terça-feira, novembro 7

Terra em transe


Terra em transe de Glauber Rocha é um verdadeiro tratado sobre a sedução que o poder exerce no Homem. Inebriante, sedutor e enlouquecedor, o poder surge como a coroa que permite subjugar o povo - um imbecil não analfabetizado, conforme se diz a certa altura - de molde a satisfazer necessidades próprias. Glauber Rocha assinou um filme revolucionário e pleno de convulsões, tal como os personagens que se vão degladiando na tela.
Através desta visita a um país imaginário, El Dorado, Rocha retrata o Brasil de ontem e de hoje, aquele onde a demagogia, o populismo bacoco e as relações promíscuas com a Igreja e com os donos do Igreja produzem frutos. Esta é uma visão maquiavélica da política: os fins justificam os meios. Este é, assim, um retrato nigérrimo do lado vil do Homem. Mas é, também, uma obra dotada de um experimentalismo ímpar. Apesar de parentemente desconexa, a obra encontra o seu fio condutor no homícidio do jornalista Paulo, que permite faculta o acesso às memórias íntimas deste e à sua relação com políticos de esquerda e de direita. Um filme onde o plano seguinte é anunciado por uma qualquer palavra - numa sucessão de raccords infernais, onde o jump cut desempenha um papel fundamental - e onde avulta o tom grotesco, quer pelo recurso à handy cam, quer pelos grandes planos de rostos transfigurados e de feições duras e nitidamente recortadas.
Diziam-me, com toda a razão, que hoje o cinema não é capaz de tanta modernidade. Pois não. É incrível como uma obra dotada de tanta abstracção e simbolismo como Terra em transe, é capaz de descer à mais normal das realidades, para nos dar um retrato tão sarcástico de uma classe abjecta. Só por isso, o tom programático e panfletário desta ópera tropical brilhantemente coreografada está mais do que perdoado.

6 Comments:

Blogger o terceiro homem said...

Boa avaliação de um filme que vi há já algum tempo. Muito bom o Glauber Rocha. Tenho agora o DVD de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" à espera de ser visto.

2:33 da manhã  
Blogger José Oliveira said...

grandioso filme a todos os niveis,um dos filmes politicamente mais importantes e poderosos da história do cinema, da politica dos homens, entendamo-nos...só comparavél do meu ponto de vista ao Godard de "Weekend" assim de repente...e é um cumulo da modernidade, formal - a problemática raccord câmara-montagem, o estilhaçamento de todas as noções classicas em direcção a uma matéria...
E narrativamente, de uma liberdade fulminante...

5:57 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Agora, tenho muita pena de não ter ido :(

10:02 da tarde  
Blogger Hugo said...

O filme respira modernidade, de facto. E haverá narrativa mais bela do que a voz em off que vai alternando com as próprias personagens? Ou haverá raccord mais belo do que aquele em que é a palavra quem dita o que vai surgir? Eu acho que dificilmente haverá...

Politicamente falando, depois de ter revisto o "Prima della Rivoluzione", de ver este "Terra em Transe",, só falta mesmo rever "Z" do Costa-Gavras...

11:59 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bolas! Aqui há mesmo gente que respira absoluto Cinema.
Como sou ignorante.
- Vou passando sempre para ver se leio e tento "ver" mais alguma coisa.

:-)

11:54 da manhã  
Blogger Hugo said...

O Habitante, serás sempre muito bem-vindo :-)

12:09 da tarde  

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