Os inadaptados
"This boy and this girl were never properly introduced to the world we live in"
Dois jovens trocando carícias, beijando-se em pleno idílio amoroso, e é desde logo adiantado ao espectador que os jovens que vê, irradiando felicidade, serão vítimas de tragédia, pois não foram devidamente apresentados ao Mundo em que vivemos. Eis o leit-motif para They live by night de Nicholas Ray.
Bowie é um ingénuo presidiário que se evade com dois cúmplices, Chicamaw e T-Dub. Após um assalto a um banco, os presidiários escondem-se em casa do irmão de Chicamaw, onde somos apresentados a Keechie, pelo que seremos testemunhas do nascimento do amor entre Keechie e Bowie, que apenas desejam levar uma vida normal, como qualquer rapaz e rapariga que estejam apaixonados. Todavia, esse desejo é impedido pelos cúmplices de Bowie, que o levam a participar noutro assalto que sairá malogrado e estará na origem da viagem sem destino do jovem casal.
O que mais surpreende em They live by night é o facto de antecipar muito do que será a obra de Ray. Com efeito, vemos aqui a génese do gosto pelos inadaptados, dos rebeldes sem causa e de todos aqueles que sempre se contradizem. Vagamente inspirado pela história de Bonnie e Clyde, Ray mostra-nos o quão cruel é o Mundo perante aqueles que apenas desejam levar a cabo uma vida normal. Na verdade, o idílio do casal, casado numa capela de casamentos-expresso, apenas durará por breves momentos, em virtude de pairar sobre eles, sempre, a possibilidade de as autoridades deitarem mão a Bowie que, injustamente, é considerado como o cabecilha de um perigoso bando de assaltantes.
Acossados, Bowie e Keechie apenas conseguem viajar de noite, já que se torna mais difícil que estes sejam reconhecidos. Tornam-se os filhos da noite, os que vivem na sombra, sendo que dessa sombra brota, em claro contraste, um amor terno, puro e radioso, tão radioso como os sorrisos embevecidos que vemos quer a Bowie quer a Keechie sempre que trocam olhares. Mas, conforme se adiantava no genérico, ambos não foram devidamente apresentados a este Mundo. Temido por todos em virtude das várias notícias que correm pelos jornais, acabaremos por ver Bowie a ser convidado a sair de uma cidade por um dos líderes dos sindicatos do crime local, dado que Bowie, alegadamente, é sinónimo de sarilhos.
À deriva, tendo apenas o México como destino, o jovem casal acabará por procurar refúgio junto de uma velha conhecida, Mattie. Todavia, esta por amor ao marido que está preso, denunciará o jovem casal. E é nesse momento que vemos Bowie ser fuzilado pelas autoridades, não nos saindo da memória a face lúgubre de Keechie, lendo a carta escrita por Bowie, afirmando que a ama. Amor. Será ele a justificar quer a louca viagem de Keechie e Bowie, quer a traição cometida por Mattie, que apenas queria voltar a viver com o seu marido. Mas, neste caso, mais do que amor, Mattie terá sido influenciada pelo ciúme e pela inveja: também ela terá vivido momentos felizes, também ela deseja o seu idílio com o marido preso. E assim vem a tragédia, culminando na morte de Bowie e no sofrimento de Keechie, apenas atenuado pela leitura da carta.
É este o cerne do cinema de Ray: a intensidade, a emoção e o lirismo. Em Ray vivemos e sentimos o Cinema em velocidade vertiginosa, num verdadeiro turbilhão, prestes a explodir, tal é a tensão latente. Em They live by night vimos um conflito entre a natureza boa do Homem e uma sociedade dura e intolerante, incapaz de o perceber ou deixar que este se apresente confignamente.
They live by night é o filme de homenagem aos inadaptados. É um poema visual em tom lúgubre e melancólico sobre a impossibilidade de atingir a felicidade. Nick Ray sempre privilegiou os pequenos foras-da-lei, os inadaptados e excluídos. Em bom rigor, Ray mais não fez do que fazer Cinema pensando em todos nós. Afinal de contas, a dada altura ou momento todos nós fomos inadaptados. Tal como Keechie e Bowie, nenhum de nós foi devidamente apresentado ao Mundo em que vive.
5 Comments:
Belo texto, embora não concorde com as últimas frases, pois não me parece que toda a gente se tenha sido inadaptado. Há pessoas que se conformam com as normas desta pocilga que é o Mundo, e acabam por constituir uma sociedade opressora - são elas que dificultam a vida aos nossos heróis, no cinema de Ray - e são elas que se deve combater.
Pois, se calhar nas últimas frases deixei falar mais alto a ira que vai em mim em decorrência do exame de agregação que fiz ontem...acho que também eu ontem era um rebelde sem causa.
Como gosto do cinema de desadaptados de Ray. E o que custa neste é saber, desde logo, que estão condenados - passamos o filme todo a sofrer.
Esse a quem o James Dean deu corpo... Pois. Mas acho que nesse caso o verdadeiro rebelde sem causa é o Plato. Ele é o epicentro de todo o filme: tem tudo para ser feliz, mas não consegue e encontra abrigo junto de outro acossado...
Ele haverá plano mais belo do que aquele em que o Plato morre e o Ray nos dá um oblíquo belíssimo?
Áí o Ray mostrou que sabia dirigir super-produções. Já este "they live by night" talvez seja o filme mais coerente e perfeito deste grande realizador.
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