mais acertado. Com tamanha riqueza temática, e atendendo à inspiração épica, não poderia ser outro o tom.
Bem vistas as coisas, as magníficas sequências do Museu de Artilharia funcionam como a síntese desta obra excepcional: obra em conflito, em luta, tal como Wenceslau consigo e o País que o acolheu. Tal como qualquer Ser Humano vive em conflito consigo próprio. Em qualquer caso, ficam semeados a dúvida e o receio: será que Portugal acabará decrépito, só, como um vagabundo, tal como Wenceslau? Talvez seja esta uma das principais questões a que A Ilha dos Amores não responde.
2 Comments:
como é possível ainda escrever «Ser Humano», assim com maiúsculas e tudo?
Podia dizer que é influêlncia germânica, mas deve-se, principalmente, à exacerbação que faço do Homem enquanto tal (com maiúsculas e tudo :-) )
Enviar um comentário
<< Home